Vieram de fora comprar palácios para o turismo, mas obras nem vê-las
Marqueses e condes; banqueiros e comerciantes, funcionários públicos e demais técnicos; professores e alunos; padres e freiras, e também "ocupas". As paredes poderiam contar histórias de amores e desamores, de longas noites de diversão e não estamos apenas a falar dos bailes da aristocracia. Tantas gentes e fins acolheram estes seis palácios de Lisboa identificados pelo movimento Fórum Cidadania Lisboa como estando em pior estado de conservação, degradação visível por quem por lá passa. Quatro foram comprados por alemães, espanhóis e ingleses, com promessas de requalificação para hotéis de luxo. Obras? Nem vê-las.
Muitas vozes se têm levantado contra o estado de conservação a que deixaram chegar os proprietários de alguns palácios classificados como imóveis de interesse público. No caso do Almada-Carvalhais, em Santos, falamos de um monumento nacional e com página no facebook para o salvar, criada pelos donos da Loja do Banho, inquilinos de uma pequena parte. Em 2014 foi vendido pela Caixa Geral de Depósitos a um fundo de pensões alemão, que em Portugal é representado pelo nome de Fundo Sete Colinas.
"É um fundo de investimento imobiliário fechado, autorizado pela CMVM em 2006, detido desde março de 2016 por um investidor institucional, sendo representado pela Silvip - Sociedade Gestora de Fundos de Investimento Imobiliário. A coordenação técnica é assegurada pela Turismo com Essentia - Consultores", explica a estrutura em Portugal. Têm vários edifícios no centro de Lisboa, totalizando um investimento de 100 milhões de euros.
João Fernandes, engenheiro civil da Silvip, gestor da obra, garante que os alemães vão preservar o património, obrigação que aliás decorre da lei, mas também o farão por interesse e com todo o acompanhamento técnico. "O projeto é uma unidade hoteleira de charme desde que sejam atestadas as condições e rentabilidade financeira. Foi isto que nos pediram os investidores, que têm por natureza uma responsabilidade cultural e social". Terá entre 50 e 60 quartos, construídos na maioria na numa antiga cavalariça, que já foi parque de estacionamento.
O engenheiro acredita que o projeto de Siza Vieira, que esteve parado quase dez anos, seja recuperado, com alterações. Tudo está em estudo e só depois será feito o pedido de licenciamento. Ultimamente, tem havido colaboração com a Câmara Municipal de Lisboa (CML), que exigiu medidas de segurança e as janelas tapadas. Em junho, apoiou a realização de uma exposição com as propostas de reabilitação apresentadas no âmbito de um concurso de ideias e uma conferência sobre Reabilitação Urbana em Lisboa no Palácio.
João Fernandes acompanhou a equipa do DN numa visita ao edifício - o único onde pudemos entrar. Não aconteceu com os palácios do Patriarcado, dos Condes Barão, dos Condes da Ribeira Grande, Silva Amado e Quinta das Águias, alguns com a justificação de que não tinham condições de segurança. As cores quentes e as quadras em crioulo de Cabo Verde nas paredes lembram e muito o B"Leza, espaço de diversão noturna com ritmos e gastronomia cabo-verdianos. Também há muita deterioração: paredes, cantarias, frescos, tetos, aliás a razão do encerramento do espaço, em 2007. Antes tinha sido palco das "Noites Longas".
João Fernandes diz que tem os únicos quatro tetos ao estilo barroco e que não foram destruídos no terramoto de 1755. O edifício originário tem 472 anos, sofreu sucessivas intervenções até ao século XVIII, desenvolvendo-se em três pisos, com um pátio renascentista, "com as colunas e capitéis de decoração vegetalista e antropomórfica", descreve o site da CML. Há quem o classifique como uma das joias da coroa de Lisboa. São os estuques, os azulejos, as cantarias e toda a arquitetura, num edifício que ocupa quase um quarteirão do Largo do Conde Barão.
Propriedade de Fernandes de Almada, tesoureiro, escrivão e cônsul de Portugal na Flandres no reinado de D. Manuel I, mais tarde embaixador da corte em França e provedor da Casa da Índia (D. João III). No século XX teve vários proprietários, um dos últimos o Casa Pia Atlético Clube. Passou, depois, para as mãos da Caixa Geral de Depósitos, através do Funger/Fundima, fundo imobiliário, acabando por o vender em 2008 a um fundo de pensões alemão.
Fundos para atrair estrangeiros
Os fundos de investimento imobiliário permitem deduções fiscais ao investidor, sendo esta uma forma de atrair capital internacional, explica João Fernandes. E será isso que justifica que quatro dos seis palácios tenham sido adquiridos por estrangeiros.
João Pedras, um dos fundadores da Metro Urbe, atelier de arquitetura que tem em carteira o Palácio dos Condes Barão de Alvito e dos Condes da Ribeira Grande, refere que a compra foi motivada pela ligação à história. "Um palácio é diferente de um edifício novo, para um hotel de charme aliado às artes fica muito mais adequado um palácio histórico."
Fala do Palácio dos Condes da Ribeira Grande, na rua da Junqueira, em Alcântara. Além de um hotel de 5 estrelas querem abrir um museu de arte contemporânea. Este é o único dos seis palácios na mão de portugueses, a Real Tejo, já que a Quinta das Águias, na mesma rua, está para venda. O atelier é, também, responsável pela arquitetura do Hotel Apartamento Villa Rica, na zona de congressos em frente.
O palácio da Junqueira foi uma das casas do marquês de Niza, ampliada e remodelada pelo marquês da Ribeira Grande, no século XIX. Salienta-se o exterior oitocentista da fachada a sugerir afinidades com o Palácio de Queluz. Tem dois pisos, um pátio, jardins e uma capela, que sofreram alterações no século passado para ser estabelecimento de ensino: o Colégio Arriaga e os liceus D. João de Castro e Rainha D. Amélia, este até encerrar.
A Metro Urbe prevê 20 milhões de euros para a reabilitação do Palácio dos Condes da Ribeira Grande para um espaço de 10 000 m2, - bem superiores aos 177 m2 indicados no registo predial. Início das obras previsto para 2020.
Mais recentemente, para o ano, pretendem iniciar a requalificação no Palácio do Conde Barão, em Santos, sobretudo para apartamentos. Trata-se de um investimento de 7 milhões de euros para 3 700 m2 (acima do indicado no registo), para transformar em apartamentos de luxo, cujo custo varia entre 530 mil e os 1,4 milhões de euros.
Obras aguardam ação judicial
O Palácio Silva Amado, com frente para os Campos Mártires da Pátria e para os jardins do Torel, tem afixado um aviso da pedido de licenciamento com data de novembro de 2014. Comenta-se na vizinhança que as obras estão embargadas devido à construção de um parque de estacionamento subterrâneo para um condomínio de luxo. Os técnicos da CML responderam ao DN que o processo de licenciamento se encontra suspenso devido a uma ação judicial. É investimento espanhol e, em outubro de 2016, passou das mãos da Iberprosa para a IPOBI Lisboa. Isto depois de ser comprado pelo Estado em 1928 que o vendeu mais recentemente.
O médico Silva Amado é o morador conhecido do palacete e quem dirigiu a primeira morgue em Portugal, mais tarde Instituto de Medicina Legal. Também foram aqui supliciados os 11 companheiros do general Gomes Freire, executado no mesmo dia, 18 de outubro de 1817, mas em S. Julião da Barra, Oeiras. Acusados de liderar uma conspiração contra a monarquia. Gomes Freire era maçom e durante meio século a data da sua morte foi considerado dia de luto da Maçonaria Portuguesa. O palácio chegou a estar ocupado, o que levou à intervenção policial.
Por foram não se advinham os mármores lavrados, os azulejos, os tetos em madeira, a talha, as pinturas e espelhos que o adornam. Na fachada da Travessa do Torel tem um painel de azulejos à Nossa Senhora da Atalaia.
Casas da nobreza e do clero
Projetado pelo arquiteto Ludovice, este palácio acabou por ver trocado o nome do criador pelo do Patriarcado, a quem pertenceu até 2006 e durante 80 anos. Foi a segunda obra do alemão no país, que acabou por se radicar em Portugal. Ultimamente era a casa da Conferência Episcopal Portuguesa e serviu de alojamento a João Paulo II em 1982, na sua primeira visita.
O Palácio do Patriarcado pertenceu aos irmãos Costa Lobo. Um doou a sua parte à Santa Casa da Misericórdia; o outro ofereceu-a à mulher ,Josefina. Em 1913, o Patriarcado arrenda uma parte à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e, mais tarde, compra a zona do edifício de Josefina, adquirindo a totalidade em 1926. Vendeu-o há 11 anos a um promotor imobiliário espanhol, Habitat. A requalificação está a cargo do atelier RRJ. A arquiteta Susana Baeta confirma o projeto para ser transformado num hotel de luxo. Falta o licenciamento para iniciar as obras.
Do clero para a nobreza, a Quinta das Águias, em Alcântara, está à venda por 17,5 milhões de euros na Sotheby"s, depois de ser anunciada por uma imobiliária com sede em Portugal, sem encontrar interessados. A área coberta é de 850 m2, com um grande jardim de mais de mil metros quadrados, Facilmente se entra no espaço, o que faz com que o edifício seja constantemente vandalizado, também no interior.
A Quinta das Águias pertenceu a Diogo Mendonça Corte-Real, filho do secretário de Estado de D. João V com o mesmo nome. Diogo faz obras profundas, constrói uma capela e configura o jardim. Passou por várias mãos, foi adquirida em 1841 por José Dias Leite Sampaio, visconde da Junqueira, e, já no século XX por Fausto Lopo Patrício de Carvalho. Regista-se nesta altura nova intervenção. A família Monteiro vendeu-a em 1922 à Sociedade Agrícola da Junqueira, tendo passado a Sociedade de Administração Imobiliária Quinta das Águias, em 2002 e, em 2008, definitivamente por usucapião. Referência para os azulejos setecentistas.