As redes sociais e os videojogos são viciantes e alteram o funcionamento do cérebro.
As redes sociais e os videojogos são viciantes e alteram o funcionamento do cérebro.INA FASSBENDER / AFP

Videojogos violentos aumentam risco de comportamentos agressivos

A exposição à violência é cada vez mais precoce nos videojogos, inicialmente criados para treinar tropas a não sentirem remorsos por matar. A dependência dos ecrãs ocupa 4 ou mais horas por dia. Por isso, há cada vez mais países a proibir telemóveis nas escolas. Em Portugal quase só os colégios de elite o fazem.
Publicado a
Atualizado a

Portugal acordou há dias em choque com a notícia de um jovem português de 17 anos que mandava executar crimes e homicídios pela internet a uma rede de seguidores no Brasil e que planeava outro homicídio para breve. O mesmo país parece não estar ainda suficientemente indignado com as mais de 4 horas por dia que os seus adolescentes passam nos smartphones e redes sociais, em sites pornográficos ou em videojogos, alguns muito violentos, onde executar ou decapitar parecem atos tão neutros como beber água. De outro modo, provavelmente, os pais deixariam de oferecer smartphones aos filhos antes dos 13 anos (tal como fez Steve Jobs, o génio da Apple), exigiriam do Governo a proibição do seu uso nas escolas e censurariam tanto o consumo como a comercialização de videojogos violentos. E será que estariam a ser radicais ou apenas a tentar prevenir problemas de saúde mental e de desenvolvimento cognitivo dos seus filhos?

“Não se pode tirar a ilação de que todos os que participam em jogos violentos vão ser agressivos e praticar crimes, mas a probabilidade de isso acontecer pode aumentar, sobretudo, se já houver uma propensão”, concordam psicólogos, magistrados e associações pela moderação do uso de telemóveis ouvidos pelo DN. “Nos estudos que existem sobre o assunto não há evidência científica de que estar em jogos violentos implique mais agressividade ou violência, mas se já houver alguma predisposição para a psicopatia, por exemplo, uma personalidade narcísica esse será um terreno fértil para desenvolver e ampliar a agressividade”, disse ao DN Pedro Hubert, psicólogo doutorado em comportamentos aditivos online. Outros referem que “mais de 60 anos de pesquisas sobre a violência nos media mostram de forma consistente que seja em formato tv, filme, música ou videojogos, os conteúdos violentos são um fator de risco para aumentar pensamentos, sentimentos e comportamentos agressivos”, como é o caso de Douglas Gentile, autor de Game On! Sensible Answers about Video Games and Media Violence.

“Mesmo que a maior parte das pessoas não vá reproduzir os comportamentos violentos, esses jogos não são benéficos” assume aquele responsável. Até porque, explica, “nos chats à margem dos jogos ou de plataformas como o Discord (que o jovem portugês usava para ordenar os atos criminosos) formam-se comunidades virtuais com perfis anónimos, onde é muito fácil para um psicopata, um fanático ou um predador sexual alienar um miúdo”. Neste universo “criam-se grupos e subgrupos, que começam por criar primeiro uma cumplicidade e depois desenvolvem-se como seitas religiosas ou neonazis. É assustador”, assevera Pedro Hubert. E, lembra o psicólogo, nestas comunidades os pais não conseguem sequer exercer o “controlo parental” nem sabem, na maioria das vezes, que os seus filhos interagem com perfis falsos.

Cultura violenta desde os 7 anos

Basta uma vista de olhos pelas classificações etárias de alguns dos videojogos mais populares para perceber a violência a que crianças e jovens estão expostos desde tenra idade. Para a faixa dos 7 anos há jogos com “cenas assustadoras”, mas a violência ainda é dirigida a desenhos animados e não seres humanos, embora possa haver bombardeamento de cidades, por exemplo. A partir dos 12 anos, um jogo Fortnite ou Roblox já “pode ter bastante violência, mas utiliza personagens não reais; pode ter linguagem imprópria; cenas sexuais não diretas; cenas de terror”. Dos 16 anos em diante “a violência contra seres humanos é real e pormenorizada, tem cenas sexuais, mas genitais não podem ser vistos, tem cenas eróticas, tem as formas mais agressivas de linguagem e também de linguagem sexual; tabaco e álcool podem ser encorajados, pode ter utilização de drogas ilegais e pode glamorizar o crime”. E a violência intensifica-se mesmo muito a partir dos 18 anos: “violência pode ser total, sem limites: tortura decapitação, desmembramentos; violência contra crianças e inocentes pode constar; violência sexual; pode conter descrição detalhada de táticas criminais e pode glamorizar o uso de drogas ilegais; atividades sexuais e visualização de genitais pode ser incluída”, referem os ratings da PEGI (Pan European Game Information), uma rede europeia que analisa e classifica os conteúdos por idades, reconhecida pela Comissão Europeia, para os jogos GDA5 e o Call of Duty. Mas a mesma rede admite que há cada vez mais jogos vendidos diretamente em lojas digitais que escapam a este controlo, o que nos remete para a desregulação que afeta este mercado. Só em Portugal o setor movimenta cerca de 360 milhões de euros anuais e, segundo o portal Statista, deverá atingir os 3 milhões de jogadores até 2027.

O primeiro videojogo com violência terá aparecido por volta do ano 2000 no seio do exército norte-americano com o intuito de treinar os soldados e os ajudar a desligar a ferramenta mental que impede de matar. Com os videojogos violentos, o que estamos a fazer às nossas crianças e jovens é exercitá-los para destravarem essas ferramentas, diz Dave Grossman, coronel do exército norte-americano autor do livro Assassination Generation: Video Games, Aggression, and the Psychology of Killing. O autor sustenta que para os jogadores dependentes, “a um nível profundo e primário, a morte humana e o sofrimento são uma fonte de prazer intenso” e revela que “enquanto os miudos saudáveis são bons nas tarefas de lógica ligadas ao hemisfério esquerdo do cérebro, os jogadores têm limitações para processar pensamento racional, o que resulta em menos aptidões sociais e falta de limites”.

Passar esta informação a pais e educadores é uma preocupação da Mirabilis, uma associação fundada por duas mães, que pretende sensibilizar famílias e escolas para a necessidade de moderar e às vezes banir mesmo o consumo de smartphones e videojogos. “Partimos de estudos científicos que comprovam impactes negativos no desenvolvimento cognitivo e na saúde mental de crianças, em parceria com a organização americana Screenstrong e fazemos ações de formação para pais e comunidades escolares para ajudar a lidar com este fenómeno”, disse Matilde Sobral, uma das fundadoras ao DN.

Mesmo que se respeitassem as idades de visualização para aqueles videojogos, a exposição a conteúdos de “violência lúdica” já poderia ser problemática, concorda Matilde Sobral, mas há a convicção geral de que “esses ratings não são cumpridos e os jovens acabam por assistir a conteúdos totalmente impróprios para a sua idade”. Se, ao mesmo tempo, desenvolverem dependência e “se isolarem gradualmente num processo de desvinculação afetiva de pais e amigos reais é um terreno fértil para o aparecimento de comportamentos desviantes”, considera o psicólogo Pedro Hubert.

Dependência severa e como a evitar

A questão central que “deve constituir sinal de alerta para pais e comunidade escolar é quando começa a revelar-se uma desvinculação afetiva e falta de empatia, primeiro com a família, e depois com o resto das pessoas”, nota o psicólogo. “Há que prevenir, com mais comunicação e informação entre pais e filhos e atuar antes que seja tarde”. Não é necessariamente expectável um comportamento criminoso, mas com a dependência, a saúde mental estará certamente comprometida.

Pedro Hubert aponta, a propósito, um caso com que lidou há 17 anos, de um jovem de 17 anos com uma dependência de videojogos que chumbou no 11º ano, mas que abandonou o tratamento clássico. Dezassete anos depois, o pai do jovem que tem agora 34 anos voltou a procurar o psicólogo, “porque o filho não sai de casa, tem 160 kg, passa 16/18 horas por dia nos ecrãs, também tem dívidas relacionadas com criptomoedas e desenvolveu comportamento antissocial e agressivo, ao ponto do pai ter medo de ser agredido por ele”.

Perante uma legião de pais preocupados com a dependência dos ecrãs, que está a minar as relações familiares e a comprometer os resultados escolares, Matilde Sobral apoia-se na literatura sobre o tema para dar alguns aconselhos. Primeiro, procurar informação científica e participar em webinars ou palestras; depois, adiar o mais possível o uso de telemóveis em especial de smartphones (pelo menos até aos 12 anos); escolher uma escola livre de telemóveis (“a atenção melhora logo bem como as relações pessoais e o bem estar emocional”); e, “ao adiar ou retirar o telemóvel, ter o cuidado de fornecer alternativas que promovam melhor saúde mental, como atividades desportivas, artísticas e culturais e mais tempo na natureza, tudo coisas que contribuem para o desenvolvimento do cortex pré-frontal”, resume aquela gestora cultural, que encontrou agora uma nova missão: mudar a cultura do ecrã a toda a hora.

Colégios de elite são os que mais proibem o telemóvel em Portugal

Deixar decisão ao critério de escolas compromete equidade entre alunos. França, Reino Unido e Espanha já avançaram para a proibição. A Unesco também a defende e em Taiwan há multas para exposição de menores de 2 anos a ecrãs.

Começa a desenhar-se uma tendência europeia para banir os smartphones das escolas. O Reino Unido e a França anunciaram essa decisão, o mesmo acontecendo em algumas regiões de Espanha, tendo em conta as evidências de problemas de concentração, insucesso escolar, menos interação social e mais ansiedade associada ao uso frequente. Em Portugal, o Ministério da Educação tem preferido deixar o assunto ao critério das escolas, o que não garante condições de equidade aos alunos onde é possível estar conectado ou não. E o que a experiência mostra nas escolas proativas é que os alunos estão em clara vantagem, “com melhor foco e bem-estar”, atesta a co-fundadora da Mirabilis, Matilde Sobral.

Em Portugal, a decisão foi tomada essencialmente em colégios privados de elite como a Escola Alemã, que proíbe os telemóveis há cerca de 10 anos, o mesmo acontecendo com os colégios Mira Rio e Planalto. O Colégio São João de Brito é outro caso onde a Mirabilis já fez ações de sensibilização com pais e professores e vai agora dirigir-se aos alunos. Quanto a escolas públicas, há pelo menos duas, em Lousada e em Almeirim, que foram pela mesma opção.

Mais do que banir os ecrãs dos recreios escolares, “seria importante também incluir no próprio curriculum escolar a formação sobre os riscos da internet , dos jogos, das redes sociais e da exposição prolongada”, considera Manuel Magriço, magistrado do Ministério Público, especializado no tema da pornografia infantil online, que faz questão de corrigir para “abuso sexual de menores”. Tendo essa preocupação em mente, Manuel Magriço não se cansa de lembrar que “só através da informação e da prevenção se podem evitar males maiores”. O magistrado consultor do Conselho Europeu refere que “este crime aumentou muito durante e após a pandemia, porque não só as crianças estavam mais tempo online, mas os abusadores também”. Os chats dos videojogos são, segundo Manuel Magriço, uma caixa de pandora perigosa, porque “é aí que os predadores se infiltram com maior facilidade, fingindo ter a mesma idade, estudando a vítima e criando cumplicidades. Daí até estarem a trocar fotos íntimas é um instante, fazendo um sequestro emocional da vítima, as vezes com implicações financeiras também e, no limite, com o desaparecimento da criança ou jovem”.

Já o psicólogo social Jonathan Haidt considera que o mais preocupante nestas tecnologias é que a geração z (que já nasceu com smartphones) está a ter uma visão distorcida da realidade e abandono da vida real. “Os rapazes transferem as suas vidas para os videojogos e as raparigas para as redes sociais, foi exatamente aí que a epidemia da solidão se acelerou: elas sofrem mais de depressão e ansiedade, eles de solidão e falta de amigos”, disse o psicólogo que comparou mais de 50 estudos sobre os efeitos destas tecnologias e conclui por um impacto negativo, numa entrevista recente ao Politico.

Uma criança que nasça hoje vai estar um ano inteiro, 365 dias, a olhar para ecrãs até chegar aos 7 anos, indica um estudo publicado no British Medical Journal, que projeta a partir do histórico recente. Em 2015, notícias reportavam que a China tinha 24 milhões de web junkies, dependentes das redes sociais e videojogos. Nesse mesmo ano, Taiwan aprovou uma lei que ilegaliza a exposição de crianças menores de dois anos de idade a ecrãs, prevendo uma multa de cerca de mil euros aos pais e educadores, ao mesmo tempo que definiu a limitação do seu uso até aos 18 anos. Sobretudo desde o lançamento do IPAD em 2010, muitos pais utilizam-no como baby sitter de crianças e bebés. Mas cada vez mais estudos atestam um atraso no desenvolvimento cognitivo entre os jovens. Coincidência ou não, o certo é que Taiwan aparece no 1º lugar do ranking nos testes de QI do Worlddata.info com 106 pontos – a par de Hong Kong, Japão e Singapura - acima dos 97 pontos dos Estados Unidos e bem acima dos 93 pontos de Portugal. Alguns analistas consideram mesmo que os países que melhor gerirem a dependência de ecrãs das suas crianças podem ganhar vantagens de competitividade no futuro.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt