"Utentes preferem esperar 4 a 6 horas na urgência do que voltar ao centro de saúde"

A afluência às urgências está a regressar aos números pré-pandemia. Tal como antes, a maioria das situações, cerca de 40%, é injustificada e vão desde dores musculares a problemas de pele, capilares (caspa), alergias a febre. A diretora do Serviço de Urgência Polivalente do CHULC, diz que tal acontece por "uma questão cultural. Falta de literacia para a saúde".

No Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central (CHULC), que integra seis hospitais, São José, Santa Marta, Curry Cabral, Capuchos, Maternidade Alfredo da Costa e o pediátrico D. Estefânia, e três urgências centrais nas áreas polivalente de adultos, pediátricas e ginecologia e obstetrícia, foram atendidos cerca de 740 doentes por dia durante o mês de março. O dia 28 foi o que registou maior procura, 912 doentes. A urgência polivalente de adultos teve 480 doentes, a Estefânia 383 e a MAC 49. O mês acabou com quase 23 mil doentes (22 929) a acorrerem às urgências destas unidades.

Segundo explicou ao DN, a diretora do Serviço de Urgência Polivalente do Hospital São José, Catarina Pereira, o aumento da afluência começou a ser notado nas últimas semanas de março e mantém-se nos primeiros dias de abril. "Para ter uma ideia estávamos a receber na urgência de adultos cerca de 350 doentes, indo até aos 380 quando tínhamos um pico, agora, e desde a última semana de março, estamos acima dos 400 doentes, com as segundas-feiras, que é o nosso pior dia a chegar aos 480", o que quer dizer que "estamos quase nos números pré-pandemia, em que o normal era 450 a 500 utentes por dia", confirma a médica. E a bem dizer, o padrão de patologias e de situações que estão a chegar à urgência também "não mudou após a pandemia. A maioria das situações não se justifica. É triada com pulseiras verdes e azuis", justifica a médica, sublinhando mesmo que nos dias mais complicados "a espera destes utentes já ultrapassou as duas horas normais, chegando às quatro horas e, excecionalmente, às seis".

No entanto, e quando confrontados com este tempo, e sabendo que o hospital lhes tinha conseguido uma consulta no seu centro de saúde para aquele mesmo dia, "os utentes preferem ficar à espera no hospital do que irem ao centro saúde", argumenta Catarina Pereira, explicando que o encaminhamento dos doentes não urgentes para os centros de saúde é possível porque hoje "o hospital está muito mais próximo dos centros de saúde da sua área. Temos uma plataforma partilhada em que nos permite marcar consulta ao doente no seu centro de saúde, mas a esmagadora maioria rejeita, porque sabem que daqui já saem com análises, RX e com a medicação que necessitam. Isto é uma questão cultural, falta de literacia para a saúde, porque, no fundo, é nos centros de saúde que estas situações têm de ser tratadas".

Falsas urgências continuam a representar 40% das situações

A questão não é nova, porque este é o padrão de comportamento que já antes da pandemia enchia os serviços de urgência. Ou seja, as falsas urgências continuam a representar cerca de 40% das situações que acorrem aos serviços de urgência. A título de exemplo a médica refere algumas das situações que estão a chegar ao seu serviço. "Há quem chegue com dores articulares, que depois diz ter há meses, com problemas de pele ou com situações tão ridículas como problemas capilares, caspa, ou com alergias, falta de força ou perda de apetite, ou porque têm febre há uma hora ou porque vomitaram uma vez". Tudo situações que estão "completamente fora do âmbito de uma urgência polivalente e às quais, muitas vezes, nem sequer conseguimos dar resposta, porque exigem um estudo mais contínuo, que não é possível dar numa urgência".

Segundo Catarina Pereira, que dirige um dos maiores serviços de urgência de adultos do país, "a distribuição de prioridades nas urgências mantém-se em proporção semelhante ao que era o habitual antes da pandemia - cerca de 40% dos doentes triados ficam com pulseiras verdes e azuis, 30% a 40 % com pulseira amarela, que já tem alguma urgência e uma espera média de uma hora, embora esta espera possa chegar às 3 ou 4 horas em dias mais complicados. Em percentagens muito baixas são triados os doentes urgentes e emergentes, que, por definição, não têm tempo de espera. O doente com pulseira vermelha entra na sala de emergência e o que tem a laranja é entregue em mão a um médico".

A médica refere que a esmagadora maioria dos doentes com pulseiras verdes e azuis chega à urgência "sem qualquer referenciação de um médico do centro de saúde ou da Linha Saúde 24. Quase que arriscaria dizer que 90% vem por auto referenciação, diretamente", destacando também que as explicações que os utentes dão para se dirigirem à urgência sem motivo válido são quase sempre as mesmas. "Muitos justificam com o facto de não terem médico de família, outros com a dificuldade de obterem uma consulta no centro de saúde e outros assumem mesmo que vão ali e que resolvem de uma só vez as suas queixas. Algumas destas justificações poderão ser verdade para alguns centros de saúde, mas para outros não".

Catarina Pereira aconselha os utentes a manterem "um seguimento regular no seu médico de família para fazerem uma medicina preventiva". Em primeiro lugar, "devem recorrer ao centro de saúde ou à Linha Saúde 24 e não irem de imediato a uma urgência central sem estarem referenciados, até porque têm toda a vantagem nisso. Se vierem referenciados passam à frente de quem chegou diretamente e tem a mesma cor da triagem, porque assumimos que os primeiros já foram visto por um médico que encontrou motivos para o encaminhar à urgência".

Gripes, pneumonias, viroses e doentes crónicos

Ao fim de dois anos, quem está nos hospitais percebe que o padrão de comportamento da afluência às urgências não se modificou, mas o mesmo acontece também com o padrão de patologias. Ou seja, doentes com patologias não urgentes, doentes crónicos descompensados e doentes do foro respiratório. "O padrão de patologias é igual àquele que sempre tivemos, doentes com patologias não urgentes ou doentes crónicos com muitas comorbilidades, embora estes estejam a chegar em estado de maior gravidade, e em situação mais difícil de compensar do que anteriormente à pandemia, e doentes com sintomas respiratórios".

A médica explica que o seu serviço está dividido em duas urgências."Um circuito para as situações em geral e outro só para as do foro respiratório, que se mantém e que exigem isolamento, embora nesta altura a percentagem de doentes positivos à covid-19 seja muito baixa. A maior parte dos doentes vem com situações respiratórias de outras etiologias". Por exemplo, "do ponto de vista dos doentes triados com pulseira amarela e até laranja temos muito o doente idoso acima dos 80 anos ou dos 90 com muitas comorbilidades, hipertensão, insuficiência cardíaca e diabetes, que quando registam um quadro respiratório agravam todas as comorbilidades".

Mas os quadros virais registados são também os normais para a época. "Temos quadros de Gripe A, que tem tido algum significado, embora considere que se passou a testar mais com a covid-19 e com a necessidade de separar os doentes, como de todos os outros quadros de gripe normais. Temos ainda as situações de pneumonia bacteriana, as quais, têm tido um peso importante nos internamentos, porque são situações de maior gravidade porque condicionam maior descompensação das doenças de base, mas todas estas situações estão de acordo com o frio que temos este ano, que em vez de chegar em janeiro chegou mais tarde".

O problema que a médica diz estar a causar mais disrupção na organização dos serviços é o facto de as equipas terem de estar divididas em dois circuitos, o geral e o respiratório, sendo que este último exige isolamento e não permite a mobilização de recursos de um lado para o outro, quando há necessidade, mas até agora "ainda não houve necessidade de reforçar as equipas".

Uma das medidas que constam do XXIII Governo é precisamente a melhoria do acesso do utente aos cuidados primários. Ao DN, na semana passada, o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar deixava um alerta à tutela, pedindo que ouvisse quem está no terreno, para "fazerem bem" o que ainda há para mudar nesta área.

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