"Usaram o nosso sonho por uma chance no futebol para nos enganarem"

Jovens futebolistas são aliciados com a promessa de começar num clube pequeno e acabar num dos grandes. A realidade é bem diferente, não jogam e passam necessidades. Processos nos últimos cinco anos envolvem 256 vítimas e 97 arguidos. Mas estão parados nos tribunais.

Matheus, João, Bruno, Sandro, Yuto e Guilherme são estrangeiros e sonham jogar futebol na Europa, e Portugal poderia ser o início desse objetivo. Começar num clube pequeno, destacarem-se, serem descobertos. Em poucas épocas estariam a jogar num dos clubes grandes. Venderam-lhes este sonho, literalmente.

Entregaram dinheiro supostamente para a inscrição na Federação Portuguesa de Futebol e o seguro, pagaram as passagens de avião. Ninguém os inscreveu e o clube nem chegou a competir. Sem dinheiro e sem saber onde estavam, passaram fome.

Os seis jovens foram contratados por Djalma Galhardi, diretor desportivo do Clube de Futebol União Serpense, que competia na 1.ª divisão distrital de Beja. Fazem parte de um lote de 17 candidatos a atletas, dos quais 10 são brasileiros. Tinham uma carta-convite e um contrato, assinados pelo presidente do clube, Alfredo Mestre, mas cada um pagava todas as despesas, No mínimo, três mil euros; o máximo terá sido desembolsado por Yuto, japonês, 8200 euros. Entre todos, terão entregue cerca de 25 mil euros, fora o que gastaram alguns dos seus empresários.

Viviam os 17 numa casa no centro de Serpa, quatro quartos e três casas de banho, seis numa divisão e os restantes distribuídos por outras três, Djalma também lá vivia. Além dos 10 brasileiros, eram quatro colombianos, dois canadienses e um japonês.

O diretor desportivo desapareceu ainda antes do início do campeonato distrital, a 18 de setembro. E na Associação de Futebol de Beja (AFB) apenas estava inscrito um jogador pelo Serpense, um português. Veio o primeiro jogo e não compareceram, e à segunda falta foram excluídos da competição.

"Fizemos tudo para que o Serpense continuasse no campeonato, esperámos uma semana, à segunda foi eliminado por falta de comparência", explica Pedro Xavier, o presidente da AFB. A competição segue com 11 clubes.

Maior sensibilização


Este é um dos mais recentes casos sinalizados pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) como crime de tráfico de seres humanos. E que revela uma mudança de tratamento criminal destas situações.

"O tráfico no futebol é encarado mais recentemente pelo Ministério Público (MP) e as autoridades em geral, também há uma maior sensibilidade dos OPC (Órgãos de Polícia Criminal) para tornar o processo mais célere", diz ao DN um inspetor do SEF. Está na zona Centro, onde têm descoberto mais casos, e acredita que é o resultado de uma maior fiscalização. Têm oito processos associados ao futebol, seis por auxílio à imigração ilegal e dois por tráfico de seres humanos (mais recentes), a que se associam outros, como a falsificação de documentos (contratos).

A maior sensibilidade contempla, por exemplo, que as vítimas sejam logo ouvidas para memória futura. É que poderão regressar ao país de origem antes do início do processo judicial e esta inquirição permite que esse testemunho seja usado como prova, o que antes era difícil. Foi o que aconteceu aos futebolistas de Serpa. Deslocaram-se à delegação do SEF em Beja, mas apenas seis, todos brasileiros, foram considerados vítimas de tráfico e registaram as declarações.

A mudança de tratamento deve-se, segundo o inspetor, ao crescimento deste fenómeno de há 10/15 anos para cá, devido à facilidade de circulação. "Há um mecanismo para trazer cidadãos estrangeiros para os legalizar em Portugal e muitas vezes são utilizadas relações laborais fictícias. No caso do futebol, os clubes são usados abusivamente ou são os próprios que entram no esquema. São jovens e vêm na expectativa de que alguém repare neles e os leve para um clube maior. É uma ilusão que não tem correspondência com a realidade".

Acontece sobretudo nos campeonatos inferiores: distritais ou Campeonato de Portugal . Nestes clubes pequenos, os jogadores recebem entre 150 e 300 euros mensais, a chamada compensação. Têm de ter outra profissão.

E qualquer pessoa pode fundar um clube, registá-lo e começar a competir, iniciando-se pela II divisão do campeonato distrital. "Duas pessoas ou mais já é uma associação desportiva, outra coisa distinta é perceber se podem entrar em provas", explica Rute Soares, coordenadora da unidade de integridade e compliance da Federação Portuguesa de Futebol (FPF).

Joaquim Evangelista, presidente do Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol (SJPF), diz que têm alertado para "a necessidade de aumentar a exigência nos processos de licenciamento dos clubes e sociedades desportivas, independentemente do escalão". Considera inaceitável que um investidor não seja escrutinado.

"O processo de licenciamento dos clubes, seja em que divisão for, tem que exigir garantias de cumprimento das obrigações financeiras assumidas. Só assim se consegue evitar que um clube recém-criado ou adquirido por novos investidores se preste a "barriga de aluguer" e albergue todo o tipo de esquemas fraudulentos."

Em 2017, a FPF criou uma plataforma (integridade.fpf.pt) para as denúncias de atletas e agentes desportivos: jogos acordados, cidadãos trazidos ao engano para o país e assédio sexual. É um canal anónimo, com todas as vantagens e inconvenientes, e tem recebido muitas queixas, algumas envolvendo tráfico de pessoas tanto nos campeonatos masculinos como femininos.

Rute Soares sublinha que só os clubes filiados na FPF , na Liga Portuguesa de Futebol Profissional ou nas associações distritais estão sujeitos aos regulamentos. "Em muitas situações, não chegamos a saber se quem trouxe essas pessoas alguma vez foi agente desportivo."

Em 2015, a FPF, a Liga, o Sindicato e o SEF estabeleceram um protocolo que sanciona os dirigentes e clubes "por violação do direito de cuidar". A última decisão do Conselho de Disciplina da FPF, de setembro, aplicou uma multa de 2550 euros ao Clube Atlético Ouriense por não ter cumprido o contratado com uma jogadora. O rendimento mensal de 665 euros foi reduzido para 150, além de que a atleta era obrigada a limpar e tratar da roupa do clube, onde vivia. Também se queixou do treinador e da diretora do clube, acusações consideradas "improcedentes".


Tráfico, auxílio ou burla?


O projeto MH4-Saúde em Português lançou a 18 de outubro - Dia Europeu de Combate ao Tráfico de Seres Humanos - a campanha "Não deixes que o teu sonho se transforme em pesadelo", dedicada aos jovens que sonham em ser profissionais. Tem o apoio da Comissão para a Igualdade de Género e Cidadania (responsável por esta área), da FPF e do SJPF.

Ana Figueiredo é a coordenadora do projeto e considera que os casos como o de Serpa contemplam situações de tráfico. "Consideramos tráfico de seres humanos porque a liberdade de movimentos é relativa e há todo um conjunto de condicionantes. Até podem ter os documentos pessoais, mas acabam por ficar em situação irregular e têm medo de circular, não conhecem o sítio onde estão, não têm dinheiro. Há famílias que se endividaram para pagar aos empresários para os trazer para Portugal e eles não querem nem podem pedir-lhes mais dinheiro", argumenta.

A Saúde em Português gere um centro de acolhimento para vítimas masculinas de tráfico no Centro do país. Aí viveram dois futebolistas, um peruano e um brasileiro. Foram abandonados e passaram fome. Acabaram por regressar aos países, com a Organização Internacional para as Migrações a pagar as passagens aéreas através do programa de retorno voluntário.

O inspetor do SEF sublinha que "a linha que separa a imigração ilegal do tráfico de seres humanos é muito ténue". E explica: "É auxílio quando há um acordo entre o intermediário e o imigrante, que sabe que é um imigrante ilegal, e o pressuposto da vinda não é declarado. No caso do tráfico, o indivíduo promete-lhes tudo e, chegando a Portugal, nada disso é cumprido. É abandonado, passa necessidades e é colocado numa situação de dependência, nem que seja psicológica." A burla e a falsificação estão quase sempre associadas.

A família do peruano que esteve no centro de acolhimento vendeu o talho para pagar as despesas e as viagens. O jovem faz parte do processo do Grupo Desportivo Os Nazarenos, de Leiria (2018),que envolveu 17 jogadores. O Ministério Público acusou, em fevereiro, o clube, o presidente e os dois "empresários" (brasileiros) envolvidos por 15 crimes de tráfico de seres humanos, dois deles agravados, e por 17 a auxílio à imigração ilegal. Ainda não houve julgamento.

Na acusação, a que o DN teve acesso, o MP considerou provado que foram prometidas condições não cumpridas, incluindo a "transferência para outros clubes de maior importância a nível nacional e internacional". Refere que o presidente do clube e os dois agentes fizeram cartas-convite para apresentar no controlo de fronteira e contratos de trabalho aparentemente legais para a "concessão excecional de autorização de residência" em Portugal.

Um outro caso é o do Grupo Desportivo e Recreativo Canas de Senhorim, Nelas, e remonta a 2016 e 2017. As vítimas são 14 jogadores que chegaram a Portugal com o visto de turista. Prometeram-lhes um rendimento mensal de 550 euros, além de alojamento e alimentação. Acabaram a dormir em colchões no chão num pavilhão desportivo e passaram fome.

Em 2019, o MP acusou o então presidente (antes tinha sido treinador) de 14 crimes de auxílio à imigração ilegal e tráfico de pessoas, outros dois na forma tentada e um crime de falsificação de documento. Mas ainda não houve julgamento, segundo o DN apurou junto das várias entidades envolvidas.

"Infelizmente, dos casos que temos acompanhado, e apesar da apresentação de queixa-crime e a realização das diligências subsequentes, na maior parte, os processos encontram-se em fase de inquérito. Este foi, aliás, um dos aspetos salientados pelo sindicato quando interpelou a Secretaria de Estado da Juventude e Desporto sobre este tema", refere Joaquim Evangelista. Pediram celeridade na investigação criminal. "O sentimento de impunidade dos recrutadores contribui para que fenómenos desta natureza continuem a suceder", frisa.

O SEF identificou, nos últimos cinco anos, 256 vítimas da prática do crime de auxílio à imigração ilegal no âmbito de inquéritos a clubes de futebol. Onze foram sinalizados como vítimas de tráfico de pessoas, pelo que obtiveram autorização de residência ao abrigo da lei.

Investigou 59 clubes de futebol - continente, Açores e Madeira - "pela suspeita da prática dos crimes de auxílio à imigração ilegal e tráfico de seres humanos, levando à constituição de 97 arguidos (12 em 2022), entre os quais 63 dirigentes, 14 agentes, 12 atletas e um treinador. Quarenta estão em curso e oito foram iniciados já este ano".
O SEF realizou mais de 200 ações de fiscalização nos distritos de Faro, Castelo Branco, Guarda, Viseu, Aveiro, Coimbra, Leiria, Santarém, Bragança, Porto, Braga, Lisboa, Setúbal, Beja, Ponta Delgada e na Região Autónoma da Madeira.

A maioria dos casos "corresponde a cidadãos estrangeiros que entraram em Portugal ao abrigo da isenção de visto para estadas de curta duração (turismo), o que não permite o exercício de atividade profissional". Para se inscrever na respetiva associação de futebol "deve ser titular do Visto de Estada Temporária para exercício de Atividade Desportiva Amadora. Pode ainda requerer o Visto de Residência no país de origem (junto da representação diplomática portuguesa) ou Autorização de Residência" no país, esclarece o SEF.

Como Matheus foi enganado


Matheus Lucas, 20 anos, lateral direito, jogava no São José Esporte Clube, em São Paulo. "Um amigo, ex-jogador de futebol, tinha o contacto do diretor desportivo do Serpense e disse-me que procuravam jogadores. Era o Djalma e enviei-lhe o meu material, vídeos que tinha no Google e Sportv. Disse-me que poderia ir para o clube mas teria que pagar as despesas, que me seriam reembolsadas quando entrasse o investidor que esperavam", recorda.

Djalma Galhardi apresentou-se como empresário de futebol, mas na página do Facebook intitula-se de artista. Disse a Matheus que o dinheiro era para as taxas na Federação, o seguro, a inscrição nas Finanças (NIF) e na Segurança Social (NISS), além de exames médicos e fotocópias. O jogador entregou-lhe 1500 euros e pagou 1450 pelas passagens de avião de São Paulo, ida e volta. Gastou as poucas poupanças - ganhava 1200 reais por mês (227 euros) - e teve de vender a mota.

Em Portugal não se paga para obter o NIF nem o NISS, mas é uma burla em que caem muitos outros imigrantes. Os custos com o registo do atleta são suportados pelos clubes, além de que os valores apresentados por estes angariadores estão sobrevalorizados. Segundo a FPF, Comunicado Oficial n.º 1 para a época 2022/23, a inscrição de um futebolista estrangeiro varia entre 60 euros (amador) e 150 (profissional) e o seguro desportivo no caso de amadores não chega aos 50 euros. Poderia haver uma quota de transferência internacional para clube nacional de 532,50 euros, mas não houve essa transação.

O jovem paulista foi dos primeiros a chegar a Serpa, apresentou-se a 17 de agosto, quatro dias depois de aterrar em Lisboa, onde ficou em casa de amigos. Pagou o táxi para a cidade alentejana, 80 euros. "Tive a surpresa de ver apenas dois jogadores, o Bruno e o Sandro, brasileiros. O clube não estava formado e faltava um mês para o início do campeonato. Vi o presidente no primeiro dia, depois o Sr. Alfredo surpreendeu-nos a todos dizendo que ia de férias. Era Djalma quem recebia os jogadores, percebi que todos tinham pago as despesas, uns mais do que outros."

Alfredo Mestre alega que faz sempre férias no Algarve na primeira quinzena de setembro. O prazo para inscrição de jogadores terminava a 22 desse mês.

Matheus nem acredita como se deixou enganar. "Aproveitaram-se do nosso sonho para ter uma chance no futebol para nos enganarem. O Djalma dizia-me: "Puto, vais ter a tua oportunidade mas vais ter gastos.""

O diretor desportivo reuniu , então, com os jogadores e disse que tinha cumprido a sua parte, que a culpa da não inscrição era do presidente do clube. Não o deixaram sair, telefonaram para Alfredo Mestre, que veio do Algarve, e convocaram o treinador, Paulo Fernandes.

Matheus assegura: "O presidente disse que se iria responsabilizar por todos os atletas, que iríamos fazer jogos amigáveis até que se abrisse a nova janela de transferências [janeiro]. Mas o Djalma foi-se embora e a situação ficou mais complicada. O presidente disse que não tinha dinheiro para pagar, que a culpa era do diretor, que apenas iria dar alojamento e comida."

Versão confirmada por João Brilhante, 25 anos, também de São Paulo, lateral esquerdo na Associação Desportiva Vasco da Gama de Rio Branco, no Estado de Acre, II divisão do campeonato distrital. Tinha acabado o contrato e o seu empresário até se deslocou a Serpa. "Viu o clube, conversou com o presidente, por isso eu vim. Ele é que pagou as despesas de inscrição, eu só paguei os bilhetes de avião."

Contam que faltou comida e a que havia era má. A cozinheira deixou de ir por não lhe pagarem, ficaram sem dois almoços e um jantar. Os jogadores decidiram comer na pizaria de Alfredo e não pagar. Pediram apoio ao Consulado do Brasil em Faro, cujo representante se deslocou ao clube e deu 50 euros a cada um dos 17 jogadores.

Alfredo Mestre diz-se também vítima do diretor desportivo. "Apenas quis fazer a coisa certa, tive azar, aproveitaram-se de mim. Conheci o Djalma em maio, através do treinador Paulo Fernandes, falámos durante três meses, acreditei nele. Mas não fui eu quem trouxe os jogadores." Em sua defesa conta que no início da atividade do clube deu mão a nove brasileiros, que "andavam abandonado em Portugal". Reconhece, no entanto, que foi quem assinou a carta-convite para os atletas se deslocarem a Portugal. Nega que a sua assinatura esteja nos contratos, mas está. Matheus Lucas mostra o documento.

É um contrato assinado a 26 de julho de 2022, em que o jogador se compromete a exercer atividade no Clube de Futebol União Serpense com início a 20 de agosto de 2022 e fim a 9 de janeiro de 2024. Tem alojamento, refeições, assistência médica e uma compensação mensal a "rondar os 250 euros", e eventuais "prémios de jogo ou de classificação". Além da sua assinatura, tem a de Alfredo Mestre, o presidente, e de Alex Silva, o seu empresário. O clube tem direito a 15% do passe do jogador, sendo os restantes 85% [o contrato refere erradamente 90%] divididos pelo atleta (45%) e os representantes: Alex (20%) e Djalma (20%).

Nega que o seu interesse seja financeiro. "Queria fazer um clube diferente, uma academia de futebol". Acaba por estar envolvido num processo-crime, o clube foi excluído e terá de regressar à II divisão se se mantiver na competição.

Alfredo Mestre foi emigrante 15 anos na Alemanha e é dono de uma pizaria em Serpa. Em 2019 decidiu fundar um clube. "Em 2018 quis trabalhar com o Futebol Clube de Serpa [é o clube da terra que está em 6.º lugar no Campeonato de Portugal], mas não foi possível. No final desse ano apareceu um brasileiro que também quis ajudar o Serpa, mas não aceitaram, e convidou-me a formar um clube." Ficou surpreendido pela facilidade. "Respondi que não se podia fundar um clube de um dia para o outro, mas ele disse que só era preciso registar."

Correu bem no início da temporada 2019/2020, depois o futebol parou devido à pandemia. Ainda assim, receberam a equipa B do Borussia Dortmund [onde o emigrante foi segurança]. Em 2020/2021 também pararam, mas surgiu um investidor e dinheiro, Subiram à 1.ª divisão distrital.

"Na época de 2021/2022 um outro brasileiro prometeu dinheiro até março de 2022, que não entrou. Os jogadores não podiam ir-se embora porque a segunda janela das transferências tinha fechado em janeiro. Pedi-lhes para acabarem o campeonato, mesmo não pagando salários, e foi com muitas dificuldades que chegámos ao fim", conta Alfredo. Saíram no final da época. Entrou Djalma Galhardi e foram aliciar jogadores ao estrangeiro.

A curta vida do clube é marcada pela vinda e ida de supostos investidores. "É verdade, tenho sido enganado", garante o presidente.

Os jogadores denunciaram as más condições. O primeiro sítio onde se queixaram foi na GNR de Serpa. Os guardas ligaram para Alfredo Mestre, cuja pizaria fica dois números abaixo, que se deslocou à esquadra e mostrou desagrado pela ação, mas os jogadores não pararam. Alfredo Mestre diz que também apresentou queixa contra o diretor desportivo..

O Comando Territorial de Beja informou o DN que fizeram o relatório mas não avançaram com o caso por haver a suspeita de crime e ninguém ter formalizado a queixa. Segundo o SEF, terá sido a partir da GNR que surgiu a denúncia e que resultou na sinalização de seis jogadores. "Face às evidências, o SEF contactou a Equipa Multidisciplinar Especializada para assistência a vítimas de tráfico de seres humanos e comunicou os indícios apurados à autoridade judiciária" a 30 de setembro. Nenhum pediu para ficar num centro de acolhimento.

A esperança não morre


A maioria dos jogadores tem tentado encontrar um outro clube no Alentejo e uma parte regressou ao país de origem. Matheus contactou o Sport Clube Odemirense (1.ª divisão distrital) através do Instagram. Contou a sua história, informou sobre as suas prestações. Ele e João Brilhante acabaram por prestar provas e ficar.

O Odemirense é presidido por Inês Correia, uma enfermeira que cresceu no clube e onde parte da família masculina tem exercido funções. "Os relvados fazem parte da minha vida." Conta que atletas que tinham estado no União Serpense lhe falaram dos futebolistas enganados.

Viu o material de Matheus e João, quis que fizessem testes, pois acredita que estes jovens "vão ajudar o clube" e tem pena de não ter meios para apoiar outros. "Se pudesse, trazia-os todos." E acrescenta: "Este é um problema de há muitos anos. Estes jovens têm o sonho de jogar na Europa e são enganados. Há 13/14 anos tivemos um jogador senegalês que estava a dormir com outros numa casa em Lisboa sem condições. Foi através do treinador que ele veio para o clube." Defende que as associações têm responsabilidade, nomeadamente a de Beja, e que podia falar com os clubes do distrito para os distribuir.

Matheus e João treinam com a equipa. "Quando chegar a janeiro, estão prontos jogar", assegura a presidente. Têm alojamento, que partilham com mais três jogadores do clube. Os dois recebem 120 euros por semana para alimentação, mas irão trabalhar nas obras e ter um contrato que lhes permita pedir a autorização de residência em Portugal. Quando começarem a competir, ganharão 200 euros mensais.

Estivemos no Estádio Municipal de Odemira, acessível às organizações do concelho, no 10.º Torneio Mário Gabriel, em homenagem ao treinador e diretor do Odemirense que deixou boas marcas. Jogam os petizes e os traquinas, numa competição sem vencedores ou vencidos, com o sonho de ser futebolista. Tal como Mateus, João e os outros 15 que chegaram a Serpa.

Ainda permanecem seis jogadores naquela localidade. Entre eles Yuto Kaweriyana, japonês, que não fala inglês e comunica através da tradução online. Passa a maior parte dos dias só. Não quer ser fotografado. Está também Bruno Alves, 19 anos, lateral direito, que jogava na II divisão do Campeonato Mineiro. A mesma categoria onde atuava Sandro Gabriel, 19 anos, atacante. E ainda Guilherme Jiaciani, 22 anos, que chegou em março a Espanha para vestir a camisola do Mazarrón, IV divisão. Não competiu e o empresário encontrou-lhe um "contrato" em Serpa, pagando a sua deslocação e inscrições.

Jovens que continuam à espera de uma oportunidade. O visto de entrada em Portugal tem a duração de três meses e está a expirar, o que significa ficar na ilegalidade. "Chegou um investidor novo e poderemos ser inscritos em janeiro. As coisas estão mais calmas, a cozinheira voltou, há comida. O nosso treinador foi para a Guarda e temos outro. Treinamos de segunda a sexta", conta Bruno. Quer encontrar um trabalho, conseguir um contrato e iniciar a sua regularização.

Sandro irá regressar ao Brasil se não tiver em breve a garantia de cumprir o sonho de ser futebolista.. "Vou esperar até ao dia 14, que é a data do bilhete de avião de volta. Se soubesse o que me esperava, não tinha vindo", lamenta.

Guilherme não quer voltar a sair de um país s e não jogar na Europa. O seu empresário gastou 2300 euros com a vinda para Serpa. "As coisas melhoraram, só espero ter um trabalho para me aguentar. Se ficar legal, tenho hipóteses de conseguir um clube e voltar a jogar .

O novo investidor é Lucas Santos, que diz ter fundado há dois anos no Brasil a BSport, para agenciar atletas. É o empresário do guarda-redes, Guilherme, e faz novas promessas. Investiu sete mil euros no clube, está a pagar o alojamento (mil euros mensais) e a alimentação e encomendou um novo equipamento. Assegura que vai atrair outros investidores.

"Tenho um atleta no clube e percebi que o presidente foi enganado. Chegámos no final de outubro para auxiliar, queremos continuar com o projeto. Investimos nas condições de vida dos jogadores, arranjámos um preparador físico para não ficarem parados. Vamos reunir com a associação de Beja e a câmara municipal. Em janeiro estamos em condições de os inscrever", assegura Lucas Santos. Mas não garante que todos tenham lugar, e esses acabarão por regressar.

É que, ao mesmo tempo que o SEF sinaliza vítimas de tráfico de seres humanos, dá conta das operações de fiscalização no desporto e que muitas vezes resultam na expulsão do país. Vieram para jogar futebol, o que não se concretizou, e acabaram por ficar ilegais.

"Nos últimos anos, o sindicato tem sido confrontado regularmente com pedidos de ajuda de jogadores", diz Joaquim Evangelista. Os angariadores prometem casa, alimentação e contrato de trabalho. Chegam "quase sempre sem o visto de estada adequado, deparam-se com um cenário completamente diferente, e são abandonados. O recrutamento é feito essencialmente na América do Sul e em África, com grande predomínio do Brasil, também por "ser o de maior fluxo migratório de futebolistas do mundo". Vêm também da Argentina, Colômbia, Nigéria ou Senegal. Recentemente juntaram-se novas rotas, nomeadamente a partir dos Estados Unidos. O sindicato já pagou "dezenas de voos de regresso" e tenta que tenham assistência à chegada através dos sindicatos dos respetivos países.

ceuneves@dn.pt

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