Português Jorge Pinto Ferreira é um especialista em segurança alimentar ao serviço da FAO, agência da ONU para a Alimentação e Agricultura
Português Jorge Pinto Ferreira é um especialista em segurança alimentar ao serviço da FAO, agência da ONU para a Alimentação e AgriculturaDR

“Usam-se hoje menos antibióticos na produção animal do que em humanos na União Europeia”

Jorge Pinto Ferreira, especialista em segurança alimentar a trabalhar na FAO, agência das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, falou ao DN sobre a resistência antimicrobiana, que provoca milhões de mortes por ano.
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A resistência antimicrobiana (RAM) é reconhecida como um dos principais problemas de saúde globais da atualidade. Muitas vezes, é simplificado para a versão “resistência aos antibióticos”, sendo por isso associada por muitos apenas à saúde humana. Na realidade, as suas dimensões e implicações são muito mais amplas. Que outros perigos estamos a ignorar?

O tema em si é muitas vezes conhecido como “resistência a antibióticos”, porque é muito simples percebermos assim. Nós, seres humanos, estamos doentes, vamos ao médico, recebemos a receita, vamos à farmácia, tomamos o antibiótico, se a coisa agravar vamos ao hospital, etc. Se o antibiótico não funcionar, costumamos falar em resistência aos antibióticos. Mas o que é correto é falarmos em resistência a antimicrobianos, porque há outras categorias envolvidas: antivíricos, usados por exemplo em doentes portadores do vírus da SIDA, antifúngicos, para tratar infeções por fungos. Os antibióticos só atuam em bactérias, mas há muitos outros microrganismos. E depois há coisas mais complicadas do que isto, porque, por exemplo, os metais pesados que se usam na produção animal, como o cobre, o zinco ou a prata, por um mecanismo muito mais complexo que dirá pouco aos leigos, também pode levar a resistência a antimicrobianos. E mesmo o uso de antidepressivos. Por isso, o fenómeno é muito mais complexo do que resistência a antibióticos e por isso é que é mais correto falar em resistência antimicrobiana, ou RAM, na sigla portuguesa. Outra coisa que o cidadão comum não tem tanta noção é que os antibióticos não se resumem ao uso humano. E na realidade o uso é muito mais vasto. Também os usamos em animais e em plantas e vegetais.

São usados no âmbito da cadeia alimentar. É esse outro dos principais fatores de risco na criação da RAM?

Sim, são usados, mas é muito importante clarificar esse uso. Nos animais há quatro usos diferentes. O uso mais fácil de entender na parte animal é aquilo que fazemos também com as pessoas, que é o uso terapêutico: temos um animal doente, usamos um antibiótico. Depois temos a prevenção de doenças, como por vezes nos humanos também, por exemplo em determinados tratamentos nos dentistas em que avisam que é melhor começar a tomar antibiótico antes para prevenir qualquer infeção. Em animais, em produção de carne, podemos falar do uso de antibióticos para prevenção e também para controlo de doenças. O que é isto do controlo? Por exemplo, temos uma manada em que alguns animais ficam doentes, damos antibióticos aos outros para prevenir que também fiquem doentes e controlar a propagação da doença. Esses são os três usos mais ou menos aceites. E depois há um quarto que é promoção de crescimento, que na União Europeia não se usa e que é uma das grandes batalhas que temos aqui nas Nações Unidas. Ainda há cerca de 40 países no mundo em que se usam antibióticos na alimentação para os animais crescerem mais rápido. Aí não há um interesse de Saúde, mas um interesse meramente económico. Este uso, como não tem um objetivo de Saúde, é o mais rebatido possível e é uma das grandes batalhas que temos - e repito, para que fique bem claro, que em Portugal já não se usa e na União Europeia também não, há muito tempo.

Já não se usa na União Europeia, mas e nos países de onde a UE importa?

O que a UE está a fazer - e, se calhar, pouca gente tem a noção - é um conceito fascinante. A UE já há alguns anos que decidiu ser a região do mundo líder neste tema. E investiu umas quantias consideráveis de dinheiro na América do Sul e na Ásia para que isso seja implementado também nos países de onde quer importar carne. Escolheu-se uma série de países e houve um grande investimento, por exemplo, ao nível do capacity building, treinos de médicos veterinários, autoridades sanitárias, produtores, etc … de maneira a que não só a carne produzida na União Europeia seja assim, mas também para que a carne que é importada desses países seja produzida de acordo com os padrões que a UE tem. Se produzirmos bem na base, no fim da cadeia temos de nos preocupar menos com o controlo.

Mas dizia que além do uso em humano e do uso em animais há ainda o problema do uso em plantas e vegetais. De que forma?

Sim. Costuma usar-se em coisas que estamos habituadíssimos a comer, como laranjas, maças, tomates, arroz… Mas vamos agora pensar que nunca mais toco no arroz ou nas maçãs porque também têm antimicrobianos? O que é fundamental esclarecer é que as plantas e os vegetais também têm doenças, que são causadas por bactérias diferentes das nossas na maioria das vezes, mas que, sendo tratadas com os mesmos antibióticos, isso pode levar a transmissão de resistências pelos alimentos, ou, e vem aqui a quarta parte desta história, pelo ambiente. Os antibióticos podem chegar ao ambiente de diferentes formas: logo na produção do antibiótico, através da fábrica que o produz, mas também pela pessoa ou pelo animal, já depois de metabolizado, através das fezes ou urina. E depois podemos contactar diretamente no meio ambiente com esses resíduos de antibióticos, através de rios, solos, etc, ou podemos consumir alimentos que crescem em solos contaminados. Isto parece ficção científica, parece uma cadeia muito longa, mas sabe-se hoje que é verdade.

A cadeia alimentar é um fator de contribuição significativo para a RAM? Tão significativo quanto o uso médico de antibióticos?

Essa é mais uma questão que tem que ser muito bem discutida. A ideia que se gerou nos últimos anos é essa, que a produção alimentar usa muitos antibióticos e que o problema da resistência antimicrobianos vem daí. E houve setores, designadamente a produção de aves e a produção de suínos, que tinham muito essa imagem. A principal fonte de poder nestas decisões é o consumidor, somos nós. Quando nós vamos ao supermercado o que é que compramos? Que escolhas fazemos? E as escolhas que fazemos, na esmagadora maioria das vezes, são determinadas pelo preço. As pessoas podem dizer “não, eu preocupo-me com a fonte, e a denominação de origem controlada, se é português ou não, se é de longe ou se é de perto, etc”, mas estudos cegos mostram que mais de 90% das nossas escolhas no supermercado estão baseados no preço, é assim que nos comportamos. Depois em 10% das vezes somos capazes de escolher o produto gourmet ou bio porque até nos faz sentir psicologicamente melhor. Agora, essa imagem da produção animal não vem do nada. É inegável. No passado, há algumas décadas, usava-se na Europa promotores de crescimento também. Mas essa ideia de que na produção de aves ou na produção de suínos cresce tudo muito rápido e que isso acontece graças ao uso de antibióticos cada vez é menos correta. 

E porquê? O que mudou?

Porque a pressão dos consumidores foi tão grande que estas coisas começaram a deixar de ser feitas.  Cada vez mais o consumidor quer respeito pelo bem estar animal, eliminação do uso de antibióticos, etc. E, portanto, a produção primária adaptou-se. Este tema da resistência antimicrobiana começou a ficar tão alto quer na agenda política quer na agenda dos media que a produção animal começou a trabalhar muito neste fator. Houve campanhas imensas na produção animal para reduzir a necessidade de uso de antibióticos. 

Os dados mostram essa redução?

Eu acho que somos muito privilegiados por sermos cidadãos da União Europeia, e a UE tem três agências que trabalham muito nisto e que fazem um relatório ultracomplexo que analisa os dados dos diferentes setores de forma integrada. E quais são os dois fatores do último relatório que são muito interessantes de analisar: por um lado, a produção animal reduziu muitíssimo a utilização de antibióticos, enquanto em medicina humana a utilização tem sido mais ou menos estável. Ainda mais interessante: se fizermos o ajuste pelo nível de biomassa - e um touro, por exemplo, tem uma biomassa muito superior à de um humano -, usam-se hoje em dia menos antibióticos na produção animal do que aquilo que se usa em humanos, na União Europeia. E este é um conceito que o cidadão comum não tem. Mas estarmos a apontar os dedos não tem interesse nenhum. Andámos 40 anos nisto e os resultados não são grande coisa. 

Mas há dados que permitam quantificar o risco, e a sua evolução ao longo dos anos, na cadeia alimentar?

Essa palavra é muito importante: dados. Na União Europeia, que será o que mais interessa ao nosso universo de leitores, a legislação é ultra forte e ultra implementada. Até há quem diga que demasiado. Mas isso já não é verdade noutras regiões ou países do mundo. Eu trabalho com muitos países e esta não é a realidade global. Muito do meu trabalho é ir a esses países e tentar ver por onde é que podemos começar, o que é que já têm,  o que é possível melhorar, etc, etc. Temos feito um esforço enorme na recolha de dados e a nível da União Europeia tem havido imenso investimento. Os últimos dados conhecidos são encorajadores. A nível europeu tem havido, como disse, uma redução enorme do consumo a nível animal e mesmo o nível de resistência de algumas bactérias que se costumam controlar também tem vindo a diminuir. E isto é importante sublinhar. Muitas vezes a mensagem nesta área da resistência antimicrobiana é muito apocalíptica, de que isto está tudo péssimo. E isto tem um risco muito grande. Se estivermos sempre a passar mensagens apocalípticas, as pessoas vão achar que já não importa ter nenhum cuidado porque isto já está tão mau que as ações não importam, vamos todos morrer e vamos. Por outro lado, quando eu digo que as coisas até nem estão assim tão más, é preciso cuidado também para não passar a ideia contrária, de que agora afinal já podemos relaxar. 

E não é, de todo, essa a mensagem…

Há um longo caminho a percorrer ainda. Como as coisas estavam mesmo muito más, aquilo que se fez foi que, como os antibióticos não são todos iguais, e há uns mais importantes do que outros, a preocupação foi hierarquizar: em relação àqueles que são mesmo vitais, fazer o máximo para que não haja resistências; depois há outros que, mesmo sendo importantes, podemos gerir de alguma forma. O facto de darmos rankings aos antibióticos permite-nos racionalizar o uso. Se um determinado antibiótico é vital para humanos, evita-se o uso nos animais, por exemplo. Ou pelo menos que sejam usados só para tratar, e não para prevenir ou controlar.  

Perdoe-me a insistência nos dados, mas quais são as estimativas do uso global anual total de antimicrobianos na agricultura? E qual a evolução dos últimos anos?

A nível global, o último relatório que temos disponível aponta para uma descida de cerca de 13%. Na UE, o valor de uso é mais ou menos de 100 miligramas por quilograma de biomassa animal. E o equivalente em pessoas é cerca de 140. Entre 2014 e 2021 houve uma redução de 44% no consumo de antimicrobianos em produção animal, enquanto a nível humano o consumo manteve-se mais ou menos estável. 

Como podem os consumidores mitigar o risco ao nível das escolhas de consumo?

Risco existe sempre. Até a dormir temos riscos. O controlo do consumidor começa por aí, por uma escolha consciente dos produtos que consome. Em geral, se um produto é comercializado na UE, a probabilidade de ter resíduos de antibióticos é baixíssima. Agora, se falarmos no consumo de leite não pasteurizado, no consumo de produtos crus, a possibilidade de termos bactérias resistentes a antibióticos é maior. Aliás, a possibilidade de consumirmos algum alimento que tenha uma bactéria resistente a antimicrobianos existe em qualquer parte do mundo, mas é eliminada se aplicarmos conceitos elementares de boas práticas de cozinha. Cozinhar os alimentos, lavar vegetais, não usar a mesma faca para todas as coisas, etc. Muitas vezes é tão simples quanto isto e nós, por diferentes motivos, complicamos demasiados as coisas.

Voltamos a ter agora um exemplo disso, com o problema do vírus da gripe das aves a espalhar-se por vacarias nos Estados Unidos e a infetar alguns humanos…

Exatamente. Aí, aparentemente, pelo que se sabe até hoje, a pasteurização tem sido eficaz. Nesse caso, produtos lácteos pasteurizados aparentemente não apresentam risco, mas se houver consumo de produtos crus esse risco de contaminação existe. 

Ou seja, não há razão para alarmismos em relação à cadeia alimentar? Que mensagem é que o público em geral precisa de apreender em relação à resistência antimicrobiana? 

Em primeiro lugar, temos de levar isto muito a sério. Quantificar mortes é complexo, vimos na época da COVID-19, mas o último trabalho publicado a nível global tem dois valores muito diferentes: 1,2 milhões de mortes diretamente por resistência a antibióticos e 5 milhões de pessoas cuja causa principal de morte não foi essa mas está associada a bactérias resistentes. Mas seja um número ou outro, são milhões a mais. O número de mortes causada por RAM é relevante, não deve ser negligenciado. E é preciso perceber que não é só mortes. O facto de ficarmos em casa alguns dias a tratar uma pneumonia ou o que seja que demora mais tempo a tratar e já só responde ao segundo ou terceiro antibiótico também tem um peso económico bastante grande. Agora, nós para produzirmos alimentação, precisamos de antibiótico. Podemos reduzir o uso, mas não podemos eliminá-los. Isso é inegável. Sem antibióticos não produzíamos alimentos em quantidade suficiente e teríamos fome. Nós quando pensamos em antibióticos pensamos em saúde, tratar doenças para não morrermos. Mas o conceito e o uso são muito mais vastos do que isso. O fenómeno é grave? É. Os números são maus? São. Até porque uma coisa é a realidade da UE e outra bem diferente a realidade global. E nós viajamos, importamos, vamos de férias.

Num mundo sem fronteiras, até que ponto podemos achar que estamos efetivamente seguros com abordagens tão diferentes em diversas regiões ou países?

Pois, e por isso é que eu gosto tanto de trabalhar aqui, ao nível das Nações Unidas. O nosso cantinho da União Europeia tem de facto padrões altos, mas há muitos outros sítios em que não estamos aí. Quando trazemos comida, ou vamos em viagem, ou aves migratórias, ou o vento, ou o ciclo da água, etc… o cenário global não é bom, há demasiadas pessoas a morrer. Mas temos evoluído ao nível da consciencialização. Há muitos países onde eu trabalho, Ásia e América Latina, onde ainda estamos nessa fase. Na UE felizmente já passámos essa fase há muito tempo. O cenário global não é bom, é grave e pode vir a ser ainda pior. Felizmente tem havido uma série de medidas nas últimas décadas na UE que têm ajudado a controlar o problema. E é o que nós podemos fazer, porque eliminar por completo é impossível, trata-se do mecanismo natural de resistência das bactérias. 

Que tem sido feito a nível mundial para controlar esse risco? Qual o papel da FAO nisto?

Temos trabalhado nisto há vários anos. Pode não parecer, mas o facto de a OMS dizer que precisamos de um plano de ação global contra esse problema tem um grande impacto. E isso aconteceu já em 2015. Isso é um sinal ao mais alto nível de tudo o que teve de ser feito a seguir. De um plano de ação global passou-se para os planos nacionais de ação contra a RAM, que Portugal tem e todos os países têm. O que falta a seguir? Implementar o plano de cada país. Muito do que nós fazemos na FAO, e que eu faço, é ir a países e ver se já têm um plano de ação, o que é que já implementaram e o que falta implementar.  

Quais as zonas mais críticas a nível de risco na segurança alimentar? 

É sempre delicado falar em países. O grande foco foi e tem sido nos BRICS - Brasil, Rússia, Índia, China - onde se espera que o consumo de antimicrobianos em produção animal em 2030 duplique os valores de 2010.

Jorge Pinto Ferreira esteve no Porto a participar no Congresso Internacional do ToxRun, unidade de investigação do Instituto Universitário de Ciências da Saúde da CESPU

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