“Há hospitais que ainda têm escalas por preencher em julho e em agosto, quer na área da Obstetrícia, que é a mais complicada, ou na de Pediatria, mas também há escalas de Medicina Interna, Cirurgia Geral e Ortopedia que não estão completas ou, quando estão, mais de metade dos turnos têm médicos prestadores de serviço. E estas são as especialidades que fazem as urgências gerais. As administrações fecham os olhos e esperam que os médicos resolvam o problema, isso não vai ser possível. As pessoas são as mesmas o ano todo e a maioria já completou 400 ou mais horas extraordinárias. Portanto, os problemas que vamos ter este verão serão os mesmos do ano passado ou piores. A exaustão é cada vez maior e a desmotivação também. Todos os anos a seguir ao verão há quem deixe o SNS”. O relato é feito ao DN por uma médica especialista, chefe de equipa nas urgências de um dos hospitais da região de Lisboa e Vale do Tejo, que pediu o anonimato, mas assegura que o cenário que se vai viver este ano, sobretudo em Lisboa e Vale do Tejo (LVT) e no Algarve, “não será diferente do de 2024, pode até ser pior. Não se sabe. Vai depender muito dos médicos prestadores de serviço, que podem comparecer ou não”.Neste sábado e domingo, dias 5 e 6, o site das escalas das urgências do SNS indica o encerramento de seis serviços em cada dia, sempre os mesmos. Na área da Obstetrícia fecham os erviços de Setúbal, Barreiro, Vila Franca de Xira, Santarém e Leiria, e na área de Pediatria fecha também o serviço de Vila Franca. Perante este cenário, o DN quis saber junto de quem está no terreno o que se prevê para os dois piores meses do ano, julho e agosto, os quais, nos últimos anos, têm sido marcados precisamente pelo fecho de urgências, inclusive, na área de cirurgia geral.Para a chefe de equipa que fala ao DN, este ano tal também pode acontecer, reforçando: “Pode ser pior.” Isto, apesar de haver um Plano de Resposta Sazonal para o Verão com orientações sobre escalas e libertação de camas que, segundo a Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde (DE-SNS), deveria dar a resposta necessária às populações. Aliás, confrontada com estas situações pelo DN a Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde (DE-SNS) argumenta mesmo: "Sempre que se verificam dificuldades em assegurar escalas completas que permitam o funcionamento ininterrupto de um serviço de urgência ao longo de todo o mês, a prioridade do Serviço Nacional de Saúde tem sido garantir que, em cada região e para cada tipo de urgência, existe permanentemente uma resposta disponível para as necessidades da população."No entanto, admite que “a escassez de recursos humanos, que afeta de forma estrutural o setor da Saúde, traduz-se, em alguns casos, na existência de períodos com escalas incompletas”, mas que estas, “em articulação com as Unidades Locais de Saúde (ULS), têm sido coordenadas soluções que assegurem a continuidade da resposta assistencial, reorganizando a oferta de forma a garantir que nenhuma região fique desprovida de cuidados urgentes e emergentes.”. É quase certo que os problemas serão os mesmos de 2024 Mas quem está no terreno, questiona: “Como é que os hospitais podem responder se nada mudou?” O presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH), Xavier Barreto, confirma ao DN ser “praticamente certo que este ano existam os mesmos problemas do ano passado”. A presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fnam), Joana Bordalo e Sá, também, até porque o feedback que “temos é que a situação está pior, o que é dramático para as pessoas. E, este verão, infelizmente, vai ser mais do mesmo ou até pior.” Maria João Tiago, da direção do Sindicato Independente dos Médicos (SIM) destaca que os problemas nas urgências na área de Lisboa e Vale do Tejo, sobretudo no que respeita à falta de médicos, são transversais a todas as unidades, defendendo que uma das soluções para a região seria classificar todas as suas vagas como carenciadas, não só para motivar os novos colegas que vão ingressar, como os que já lá estão a garantirem o funcionamento das unidades. Isto terá de ser feito, senão não adivinho nada de bom para o nosso SNS”, embora, saliente, que, apesar de tudo, as condições para a classe “têm vindo a melhorar com os acordos assinados pelo nosso sindicato”..Administradores hospitalares: Plano de Verão “é positivo”, mas “não impedirá fecho de urgências”. Helena Terleira, uma das médicas fundadoras do Movimento dos Médicos em Luta (MML), o qual, há dois anos, levou a cabo o protesto contra a realização de mais horas extra, além das legais, considera que “a desilusão e a desmotivação são hoje maiores”, o que pode explicar também que os problemas no verão sejam “piores”. E desabafa: “O momento que vivemos há dois anos não vai ser fácil repetir”, referindo-se à união da classe no protesto levado a cabo, considerando até que uma boa parte da desmotivação se deve “ao acordo alcançado pelo SIM”. Dois anos depois, “aquilo de que as pessoas se lembram é que não conseguiram melhores condições de trabalho e do dinheiro que perderam. Nos hospitais, nada mudou”. A médica conta ser este o sentimento que decorre das mensagens que ainda são partilhadas no grupo do MML. Neste grupo, comenta-se ainda os casos como o de Dermatologia, em Santa Maria, que foi denunciado recentemente, com um médico a ganhar mais de 51 mil euros em cirurgias adicionais num sábado, e que existem também noutros hospitais e deveriam ser investigados. “Só contribuem para a insatisfação de quem quer continuar no SNS”, afirma. Ou ainda “como o poder de Lisboa consegue abafar o que se passa no resto do país”.LVT e Algarve são as situações críticas. Norte e Centro aguentam-seMas se há algum consenso entre a classe médica é sobre o principal motivo que leva aos constrangimentos nas urgências, e não só durante o verão: “A falta de médicos”, dizem. Não só devido às saídas por reformas, mas também para trabalhar nos setores privados e social ou até pela emigração. Uma falta de médicos que há anos se tem feito sentir sobretudo na região de LVT e no Algarve, nas quais, certamente, se sentirá também maior pressão nestes dois meses. O representante dos administradores, Xavier Barreto, confirma que “o Algarve é uma grande preocupação para nós, mais que duplica a sua população nestes meses. E, por vezes, os hospitais de Faro e de Portimão têm de funcionar com equipas nos mínimos”.De acordo com Sara Proença, da direção do Sindicato dos Médicos da Zonal Sul (SMZS), o Algarve é uma preocupação, mas há outras regiões que o são também. Nesta altura, “sabemos que há hospitais com escalas abertas na área da Obstetrícia, que é a situação mais complicada, porque só pode fazer prestação de serviço quem tem a especialidade, mas também em Medicina Interna”, acrescentando: “E os hospitais que já têm escalas completas é à base de prestadores de serviço e, mesmo assim, com equipas deficitárias, nos mínimos”. Na área da Obstetrícia, a médica diz que “toda a Margem Sul do Tejo, bem como o Hospital Amadora-Sintra e até o de Santa Maria ainda não têm escalas completas para agosto. No Amadora-Sintra não há obstetras suficientes para manter o funcionamento das urgências todos os dias, em Vila Franca de Xira só há quatro obstetras, o que já não dá para assegurar os sete dias da semana durante o ano inteiro, quanto mais nas férias de verão”. O mesmo acontece em Setúbal, no Barreiro e no Garcia de Orta. Em Pediatria, continua a dirigente do SMZS, “os hospitais de Portimão e Faro chegam a ter só um especialista, mas o grande drama é que há hospitais que não estão a conseguir fechar escalas em Medicina Interna, como o Garcia de Orta, Amadora-Sintra e Cascais”.Questionada sobre se este ano também pode haver encerramentos de urgências nas áreas de Cirurgia Geral ou Ortopedia, a sindicalista considera que, a acontecer, “pode ser na Cirurgia Geral, mas sobretudo pela falta de anestesistas. Aqui no sul, as escalas de anestesia para as urgências não estão completas e isto é transversal a quase todos os hospitais. Os profissionais que há só dão, praticamente, para assegurar as urgências de obstetrícia abertas, o atendimento na cirurgia e na ortopedia”. Por isso, acredita que “este ano ainda vai ser pior, será sempre pior”, argumentando também que “nunca tinha visto tantas grávidas a parir em ambulâncias como já neste verão. Quase todas as semanas recebo grávidas nas urgências que pariram numa ambulância e que vêm ou do Oeste, das Caldas da Rainha, de Abrantes ou ainda de mais longe, onde muitas vezes há tão poucos profissionais que não há condições para internar estas mulheres”.. O presidente da APAH alerta ainda para a possibilidade de constrangimentos esporádicos noutras regiões. “Temos a região do Oeste, com o Hospital de Leiria, e, embora o norte tenha vindo a conseguir assegurar as suas escalas, no ano passado tivemos problemas em Braga, na Obstetrícia, e este ano pode acontecer também.”De resto, reforça, “São João, Santo António, Gaia, Guimarães e Viana do Castelo todos têm, com maior ou menor dificuldade, assegurado as suas urgências”. O mesmo tem acontecido na zona Centro onde o administrador refere que "as unidades de Coimbra, Viseu e Covilhã também estão a conseguir manter as urgências".Em relação a Braga, a presidente da Fnam diz saber que, nesta altura, o serviço de Obstetrícia já ativou o plano de contingência para “o nível 3 em quase todos os fins-de-semana e para algumas sextas-feiras também, o que significa que só há dois obstetras e que a urgência só funciona para emergências. Na Unidade Local de Saúde Entre-Douro e Vouga, a urgência de Obstetrícia não fecha, mas está a funcionar com as equipas reduzidas ao mínimo. Durante o dia, a escala é assegurada por dois especialistas e um interno, durante a noite há um interno apoiado por dois prestadores de serviços”..Internos garantem escalas de urgências no verão. No entanto, na resposta dada ao DN, a DE-SNS refere que, “no caso das zonas com maior pressão — nomeadamente, a Área Metropolitana de Lisboa, o Algarve e a Zona Oeste —, estão a ser implementadas medidas específicas no âmbito do Plano de Resposta Sazonal – Verão 2025. Este plano prevê, entre outras ações, o reforço da articulação regional entre serviços de urgência e unidades hospitalares, promovendo uma resposta integrada, equilibrada e ajustada às necessidades de cada território”. Mais uma vez, para quem está no terreno, "tais medidas e perspetivas para o futuro não se vêm”, garante Joana Bordalo e Sá. “Acredito mesmo que possa haver mais serviços a fechar nestes meses”, responsabilizando “o ministério de Ana Paula Martins, que tem sido incapaz de reverter esta situação”.Escalas completas à custa de prestadores de serviço que podem não comparecerContudo, o presidente da APAH destaca que, “nos casos urgentes, a rede do SNS funciona e os doentes são reencaminhados”, embora alerte também que os constrangimentos no verão podem mesmo agravar-se. "Os recursos humanos são, essencialmente, os mesmos que existem durante o ano e, nesta altura, as pessoas tiram férias”.Por outro lado, explica, os constrangimentos não se sentem só quando há urgências encerradas, mas também em todas as que mantém as portas abertas e que têm as equipas nos mínimos dos mínimos. “Uma coisa é ter uma urgência encerrada, outra é ter uma urgência aberta com recursos humanos abaixo do que seria expectável. O que tem também acontecido, por exemplo no Algarve e preocupa-nos muito”, disse, sustentando: “Muitas vezes olhamos para uma escala de julho e agosto e parece estar completa, mas, em muitos casos, mais de metade dos turnos são assegurados por prestadores de serviço, o que é um risco enorme. Chegamos ao dia, o prestador não aparece e não podemos fazer nada, porque não é trabalhador do hospital. Portanto, pensar-se, ao dia de hoje, que a escala está preenchida é um engano, porque, na verdade, está, mas com pessoas que podem não aparecer para trabalhar.” Por tudo isto, conclui que “podemos vir a ter mais problemas do que aqueles que julgamos”, comentando ainda que “a ministra da Saúde sabe disto, tanto que está no programa do Governo mexer no regime de prestação de serviços para o desincentivar, e espero que, de facto, façam alguma coisa neste sentido durante este mandato”.Para Xavier Barreto, a solução no imediato seria “concentrar a atividade nalgumas regiões, não há outra hipótese. EM LVT isso é possível. O Governo e a Direção Executiva já deram esse sinal, mas não sei se vão fazer alguma coisa a tempo do verão. Gostava que o fizessem, por exemplo, na área da Obstetrícia”. Depois, a médio e longo prazo, o administrador defende que, “claramente, há que contratar mais médicos, com propostas de trabalho competitivas ou retê-los no SNS, porque temos médicos que não estão só conosco estão também no privado ou no social e investir mais na carreira médica pode ser uma forma de eles quererem ficar no serviço público”.Tanto a Fnam como o SIM concordam em que o problema no SNS “não são só as urgências”. Joana Bordalo e Sá destaca o estado-geral do SNS dando como exemplo o apagão informático no Amadora-Sintra que “é o culminar de uma situação inacreditável”, questionando: “Como chegámos a este ponto?”, sendo que o contraponto “é ver grupos privados a investirem muitos milhões na Saúde, o que significa que, se investem, têm a certeza de que vão ter negócio”.Maria João Tiago, do SIM, salienta os problemas das urgências hospitalares e a falta de médicos, mas também a falta de condições de trabalho em muitos centros de saúde, nomeadamente da região de Lisboa e Vale do Tejo, que, nesta semana, com a onda de calor “estiveram abertos e a funcionar com 35 graus nas instalações. Apenas com ventoinhas que nem renovam o ar”.Uma coisa é certa, mais um ano e mais um verão com turnos à base de médicos prestadores de serviço, segundo quem está no terreno. Se estes falharem "não há como resolver a situação" e os "cuidados prestados à população são postos em causa".