Uma sepultura para descanso eterno está pela hora da morte
Cismou, mal entrou no remanso da reforma, que não queria ser enterrado quando chegasse a sua hora e muito menos que o enfiassem na fornalha do crematório. O que lhe convinha para descansar em paz era um jazigo, onde a passagem lenta dos anos se encarregaria de lhe decompor os cento e tais quilos de corpo. Encontrou o que procurava no Cemitério dos Prazeres, em Lisboa: cinco metros quadrados, pé-direito considerável, altura suficiente para três prateleiras de cada lado. O jazigo desocupado e restaurado, mármores lavados e polidos, tão brancos como alabastro, estava à venda por 70 mil euros - à razão de 14 mil euros por metro quadrado.
Fora mandado construir por um comerciante de torna-viagem, fortuna cavada no Brasil e derretida em Lisboa, que no fim da vida não tinha mais do que o necessário para uma obra modesta. O atual proprietário recebeu o jazigo em herança. Desalojou os seis antepassados, mandando os esqueletos avoengos para o crematório, e colocou-o à venda livre de ónus e encargos. O jazigo, pronto a habitar, valia cada cêntimo. A localização era excelente - a dois passos do miradouro com vista privilegiada para o Tejo e a Ponte 25 de Abril, virado a sul, numa transversal da alameda ladeada por ciprestes centenários. A vizinhança também era recomendável.
O Cemitério dos Prazeres tem a dimensão de uma cidade - uma cidade dos mortos de 12 mil hectares, o equivalente a 12 campos de futebol, entrecortada por 54 ruas e alamedas, praças, rotundas e travessas. Foi inaugurado em 1833 para dar vazão à mortandade causada pela epidemia de cólera e, dominado o flagelo, acabou por ir dando sepultura ao escol da cidade. A nobreza e a aristocracia, a alta-roda da banca e do comércio, os vultos da política, os mais ilustres chefes de família - a maior parte da elite vivia nesta zona da cidade - mandaram construir nos Prazeres as suas últimas moradas. O cemitério tem cerca de sete mil jazigos.
Um lugarzinho tranquilo nos Prazeres já não é para todos. Já foi tempo em que construtores compravam lotes de terreno e construíam jazigos para os vender. Quem morre na freguesia da Estrela não tem lugar garantido no seu cemitério, que está lotado e sem quase nenhum espaço livre. A câmara não vende terreno para jazigos - e apenas escritores, artistas, bombeiros sapadores e polícias podem ter direito a sete palmos de terra nos respetivos talhões, se houver espaço e com autorização camarária, e mesmo assim temporariamente: o que restará do corpo é exumado ao fim de cinco anos, para dar lugar a novo defunto. Quem quiser repousar num jazigo terá que esperar por um que seja colocado à venda pelos proprietários - ou pela hasta pública dos que reverteram para a posse municipal.
Os jazigos são considerados abandonados quando os proprietários não são conhecidos e deixam de exercer os seus direitos por um período superior a 15 anos. Aquele jazigo virado a sul, perto do miradouro debruçado sobre o rio, estava cuidado. O interessado ficou encantado. Tinha encontrado o seu sepulcro. A vizinhança não podia ser mais seleta - viscondes, condes, marqueses, conselheiros, prósperos comerciantes. Mas comprar um jazigo tem muito que se lhe diga. “Nem toda a gente sabe os cuidados que deve ter”, diz Carlos Almeida, herdeiro de uma funerária de Lisboa, uma vida a lidar com a morte, presidente da Associação Nacional das Empresas Lutuosas (ANEL).
A primeira precaução que se exige a quem compra um jazigo é levar em conta o comprimento das prateleiras. O protagonista desta história - homem corpulento do alto do seu metro e noventa - não cuidou de as medir. Morreu subitamente menos de um ano depois da escritura. O agente funerário estendeu-lhe a fita métrica dos pés à cabeça - só para confirmar a medida tirada a olho treinado. A urna teria que ter dois metros e picos.
Ninguém imaginava o transtorno que estava para vir. Na hora de depositar o corpo na sua última morada - a surpresa! O ataúde não cabia. A prateleira era demasiado curta. Faltava-lhe um bom palmo, bem medido, ao comprido. Mas era ali que o falecido queria ficar, seria ali que a família o depunha. O corpo teve que ser acomodado numa urna mais pequena - e lá ficou, embora encolhido na mortalha acanhada, como era a sua vontade.
Não é difícil comprar um jazigo. Há por onde escolher. Os mais apressados podem recorrer à internet, onde encontrarão jazigos à venda. Algumas agências imobiliárias, embora discretamente e sem anúncios, também os negoceiam. Os preços - entre os 20 mil e os 100 mil euros - variam conforme a área, a capacidade de hospedagem e a localização. Sim, tal como na vida, a localização da morada depois da morte importa. Um jazigo escondido num qualquer beco do cemitério vale menos do que um outro às vistas da rua principal. Os mais caros estão bem localizados e têm cave com espaço para hospedar os vindouros com largueza.
Quem não tiver pressa nenhuma, pode esperar pelos leilões municipais para encontrar o jazigo dos seus sonhos. Não basta ter dinheiro para licitar. Os regulamentos só admitem licitantes com papel passado a comprovar que nada devem às Finanças e à Segurança Social. A autarquia de Coimbra vai promover a venda em hasta pública de 10 jazigos do Cemitério da Conchada. Os valores-base de licitação foram fixados entre 24.332 euros e os 53.200 euros. A Câmara de Lisboa já selecionou três dezenas de jazigos, nos Prazeres e no Alto de São João, que em data a anunciar serão vendidos em hasta pública.
Cemitérios sem espaço
Ainda não chegámos ao ponto de Hong Kong - território densamente povoado, com pouco mais de mil quilómetros quadrados e uma população de sete milhões de pessoas -, em que os cemitérios, por falta de espaço disponível, estão distribuídos por camadas nas encostas das montanhas íngremes. Portugal tem uma área 93 vezes maior e tem apenas mais três milhões de habitantes. Ainda assim, os nossos cemitérios estão a ficar quase sem espaço. Há câmaras municipais que já não vendem terra para sepulturas perpétuas. Lisboa ainda vende. O preço de uma destas campas para descansar eternamente em paz custa 11.283 euros. São as mais caras do país - menos de metade do preço praticado no célebre Highgate Cemetery, em Londres, onde estão sepultados, por exemplo, Karl Marx, George Michael e George Eliot. O Cemitério de Fátima é o segundo mais caro. Uma sepultura perpétua nas proximidades da Cova da Iria fica por 7500 euros.
As cremações são cada vez mais populares nas regiões de Lisboa e do Porto. Segundo a ANEL, cerca de 60% dos mortos em Lisboa são cremados. No Porto, de acordo com a mesma fonte, metade dos falecidos vão para o crematório. Portugal tem 39 fornos crematórios - entre municipais e privados. A taxa de cremações a nível nacional, pelas contas da ANEL, está a aumentar - mas ainda não ultrapassará os 15%: dos cerca de 110 mil mortos registados por ano em Portugal, apenas 16.500 têm como destino final o crematório.
O último cemitério construído em Lisboa - o de Carnide - não recebe corpos. Não por falta de espaço para sepulturas. Espaço ali é o que não falta. Mas porque foi mal construído. Foi anunciado nos anos 90 do século passado como um projeto revolucionário - de tal maneira revolucionário e moderno que ali está, vazio de campas, sem utilidade. Os cadáveres não se decompõem. Não tem um único cipreste, a árvore que acompanha os cemitérios: além do significado simbólico de crescerem em direção ao céu e de se manterem verdes durante as quatro estações, os ciprestes, com as suas raízes profundas, drenam as águas do subsolo. A excessiva humidade e a argila da terra atrasam a decomposição dos corpos. Não há mais sepultamentos em Carnide.
Portugal tem cerca de 4500 cemitérios. A maior parte luta contra a falta de espaço. “A situação ainda não é dramática, mas começa a ser grave nos concelhos do litoral”, diz Carlos Almeida. Os três crematórios do Algarve - o municipal de Faro e os dois privados de Albufeira - fizeram cerca de duas mil cremações nos dois últimos anos de funcionamento e têm contribuído para aliviar os cemitérios em risco de sobrelotação.
O distrito da Guarda, longe do litoral, tem espaço de sobra para enterrar os seus mortos. Não há região do país com mais cemitérios. São 450. Em 10 anos, de 2011 a 2021, o distrito perdeu quase 20 mil habitantes, segundo o Instituto Nacional de Estatística: passou de 160.939 residentes para 142.974 - e os funerais, naturalmente, deixaram de ser negócio. A maior parte dos cemitérios da Guarda - na proporção de um para cerca de 300 habitantes - não recebe um funeral há anos.