Conversamos à mesa do café no MAAT, com sumo de laranja, croissants e cafés a enquadrar o encontro. A boa onda de Maria Paula enche a sala desde que ali entrou, o sorriso contagia tudo à volta. Peço-lhe que me conte a sua vida. "Ui... Aos 69 anos tem-se muita coisa para dizer", ri-se com os olhos, com os gestos, com o corpo todo. A sua simpatia vibrante faz parecer que nos conhecemos há uma vida, apesar de nos encontrarmos ali pela primeira vez com o MAAT a estender-se em reflexos sobre o Tejo..Maria Paula nasceu e cresceu em Lisboa, mas tem ascendência africana. "O avô branco de Viseu encantou-se por uma senegalesa com quem teve seis filhos, a única menina a minha mãe. Estudaram todos no Colégio Moderno e depois a mãe casou-se com um oficial da Força Aérea, também branco, e por isso eu e o meu irmão somos já mulatos filhos de mulata." É talvez nessas raízes africanas, que foi procurar com toda a família ainda há uns meses, numa viagem cultural de três gerações ao Senegal - com a filha, Rita, e as netas por quem se derrete, Maria Teresa e Maria Luísa, de 9 e 5 anos -, que bebe a musicalidade da voz e a gargalhada plena de vida, mesmo quando descreve momentos mais difíceis..Conta-me que se formou em Gestão e Administração Escolar e depois fez Mestrado em Comunicação Organizacional, mas ainda antes passou por Arquitetura um ano. "Fui lá buscar um marido!"."Isto aconteceu quando se deu o 25 de Abril e as escolas fecharam. E nessa altura eu não queria ficar parada e disse à minha mãe que ia para o Ministério Primário. Nós morávamos ali no bloco Califa, em Benfica, e a minha mãe foi perentória: "Nem pense nisso!"" Explica que ir daqui a Loures nesse tempo levava um dia e muito dinheiro: "3,750 contos! Era uma renda. As pessoas nem têm a noção." Mas claro que Maria Paula, com uma revolução na rua, não ia dar ouvidos à mãe, e foi mesmo ensinar quem precisava, ao lado de muitos que viriam a ocupar posições relevantes no país, como Marçal Grilo, Ana Benavente ou Cristina Ponte..Por essa altura, Maria Paula andava pelos 19 anos e não levaria muito mais até se casar, aos 22 - e ser mãe um ano mais tarde - com o seu antónimo perfeito, um homem calmo, ponderado, que nunca se esquece de nada. "Dá-me imensos nervos", ri-se Maria Paula, recordando o dia em que se conheceram. "Estávamos no café Roma a estudar Matemática, eu não atinava com aquilo e ele iria explicar-me e insinuaram que ainda acabávamos casados, ao que ele respondeu: "Eu?! Casar com ela? Livra!" Foi a primeira coisa que me disse na vida." Foi o suficiente..Maria Paula acabou no último ano a carreira como professora universitária, mas nunca deixou de exercer como "professora primeira", no primeiro ciclo do secundário, em zonas degradadas de Lisboa. Foi essa a sua aposta e o que a levou a trabalhar com comunidades ciganas, refugiados de Leste, retornados... A educação é a sua paixão e foi aí que se realizou..Foi formadora da UCCLA (União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa) na época de João Soares e cumpriu todos os programas de formação de professores da instituição nessas capitais. Eram voluntários que faziam três semanas de cada vez, em realidades enriquecedoras mas que Maria Paula reconhece que eram muitas vezes tão duras quanto gratificantes. Fê-lo durante sete anos e desses tempos conta histórias que ainda lhe correm nas veias. Recorda por exemplo quando esteve em Moçambique, depois das cheias, de ver chegar professoras que tinham sido mães e cujos filhos bebés tinham morrido, que vinham com eles ainda amarrados ao peito e só ali os largavam, porque queriam muito aprender. Também teve episódios divertidos, como aquele que a levou ao Huambo e lhe rendeu um amigo para a vida. "A guerra tinha terminado e fui convidada a falar sobre a minha experiência na UCCLA e eu comentei que só me faltava Angola e estava à espera do convite. A brincar, claro! Então, veio um negro enorme ter comigo e disse que eu ia receber o convite." Maria Paula não ligou, achou que era conversa mole, charminho angolano, até que começou a receber chamadas insistentes do dito senhor... e este finalmente se identificar como governador do Huambo e lhe garantir a entrada..Esses momentos que hoje recorda com um brilho de saudade nos olhos não pesam menos do que outros vividos com as comunidades mais frágeis aqui mesmo, em Portugal. Incluindo a comunidade cigana, com quem mantém laços de amizade e respeito até hoje. "Eu conheço bem o melhor e o pior deles, por isso é que não aguento ouvir afirmações racistas. São 3% os que vivem à custa, não é toda uma comunidade!" A indignação é amaciada pelas melhores recordações: "Ainda hoje, os meus antigos alunos quando me encontram tratam-me por professora, vêm dar beijos, convidam-me para os casamentos...".Acredita que com vontade se pode fazer a diferença e exemplifica com casos concretos. Como a escola que António Costa inaugurou quando faltavam apenas dois anos para Maria Paula se reformar, nas Galinheiras, e para cuja liderança a convidou. Um caso de sucesso que acabou por lhe servir de tese de mestrado - além do imenso orgulho de confirmar que tratar aqueles jovens de uma escola de intervenção primária como se frequentassem uma escola privada devolvera resultados tão bons como os de um colégio. "Conseguimos dos melhores resultados de Lisboa, em três anos consecutivos. Depois, a direção foi desmembrada, os professores substituídos e na sequência disso foi a pior do ranking. O que prova que, se mantiver equipas e lideranças, os resultados mantêm-se." Conta também como pegou numa profissional que agonizava com 75 alunos e uma sentença de morte anunciada e lhe deu a volta, triplicando os estudantes e multiplicando as saídas para uma comunidade alargada que continua a ser bem sucedida. "Pediram-me que desse um jeitinho, mas eu isso não faço. Se aceito um desafio, atiro-me de cabeça. Porque estas pessoas muitas vezes só precisam de uma missão para serem bem sucedidas - e eu dou-lhes isso. Era por isso que me chamavam a rainha Midas, porque onde quer que pusesse as mãos, transforma-se.".Essa missão pode ser fazer entender que gestos simples podem fazer um longo caminho, como quando constatou, em pandemia, que uma série de velhotes ia buscar comida à sua escola, arriscando sair à rua sem proteção, e mobilizou a comunidade escolar para fazer máscaras e distribuir-lhes: o vigilante trouxe o lençol de bebé da filha, as empregadas carregaram as máquinas de costura e criaram 80 "máscaras com história ". Mas aquilo a que chama missão também se materializa no que fez com a comunidade de vendedores ambulantes de São Tomé, a quem levou tintas para pintarem os seus quadros, que trouxe para vender em Portugal, devolvendo-lhes depois o fruto do seu trabalho. Um par deles chegou a conseguir comprar casa..Ou ainda nos encontros que organizou no IDS, para celebrar os 30 anos da instituição, contando com as visitas e testemunhos de pessoas como Palo Batista, Dino d"Santiago, Ricardo Mexia ou Catarina Furtado, a levar aos jovens conselhos de vida. "Valeu por um semestre!"."Um dos miúdos, santomense, contou ali, em frente a toda a comunidade escolar, que sofreu bullying quando veio para Portugal, aos 12 anos, com o pai que vinha fazer hemodiálise. Ele só tinha a roupa do corpo e cheirava mal. E aos 18 anos, chorou a contar isto a 300 pessoas.".E como se lida com essa dor alheia quando já não se pode fazer nada? De emoções à flor da pele, Maria Paula ainda tem lágrimas nos olhos quando conta aquilo que antes ouviu entre lágrimas, mas não tem dúvidas de que se pode sempre fazer algo. O que a tira do sério é que outros não pensem assim. "Aqueles professores não viram o que se passava? Não repararam que o rapaz só tinha uma roupa? Não nasceram para professores.".Quanto a ela, sabendo que outros poderiam sofrer o mesmo, deitou mãos à obra: comprou meia dúzia de armários, encheu-os de roupa e comida e dispô-los junto ao gabinete da psicóloga da escola para que quem precise possa recolher bens com privacidade e liberdade.."Desde criança que eu era capaz de mobilizar o mundo", resume Maria Paula, que começou por se ver farmacêutica - "ficava encantada com os armários antigos" -, mas cuja vida mudou numa visita às tias, em Caminha. "Eram cinco irmãs - todas professoras - e adorei ver tantos meninos numa sala. Fiquei apaixonada por aquilo.".Pode alguém tão positivo, tão atirado para a frente, ter um mau momento? Quando lhe pergunto, responde de rajada. "O pior momento da minha vida foi a morte do meu pai. Ele era piloto e ligaram-nos uma noite de repente a dizer que o avião tinha caído. Foi marcante, terrível, porque eu tinha 19 anos e foi totalmente inesperado. De resto, corre-me tudo sempre bem. A vida tem sido muito boa para mim.".Essa "vida boa" passa também pelos escapes que Maria Paula não dispensa, do ténis que toda a vida jogou (foi sócia do CIF durante décadas) ao ski aquático de que um acidente a afastou há um par de anos apenas, substituído pelo golfe. Mas também pelo regresso à natureza, agora já sem trepar às árvores, como em criança, mas desfrutando em pleno da sua nova morada em Azeitão, com o marido e a golden retriever Cereja, e onde já garante às netas a experiência da vida animal, da terra, da serra. "Vendo como a minha infância era livre acho que as miúdas são umas infelizes, porque não podem ter essa vida de sair de manhã e só regressar à noitinha. Mas aqui têm ao menos um gostinho disso.".Quanto a Maria Paula, "sportinguista ferrenha", confessa que ainda sente algum formigueiro do que deixou na cidade - e por isso vem a Lisboa duas vezes por semana, passa pela escola, combina programas com as amigas -, mas está a adorar a calmaria desta semirreforma. "Voltei a ler romances, voltei ao Eça e ao Padre António Vieira, e estou a adorar", entusiasma-se, confessando ser suscetível às letras. "Venho de uma família de jornalistas", simplifica - basta dizer que o marido (filho do fundador da Casa da Imprensa, Mário Branco) trocou a arquitetura pela comunicação e o irmão de Maria Paula, Manuel Dias Coelho, depois de anos como jornalista parlamentar, foi com Maria Antónia Paula e Helena Sacadura Cabral cofundador de revistas como a Máxima e a GQ. Ela própria fez umas incursões pelos cadernos dedicados às Universidades, no então Diário Económico, e ainda no Público..Por agora, os planos desta educadora de mão cheia para o futuro incluem uma série de programas com as netas - viagens culturais, mas também de puro prazer, à medida dos gostos delas, como a que já tem desenhada para o fim do ano (ou não fosse ela professora...), à Disney e à Paramount. "Tenho de aproveitar o mais possível estar com elas enquanto posso", explica. Mas também quer continuar a ter trabalho de projeto. "E fazer voluntariado hospitalar oncológico infantil, talvez com a escola", diz, de modo casual mas obviamente revelando uma ideia que vem amadurecendo há meses. "Sei que é pesado, mas aquelas crianças precisam de alguém alegre, que não dramatize. E para mim está sempre tudo bem.".Antes de a deixar ir embora, tenho de saber: Arrepende-se de alguma coisa? "Talvez de não ter tido outra Rita (outra filha ou filho) - mas só sinto isso agora, porque sempre vivi rodeada de crianças. Se tivesse tido mais filhos, teria mais netos." O sonho de uma mulher que nasceu para partilhar a sua própria alma.
Conversamos à mesa do café no MAAT, com sumo de laranja, croissants e cafés a enquadrar o encontro. A boa onda de Maria Paula enche a sala desde que ali entrou, o sorriso contagia tudo à volta. Peço-lhe que me conte a sua vida. "Ui... Aos 69 anos tem-se muita coisa para dizer", ri-se com os olhos, com os gestos, com o corpo todo. A sua simpatia vibrante faz parecer que nos conhecemos há uma vida, apesar de nos encontrarmos ali pela primeira vez com o MAAT a estender-se em reflexos sobre o Tejo..Maria Paula nasceu e cresceu em Lisboa, mas tem ascendência africana. "O avô branco de Viseu encantou-se por uma senegalesa com quem teve seis filhos, a única menina a minha mãe. Estudaram todos no Colégio Moderno e depois a mãe casou-se com um oficial da Força Aérea, também branco, e por isso eu e o meu irmão somos já mulatos filhos de mulata." É talvez nessas raízes africanas, que foi procurar com toda a família ainda há uns meses, numa viagem cultural de três gerações ao Senegal - com a filha, Rita, e as netas por quem se derrete, Maria Teresa e Maria Luísa, de 9 e 5 anos -, que bebe a musicalidade da voz e a gargalhada plena de vida, mesmo quando descreve momentos mais difíceis..Conta-me que se formou em Gestão e Administração Escolar e depois fez Mestrado em Comunicação Organizacional, mas ainda antes passou por Arquitetura um ano. "Fui lá buscar um marido!"."Isto aconteceu quando se deu o 25 de Abril e as escolas fecharam. E nessa altura eu não queria ficar parada e disse à minha mãe que ia para o Ministério Primário. Nós morávamos ali no bloco Califa, em Benfica, e a minha mãe foi perentória: "Nem pense nisso!"" Explica que ir daqui a Loures nesse tempo levava um dia e muito dinheiro: "3,750 contos! Era uma renda. As pessoas nem têm a noção." Mas claro que Maria Paula, com uma revolução na rua, não ia dar ouvidos à mãe, e foi mesmo ensinar quem precisava, ao lado de muitos que viriam a ocupar posições relevantes no país, como Marçal Grilo, Ana Benavente ou Cristina Ponte..Por essa altura, Maria Paula andava pelos 19 anos e não levaria muito mais até se casar, aos 22 - e ser mãe um ano mais tarde - com o seu antónimo perfeito, um homem calmo, ponderado, que nunca se esquece de nada. "Dá-me imensos nervos", ri-se Maria Paula, recordando o dia em que se conheceram. "Estávamos no café Roma a estudar Matemática, eu não atinava com aquilo e ele iria explicar-me e insinuaram que ainda acabávamos casados, ao que ele respondeu: "Eu?! Casar com ela? Livra!" Foi a primeira coisa que me disse na vida." Foi o suficiente..Maria Paula acabou no último ano a carreira como professora universitária, mas nunca deixou de exercer como "professora primeira", no primeiro ciclo do secundário, em zonas degradadas de Lisboa. Foi essa a sua aposta e o que a levou a trabalhar com comunidades ciganas, refugiados de Leste, retornados... A educação é a sua paixão e foi aí que se realizou..Foi formadora da UCCLA (União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa) na época de João Soares e cumpriu todos os programas de formação de professores da instituição nessas capitais. Eram voluntários que faziam três semanas de cada vez, em realidades enriquecedoras mas que Maria Paula reconhece que eram muitas vezes tão duras quanto gratificantes. Fê-lo durante sete anos e desses tempos conta histórias que ainda lhe correm nas veias. Recorda por exemplo quando esteve em Moçambique, depois das cheias, de ver chegar professoras que tinham sido mães e cujos filhos bebés tinham morrido, que vinham com eles ainda amarrados ao peito e só ali os largavam, porque queriam muito aprender. Também teve episódios divertidos, como aquele que a levou ao Huambo e lhe rendeu um amigo para a vida. "A guerra tinha terminado e fui convidada a falar sobre a minha experiência na UCCLA e eu comentei que só me faltava Angola e estava à espera do convite. A brincar, claro! Então, veio um negro enorme ter comigo e disse que eu ia receber o convite." Maria Paula não ligou, achou que era conversa mole, charminho angolano, até que começou a receber chamadas insistentes do dito senhor... e este finalmente se identificar como governador do Huambo e lhe garantir a entrada..Esses momentos que hoje recorda com um brilho de saudade nos olhos não pesam menos do que outros vividos com as comunidades mais frágeis aqui mesmo, em Portugal. Incluindo a comunidade cigana, com quem mantém laços de amizade e respeito até hoje. "Eu conheço bem o melhor e o pior deles, por isso é que não aguento ouvir afirmações racistas. São 3% os que vivem à custa, não é toda uma comunidade!" A indignação é amaciada pelas melhores recordações: "Ainda hoje, os meus antigos alunos quando me encontram tratam-me por professora, vêm dar beijos, convidam-me para os casamentos...".Acredita que com vontade se pode fazer a diferença e exemplifica com casos concretos. Como a escola que António Costa inaugurou quando faltavam apenas dois anos para Maria Paula se reformar, nas Galinheiras, e para cuja liderança a convidou. Um caso de sucesso que acabou por lhe servir de tese de mestrado - além do imenso orgulho de confirmar que tratar aqueles jovens de uma escola de intervenção primária como se frequentassem uma escola privada devolvera resultados tão bons como os de um colégio. "Conseguimos dos melhores resultados de Lisboa, em três anos consecutivos. Depois, a direção foi desmembrada, os professores substituídos e na sequência disso foi a pior do ranking. O que prova que, se mantiver equipas e lideranças, os resultados mantêm-se." Conta também como pegou numa profissional que agonizava com 75 alunos e uma sentença de morte anunciada e lhe deu a volta, triplicando os estudantes e multiplicando as saídas para uma comunidade alargada que continua a ser bem sucedida. "Pediram-me que desse um jeitinho, mas eu isso não faço. Se aceito um desafio, atiro-me de cabeça. Porque estas pessoas muitas vezes só precisam de uma missão para serem bem sucedidas - e eu dou-lhes isso. Era por isso que me chamavam a rainha Midas, porque onde quer que pusesse as mãos, transforma-se.".Essa missão pode ser fazer entender que gestos simples podem fazer um longo caminho, como quando constatou, em pandemia, que uma série de velhotes ia buscar comida à sua escola, arriscando sair à rua sem proteção, e mobilizou a comunidade escolar para fazer máscaras e distribuir-lhes: o vigilante trouxe o lençol de bebé da filha, as empregadas carregaram as máquinas de costura e criaram 80 "máscaras com história ". Mas aquilo a que chama missão também se materializa no que fez com a comunidade de vendedores ambulantes de São Tomé, a quem levou tintas para pintarem os seus quadros, que trouxe para vender em Portugal, devolvendo-lhes depois o fruto do seu trabalho. Um par deles chegou a conseguir comprar casa..Ou ainda nos encontros que organizou no IDS, para celebrar os 30 anos da instituição, contando com as visitas e testemunhos de pessoas como Palo Batista, Dino d"Santiago, Ricardo Mexia ou Catarina Furtado, a levar aos jovens conselhos de vida. "Valeu por um semestre!"."Um dos miúdos, santomense, contou ali, em frente a toda a comunidade escolar, que sofreu bullying quando veio para Portugal, aos 12 anos, com o pai que vinha fazer hemodiálise. Ele só tinha a roupa do corpo e cheirava mal. E aos 18 anos, chorou a contar isto a 300 pessoas.".E como se lida com essa dor alheia quando já não se pode fazer nada? De emoções à flor da pele, Maria Paula ainda tem lágrimas nos olhos quando conta aquilo que antes ouviu entre lágrimas, mas não tem dúvidas de que se pode sempre fazer algo. O que a tira do sério é que outros não pensem assim. "Aqueles professores não viram o que se passava? Não repararam que o rapaz só tinha uma roupa? Não nasceram para professores.".Quanto a ela, sabendo que outros poderiam sofrer o mesmo, deitou mãos à obra: comprou meia dúzia de armários, encheu-os de roupa e comida e dispô-los junto ao gabinete da psicóloga da escola para que quem precise possa recolher bens com privacidade e liberdade.."Desde criança que eu era capaz de mobilizar o mundo", resume Maria Paula, que começou por se ver farmacêutica - "ficava encantada com os armários antigos" -, mas cuja vida mudou numa visita às tias, em Caminha. "Eram cinco irmãs - todas professoras - e adorei ver tantos meninos numa sala. Fiquei apaixonada por aquilo.".Pode alguém tão positivo, tão atirado para a frente, ter um mau momento? Quando lhe pergunto, responde de rajada. "O pior momento da minha vida foi a morte do meu pai. Ele era piloto e ligaram-nos uma noite de repente a dizer que o avião tinha caído. Foi marcante, terrível, porque eu tinha 19 anos e foi totalmente inesperado. De resto, corre-me tudo sempre bem. A vida tem sido muito boa para mim.".Essa "vida boa" passa também pelos escapes que Maria Paula não dispensa, do ténis que toda a vida jogou (foi sócia do CIF durante décadas) ao ski aquático de que um acidente a afastou há um par de anos apenas, substituído pelo golfe. Mas também pelo regresso à natureza, agora já sem trepar às árvores, como em criança, mas desfrutando em pleno da sua nova morada em Azeitão, com o marido e a golden retriever Cereja, e onde já garante às netas a experiência da vida animal, da terra, da serra. "Vendo como a minha infância era livre acho que as miúdas são umas infelizes, porque não podem ter essa vida de sair de manhã e só regressar à noitinha. Mas aqui têm ao menos um gostinho disso.".Quanto a Maria Paula, "sportinguista ferrenha", confessa que ainda sente algum formigueiro do que deixou na cidade - e por isso vem a Lisboa duas vezes por semana, passa pela escola, combina programas com as amigas -, mas está a adorar a calmaria desta semirreforma. "Voltei a ler romances, voltei ao Eça e ao Padre António Vieira, e estou a adorar", entusiasma-se, confessando ser suscetível às letras. "Venho de uma família de jornalistas", simplifica - basta dizer que o marido (filho do fundador da Casa da Imprensa, Mário Branco) trocou a arquitetura pela comunicação e o irmão de Maria Paula, Manuel Dias Coelho, depois de anos como jornalista parlamentar, foi com Maria Antónia Paula e Helena Sacadura Cabral cofundador de revistas como a Máxima e a GQ. Ela própria fez umas incursões pelos cadernos dedicados às Universidades, no então Diário Económico, e ainda no Público..Por agora, os planos desta educadora de mão cheia para o futuro incluem uma série de programas com as netas - viagens culturais, mas também de puro prazer, à medida dos gostos delas, como a que já tem desenhada para o fim do ano (ou não fosse ela professora...), à Disney e à Paramount. "Tenho de aproveitar o mais possível estar com elas enquanto posso", explica. Mas também quer continuar a ter trabalho de projeto. "E fazer voluntariado hospitalar oncológico infantil, talvez com a escola", diz, de modo casual mas obviamente revelando uma ideia que vem amadurecendo há meses. "Sei que é pesado, mas aquelas crianças precisam de alguém alegre, que não dramatize. E para mim está sempre tudo bem.".Antes de a deixar ir embora, tenho de saber: Arrepende-se de alguma coisa? "Talvez de não ter tido outra Rita (outra filha ou filho) - mas só sinto isso agora, porque sempre vivi rodeada de crianças. Se tivesse tido mais filhos, teria mais netos." O sonho de uma mulher que nasceu para partilhar a sua própria alma.