"Uma cidade como Vila Real, como as outras, precisa do seu Teatro"

Rui Araújo questiona qual é o sinal que se quer dar quando se fecham teatros e há exceções na televisão (essa pandemia fatal de frivolidade).

Só à noite vejo ruas vazias. De dia há trabalhos, pessoas que se deslocam para adquirir víveres ou para manutenção da saúde física e mental - e isto é de uma simbologia inquietante. O confinamento parece reduzir a existência humana a uma expressão mínima: trabalho, corpo, sanidade, alimentação. Alimentação do corpo. Sobrevive-se, vive-se menos.

Aquilo que nos torna diferentes, o ócio, o lazer, o convívio, os afetos para lá do núcleo familiar, as amizades, a cultura, processa-se agora digitalmente, ou não se processa de todo.

Há filtros entre nós e os outros, entre nós e a cultura. A experiência presencial da arte - o confronto com o outro, com a sua respiração, a sua energia vital - foi relegada, suspensa, dada como não essencial. Percebe-se: está em causa a sobrevivência, de facto. Se não de cada um de nós, de muitos, demasiados, e do próprio sistema em que vivemos.

À noite vemos a Netflix, encontramos na internet experiências artísticas ou assistimos a espetáculos na RTP2. Mas isso, que é bom, não é tudo, não é suficiente, pode nem ser determinante, se for único.

Uma cidade como Vila Real, como as outras, precisa do seu Teatro para se ligar ao mundo. Há boa ligação por cabo aqui, e boas vias de comunicação. Mas o sentimento de verdadeiramente nos ligarmos, fazermos parte de outras possibilidades de existência e maneiras de ver o mundo ocorre quando estamos na presença dos artistas.

A experiência da alteridade precisa da proximidade aos corpos para não ser fantasia. Um documentário na TV pode parecer ficção se comparado com uma peça ao vivo. Continuamos a ser espectadores do mundo, mas só ao vivo nos implicamos nele.

Há oportunidades a agradecer no confinamento, os que pudermos desfrutar delas sem a inquietação da falência, do desemprego, da fome ou da morte. Podemos voltar a ser leitores assíduos, reparando o maior erro que a humanidade comete, o ato suicida civilizacional de se afastar dos livros. Regressar aos livros devia ser o novo normal.

Podemos aproveitar a pausa para criar uma tal ânsia de artes para que depois não mais os trabalhadores do setor fiquem desamparados, porque haverá finalmente um público correspondente em quantidade e interesse ao valor da criação nacional, e porque a República se obrigará a encontrar maneiras de garantir cidadania plena àqueles trabalhadores e a lembrar-se de que o ser humano é mais do que trabalho, corpo, alimentação. E alienação.

Comecemos por questionar que sinal se quer dar quando fecham teatros e há exceções na televisão (essa pandemia fatal de frivolidade). O que queremos que predomine depois do confinamento?

Diretor do Teatro Municipal de Vila Real

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