Um SNS doente é uma "ameaça à formação médica". Estudantes querem ser ouvidos nas decisões
Com tanta berraria em redor do Serviço Nacional de Saúde nos últimos tempos - entre greves, protestos contra maus salários, horas extra em demasia, falta de profissionais e a “maior crise de sempre”, gritam os críticos a toda a hora -, como olham os jovens estudantes de Medicina para o seu futuro? O SNS ainda consegue fazer parte dos sonhos de carreira de quem quer vestir a bata branca de médico ou a nova geração de doutores já sai do “forno” das escolas médicas com a mente posta no privado e no estrangeiro?
Rita Ribeiro, de 23 anos, no 6.º ano de curso na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, não tem dúvidas: “Os estudantes continuam a olhar para o SNS como algo muito importante que precisamos não só de manter e preservar, como de valorizar.” E contribuir para isso é um dos principais objetivos da nova missão de Rita, enquanto presidente da Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM).
As dificuldades do SNS não afetam apenas os profissionais de saúde que nele trabalham ou os utentes que a ele recorrem. Para os estudantes de Medicina, é também a qualidade da sua formação que fica em causa, já que grande parte dela é feita no SNS. Por isso, como parte interessada, querem ser ouvidos também na definição das políticas públicas que os afetam. Uma das prioridades do mandato de Rita Ribeiro, em 2024, como nova representante dos futuros médicos do país que estão no ensino superior, é potenciar “estratégias que coloquem o estudante no centro do processo decisório”.
É por isso também que, neste período pré-eleitoral em curso, com as legislativas de 10 de março no horizonte, a ANEM reuniu num dossiê as propostas que gostaria de ver debatidas e implementadas e enviou-as para todos os partidos. Já conseguiram reunir com um, até agora; dos outros aguardam resposta. Entre as propostas constam medidas tão diversas, mas “essenciais”, como o planeamento de recursos humanos, melhoria de infraestruturas, o reforço do investimento no ensino superior e nas escolas médicas, “à beira da rutura devido a um subfinanciamento crónico”, e a garantia da idoneidade formativa no SNS.
Ao contrário do que têm tentado por em prática os últimos titulares da pasta da Saúde, formar mais médicos e aumentar o número de vagas no ensino superior de Medicina não é a solução para os males do SNS, defende Rita Ribeiro. Na verdade, Portugal é hoje um dos países da OCDE com mais médicos per capita, com um rácio de 5,6 por cada mil habitantes (a média da OCDE fica-se pelos 3,7). Por isso, sublinha a presidente da ANEM, é preciso antes de mais “capacidade de planeamento” e dotar o SNS de “atratividade para reter os profissionais”.
Exemplo dessa falta de capacidade para planear, diz, é “a inexistência, até hoje, do Inventário Nacional de Profissionais de Saúde”, que está em decreto-lei desde 2015. “É um pedido que temos feito sucessivamente e é fundamental que seja efetuado, para nós percebermos quais são as reais necessidades do país.” E acrescenta um outro: “Foi formado no ano passado um grupo para avaliar as necessidades formativas em Medicina e neste momento esse trabalho ainda não está concluído.” Ora, “sem dados fiáveis não se consegue fazer um bom planeamento”, evidencia Rita. “Medidas avulsas são de pouca utilidade para o futuro”, acrescenta, e abrir a porta “a mais estudantes” ou mais escolas de Medicina não vai resolver os problemas existentes, apenas contribuindo “para agravar a qualidade da formação”.
Tornar o SNS mais atrativo - “pagando melhor aos profissionais, melhorando as infraestruturas e os equipamentos disponíveis e respeitando a idoneidade formativa” - é a chave para reter os médicos que hoje parecem preferir o privado ou o estrangeiro. Aliás, um estudo da ANEM feito em 2020 já mostrava que 79,2% dos alunos de Medicina “ponderavam emigrar”. “O SNS continua a ter algumas vantagens relativamente ao sistema privado, e que tem a ver sobretudo com a questão das equipas, que são mais multidisciplinares, maior diversidade de doentes também… a questão é que depois existem outras necessidades que não têm sido colmatadas”, reforça Rita Ribeiro. O que leva vários profissionais de saúde a optarem por exercer funções no privado ou até a seguir carreiras não clínicas, como a gestão ou consultoria, diz. O atual leque mais alargado de opções profissionais, aliado às características de uma geração que “também valoriza mais, hoje, a conjugação da vida profissional com a pessoal”, faz com que um SNS onde os médicos trabalham horas a mais e se sentem recompensados de menos seja cada vez menos atrativo.
Com menos profissionais qualificados no setor público, “a idoneidade formativa fica em causa”, aponta a estudante. Um aspirante a médico de uma especialidade em Portugal tem de passar por algumas etapas ao longo de um percurso de formação que se estende ao longo de 11 a 13 anos, dependendo da especialidade. Aos seis anos de curso (formação pré-graduada), segue-se um de internato geral e quatro a seis de internato de especialidade (formação pós-graduada).
Ora, se cada vez há menos especialistas no SNS, “a formação fica ameaçada”. Além do mais, para fazer face à escassez de especialistas no SNS, são muitas vezes os internos quem assegura o funcionamento da estrutura, à custa de horas a mais que lhes rouba tempo para cumprirem com as exigências formativas: “Precisamos de fazer formação complementar e para isso temos de ter tempo para estudar, para fazer relatórios, apresentações de artigos. Tem de haver tempo alocado a isso. E não há.”
Neste momento, acrescenta Rita Ribeiro, os rácios estão em médias de 7,5 alunos por tutor. “Se imaginarmos sete pessoas com um doente, é uma fila indiana muito grande. A capacidade que esses sete estudantes vão ter para adquirir mais competências técnicas, fazer mais procedimentos, colher mais histórias clínicas ou falar com mais doentes é muito reduzida. Estamos a tirar tempo de formação a cada um. E isso significa que as pessoas ficarão, eventualmente, menos bem formadas”, além de a própria relação ética entre médico e doente ficar “deteriorada”, explica, reforçando argumentos contra o aumento de vagas nas escolas médicas, que só servirão para “agravar estes rácios” formativos.
Com o sacrifício, a frustração e, muitas vezes, a exaustão emocional (a saúde mental é outra das questões “prioritárias” para a ANEM) a tomar conta daquela que deveria ser a geração mais bem preparada de sempre, acumulam-se as fugas de talento e os concursos com vagas por preencher no SNS. Para a jovem estudante de Santa Maria da Feira - que “desde miúda” quer ser médica para cumprir esse “velho cliché, mas muito verdadeiro, de melhorar a vida das pessoas” e sonha um dia trabalhar na OMS -, só há uma saída: “melhores políticas públicas” que voltem a valorizar a profissão em Portugal.