Quando nos encontrámos no Espaço Brotéria, meio Chiado meio Bairro Alto, Filipe estava em plena ultimação de preparativos para a estreia do Camp, o "não festival" que montou à volta da oliveira de 2 mil anos que existe no Morgado do Quintão - propriedade da família da mãe, herdada desde o primeiro Conde de Silves, na Lagoa que já se espraia para a Serra de Monchique. O café que os jesuítas instalaram num pátio interior do edifício secular, hoje aberto à cultura, apesar do rebuliço da zona mantém-se fresco e tranquilo. E a Brotéria é um dos parceiros do seu projeto mais recente, o Camp. O entusiasmo de ter criado um conceito que aproxima e promove troca de experiências entre os que vivem em Lagoa e os que ele ali leva e convida, de Laginha a Carminho a quem acolheu o programa, para uma vivência intimista de partilha e música entre as vinhas, impede Filipe de estar muito tempo afastado do seu Camp. Vai-me levando pelos seus anos de crescimento e amadurecendo, encontrando a cada canto pretexto para me levar ao "não festival", aos concertos e debates à volta da fogueira, ao laboratório criativo, às tardes de conversa e às noites de tertúlia que projetam e acrescentam ideias umas às outras..A estreia aconteceu no último fim de semana, mas este é o projeto que Filipe traz a pulsar-lhe nas veias, que quer acarinhar e fazer crescer, ainda que não o queira ver nem perto da massificação. "Não quero fazer um Rock in Rio, somos um palco entre as vinhas", descreve, montando a imagem mental. Defeito profissional de quem fez da publicidade e do marketing vida..É isto que o entusiasma, nos 40 anos, poucos mas plenos de experiências ricas, que o empurraram a querer construir e deixar a sua marca na terra onde sente as raízes, apesar de todos os esforços dos pais para o tornar num cidadão do mundo. E o mais engraçado é que Filipe é ambos: uma mente aberta, plena de conhecimento e experiências, mas também um homem dos Algarves que traz no ADN..Pedimos omelete e sumo de abacaxi, ovos estrelados e café duplo, e vamos viajando dos tempos em que fez carreira e chegou ao topo da Young & Rubicam nos Estados Unidos, até quando tomou a decisão de deixar uma carreira que já não estava a preenchê-lo e abraçar projetos próprios. Incluindo o Morgado do Quintão, herdado da mãe e que decidiu recuperar em 2015, tirando daquelas vinhas velhas e regionais as primeiras garrafas de vinho um ano mais tarde. "Lançámos 3 mil, para ver como corria, e os resultados têm sido ótimos. É mais do que fazer vinho - ainda que seja esse o motor -, queremos deixar algo, enriquecer as novas gerações. E temos conseguido contribuir para a região.".O plural junta Filipe e a irmã, Teresa, com quem foi desenvolvendo o projeto vinícola e o cultural. "Faltava aqui algum vigor e isso era inexplicável, porque o Algarve tem todas as condições para produzir bom vinho e ser uma região vitivinícola considerada. Mas durante muitos anos, virou-se para o turismo e esqueceu o vinho", justifica o descendente do Conde de Silves que ali plantou as primeiras vinhas. "Dá-nos especial prazer fazer parte deste grupo que está a levar ao renascimento da região", diz, concretizando que já está a fazer 50 mil garrafas, numa lógica de ser "o mais possível fiel ao terroir, usar castas locais, vinha biológica, preservação do património. Queremos longevidade e qualidade sobre o volume", resume, contrastando esse novo ritmo com aquele que o movia na sua vida anterior. "Em publicidade, era tudo muito imediato.".Pergunto-lhe se deixou totalmente a publicidade e diz-me logo que sim, mas volta atrás, nega e explica. "Acho que nunca se deixa verdadeiramente, porque continuamos a usar essa experiência, essa agilidade." Mas agora numa nova perspetiva e estando totalmente adaptado a este slow living que escolheu para ele e para os projetos que apadrinha, que assume a longo prazo. "Mesmo quando convidamos a Carminho para vir cantar e conversar ao Camp, é essa a perspetiva que temos, de a experiência dela poder contagiar os jovens locais, servir-lhes de exemplo, motivá-los a experimentar", explica. "É olhar por eles e por nós, porque essas são as pessoas que daqui a 30 anos vão falar de nós. É uma lógica de longevidade, de legado, que também encontra sentido porque somos guardiões deste espaço do Quintão.".De todos os trabalhos na vinha, a poda é o que mais lhe agrada, porque lhe permite moldar a forma da planta e encaminhar o seu crescimento. "É como na vida, sabermos para onde vamos ou pelo menos para onde não queremos ir, dar forma ao caminho e deixar crescer e desenvolver as ideias." Talvez por isso diga que não planeou a saída, mas que era algo que lhe estava "destinado".."Comecei em agências em Portugal, fui para Paris, fui para Nova Iorque como CEO da Y&R, fiz um percurso muito rápido. Mas sempre tive vontade de me ligar às minhas raízes - e isso também faz sentido neste projeto, as raízes da vinha", compara. Vive em Lisboa mas o projeto leva-o ao Algarve muitas vezes, fá-lo ir da cidade ao campo com facilidade, da irreverência à tradição..Acredita que as oportunidades e as obrigações se vão manifestando e diz que foi assim que o Morgado do Quintão se foi imiscuindo na sua vida. Era uma mera propriedade rural, a mãe fez algumas obras para tornar a casa habitável e lá passar umas temporadas, mas só nos tempos mais recentes - a família não tinha, na verdade, tradição ali, ainda que tivesse herança e história. Os pais, aliás, sempre o puxaram muito mais para a modernidade e a disrupção dos novos destinos do que para o que se arrastava no passado..A mãe, artista plástica e professora de Artes, levou a família para os Estados Unidos, quando foi fazer o mestrado em Boston. Nessa altura, em 1991, a mãe fazia performance art e Filipe e a irmã trocaram o colégio americano de Lisboa pela verdadeira experiência americana. "E abriu-me totalmente os horizontes", confessa. Faz autoanálise: "Eu fui treinado para não ser português e hoje faço algo completamente telúrico. Sempre passámos muito tempo fora, os pais levavam-nos para todo o lado. E a mãe até chegou a pedir-me que não ficasse agarrado ao Quintão, que a minha vida era muito mais do que isso.".A verdade é que Filipe fez do Quintão algo muito maior, uma plataforma para o mundo. "As empresas têm a responsabilidade de pensar além do que produzem, em como contribuir para o local onde estão, para melhorar as suas pessoas e ser uma plataforma de debate de temas que contribuam para o desenvolvimento", diz. Depois segue, conta da licenciatura em marketing , iniciada ainda em Boston e terminada em Paris, do trabalho nos dois países. Pelo caminho casou-se, em Nova Iorque e em Lisboa, com a mesma mulher, também Teresa, que conheceu num jantar e soube de imediato ser a mulher da sua vida. "Só tenho Teresas na vida", ri-se, enumerando mãe, irmã, mulher e filha (de 12 anos, irmã de Manel, de 5)..A vida rápida precipitou-o para fora do mundo corporate em 2012 - ainda que continue a "fazer viagens à publicidade" por exemplo quando faz os rótulos, a imagem gráfica de uma produção, algo que faça valer o poder da comunicação. Como o Camp..E como percebeu que estava na hora de mudar? "Acho que senti que o que tinha para dar tinha chegado ao fim. Já tinha feito carros, banca, seguros, higiene, comida... em agências pequenas e grandes, em Portugal e fora. A aprendizagem estava no fim e já não tinha aquela adrenalina. E acho que isto me estava a chamar." Mesmo porque o ritmo lhe começou a pesar. De tal forma que rejeitou um cargo de marketing em Nova Iorque para assumir a herdade..Diz-me que tem noção da maior riqueza na sua vida: os pais terem-lhe passado "o sentido de possibilidade". Traduz: "A ideia de que é possível, de que se nos dedicarmos a algo e nos entregarmos e trabalharmos, conseguimos seja o que for. Gostava que os meus filhos também sentissem isso." E é desse espírito de aventura, de não ter medo de assumir risco para ter impacto, que se faz também o Morgado do Quintão. O vinho que dali sai é vinificado em duas adegas vizinhas, com Joana Maçanita como enóloga, e Filipe a levá-los aos EUA, a Inglaterra, a França - e com eles a história da região que ficou esquecida mas está a reafirmar-se. Em breve vai juntar azeite ao vinho, promete..Daqui a dez anos? "Vou estar aqui. Gostava que o projeto crescesse com as novas vinhas que plantámos, com hotelaria mas fazendo sempre pouco e bom. Mas esta vida de agro e cultura fará sempre parte. E apetece-me fazê-lo com esta visão de legado." De resto, vai continuar as consultorias e as inovações que o levam a empreender. Até porque o facto de o Quintão ser uma paixão criada com pouco investimento, valorizando o que havia - as vinhas, o lugar, o conceito -não significa que não seja rentável. "Mesmo que não seja esse o foco, tem de haver racionalidade. Mas o que fizemos fomos fazendo lentamente, com o que tínhamos, com simplicidade. E isso permitiu manter o espírito vivo e a força da história daquele sítio. A simplicidade é o grande luxo de hoje em dia."