Na Europa, cerca de 17 milhões de pessoas sofrem de algum tipo de alergia alimentar e uma em cada 100 terá doença celíaca, segundo a Associação das Sociedades Europeias Celíacas. Os números têm vindo a aumentar e estima-se que muitos sejam os casos que ainda permanecem por diagnosticar, numa tendência que tem feito proliferar as dietas sem glúten e "diabolizado" alguns cereais, como o trigo. A necessidade de um trigo mais saudável, da terra até ao prato, está na base do projeto de uma equipa de investigadores da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, que obteve financiamento europeu para, entre outras coisas, tentar chegar a um novo alimento à base da fermentação do trigo que conjugue saúde e sabor na mesma receita..Para isso, os investigadores do projeto Wheatbiome vão estudar a microbiota (conjunto de microrganismos) do trigo, tanto no solo como na planta, para perceber como é que ela afeta a imunogenicidade (capacidade de desencadear uma resposta imunitária no organismo) e também a qualidade nutricional deste cereal. Mas não só, a interação da microbiota do trigo com a microbiota humana também será analisada, "para ver como as bactérias que estão dentro desse alimento interagem com o nosso organismo e a nossa própria microbiota", detalha Rosa Perez-Gregório, investigadora espanhola que lidera a linha de alimentação e saúde do REQUIMTE (Rede de Química e Tecnologia), na FCUP, e cocoordenadora do projeto. Essa interação afeta a qualidade nutricional do trigo, bem como o efeito na saúde do consumidor e a perceção do sabor dos alimentos.."Temos vindo a incluir nos últimos anos a microbiota na nossa investigação, sobretudo na área da saúde humana e do sabor, porque tem sido demonstrada a importância da interação dos microrganismos com o ambiente que os rodeia a vários níveis. De facto, a microbiota tem interações não só a nível humano como também a nível do solo, interação com as plantas, portanto com vários atores do sistema alimentar. Percebemos que poderia ser uma ferramenta importante e sustentável para modular os nossos sistemas alimentares desde o solo até ao prato", refere Susana Soares, docente da FCUP e também investigadora do REQUIMTE, assim como cocoordenadora do projeto..Assim, o projeto passa por experimentar diferentes tipos de solo, de variedades de plantas e até de práticas agrícolas para estudar de que forma essas diferentes interações podem proporcionar um trigo de melhor qualidade, menos agressivo e com sabor agradável. "Os microrganismos do solo aqui são diferentes de um solo na Holanda [Países Baixos], por exemplo, o que vai afetar a forma de crescimento da planta. E a forma de crescimento da planta, por sua vez, tem um efeito na qualidade nutricional que vamos ter no alimento. Portanto, se nós conseguirmos perceber essa relação, a interação entre a microbiota do solo, que modula os nutrientes que estão lá e que a planta assume no seu metabolismo, podemos depois ter um fio condutor para ter esses ganhos em toda a cadeia até ao consumo humano", explica Rosa Perez-Gregório..Para já, a equipa do Wheatbiome tem "planeados dois case studies, com experiência de campo em Espanha e na Holanda", acrescenta Susana Soares. "Para além de solos diferentes, vamos também abranger outro fator importante que são as condições climáticas. Estamos a tentar simular condições de crescimento num clima mais mediterrânico, portanto mais quente e com tempos de seca mais longos, e num clima oposto, mais frio e com mais água. Com estes dois casos de estudo queremos perceber também como é que estes fatores, relacionados com condições geográficas e climatéricas, afetam esta linha do microbioma." Além disso, os dois casos de estudo serão feitos de acordo com diferentes práticas agrícolas - biológica e convencional - e também em diferentes condições de irrigação - solo irrigado ou não irrigado.."As expressões de proteínas numa planta, que irão causar mais ou menos imunogenicidade, vão depender da cultura e da variedade de trigo e também de onde é produzido", explica Rosa Perez-Gregório. Com base nesse conhecimento, e uma vez caracterizada a microbiota do trigo, é objetivo do projeto "utilizar a microbiota da planta inteira ou partes dela para criar um novo alimento", diz Susana Soares.."O problema, quer ao nível da imunogenicidade quer ao nível da incidência de intolerâncias relacionadas com consumo deste tipo de alimentos, não só em relação ao glúten, tem uma base comum, que é tratar-se de alimentos difíceis de digerir. E quando há uma dificuldade na digestão há uma acumulação de componentes que chegam mais ou menos intactos ou mal digeridos e geram uma série de reações a nível biológico que acabam por alterar a homeostase normal de um ser humano. E é daí que nasce a patologia. Nessa parte, na forma como digerimos os alimentos, a microbiota tem também um papel muito importante. Por isso também há cada vez mais pessoas a usarem os probióticos, alimentos com bactérias que conseguem degradar melhor e ajudar a digestão", descreve Rosa Perez-Gregório..Dentro deste projeto, os investigadores contam também "desenhar um alimento com novas fontes de microrganismos, que podem ser probióticos, mas que sejam também agradáveis ao gosto, não sacrifiquem o sabor". Ao nível da microbiota humana, a interação do alimento com os microrganismos do hospedeiro pode afetar a nossa perceção de sabor e o efeito na saúde. É aí que entra a linha de investigação liderada por Susana Soares, que estuda precisamente a perceção do sabor.."O que acontece diversas vezes é que são desenvolvidos novos alimentos funcionais, muito ricos em compostos bioativos, que são conhecidos pelos efeitos positivos na saúde mas que não têm propriedades agradáveis, e, como tal, o consumidor rejeita-os. Nesta nova tendência de alimentos de origem vegetal que temos vindo a verificar, para a própria indústria alimentar esse é um aspeto muito importante. Grande parte dos produtos desenvolvidos tem propriedades não muito agradáveis: gosto amargo e outra sensação à adstringência que são muito característicos de produtos de origem vegetal e que comprometem a aceitação por parte do consumidor. Tem que haver um compromisso entre um alimento saudável, com pré e probióticos, e as propriedades de sabor, caso contrário são rejeitados", aponta a bioquímica..As propriedades de sabor no trigo podem ser moduladas "praticamente desde o solo", segundo Susana Soares. "Se o microbioma do solo afeta o metabolismo da planta, vai afetar os compostos que existem na planta, portanto logo a partir daí nós já podemos estar a modelar o sabor." A ideia é que esse processo permita ter quase uma "nutrição de precisão, à carta", refere Rosa Perez-Gregório. "A composição microbiana que eu tenho não é a mesma que a sua. Por exemplo, os idosos ou as crianças têm um tipo de microbiota diferente do que tem uma pessoa saudável. Uma pessoa com a doença X ou Y pode ter uma microbiota diferente. Claro que será impossível ter um produto diferente para cada pessoa, mas é possível estabelecer diversos perfis e agrupar pessoas em função de um fator determinado.".Sobre esse novo produto que a equipa do Wheatbiome pretende conceber há já algumas ideias avançadas: "Temos algumas ideias, a principal será uma bebida vegetal fermentada sem álcool, mas pode também passar por queijos ou iogurtes, por exemplo.".Aos pilares da saúde e sabor o projeto pretende ainda acrescentar um terceiro "S", ligado à sustentabilidade. "O trigo é uma das culturas mais sustentáveis, pois consome poucos recursos hídricos e energéticos, mas podemos torná-lo ainda mais sustentável", conta a investigadora..A análise da microbiota servirá também para ajudar a regular as práticas agrícolas e fazer chegar esse conhecimento aos agricultores e outros atores envolvidos na cadeia de produção do trigo. "Se soubermos quais são as melhores condições bióticas e abióticas que afetam a microbiota e a qualidade do trigo, podemos tentar que o cereal seja cultivado noutros países, fomentando a agricultura local e mais sustentável", defende. Algo que ganha especial relevância na conjuntura atual, em que há uma grande dependência de mercados como o da Ucrânia, cujas cadeias de produção e distribuição foram rompidas..O fator de sustentabilidade está também presente numa lógica de economia circular do projeto, já que este prevê a reintrodução do subproduto do novo alimento na cadeia alimentar, como ração para animais, "melhorando também dessa forma a qualidade nutricional da carne e ovos a extrair desse animal, que será a galinha (frango)", explicam as investigadoras. O projeto, que recebeu financiamento de cinco milhões de euros por parte da Comissão Europeia, decorre até final de 2026 ..rui.frias@dn.pt