Um museu que nasceu do terramoto de um reencontro que acabou em casamento
Sorriso rasgado e acolhedor, Maria e Ricardo esperam-me com um brunch que eles próprios arranjaram para o nosso encontro na cafetaria do Quake, com ovos, fruta, sumos e panquecas, pão e café. São um daqueles casais que se adivinham sem que precisem de se tocar. Que respeitam os tempos respetivos e nunca se atropelam mas conseguem colar as frases de um às do outro com uma naturalidade rara, e é óbvio mesmo para quem está a vê-los pela primeira vez que comunicam sem falar. Olhares e sorrisos bastam-lhes. O mais curioso é que essa proximidade esteve adormecida até se reencontrarem ao fim de 20 anos sem se verem, reconhecendo os rostos estafados das compras de Natal nas Amoreiras, num daqueles momentos de feliz acaso.
Cresceram ambos em Rio Maior e admitem que até se cruzavam de vez em quando, ainda nem adolescentes, mas pouca importância se davam nesses tempos - "eu não me lembro muito dela", ri-se ele; "eu achava-o um betinho", diz Maria, que como Ricardo veio para Lisboa para a faculdade mas seguiu um percurso muito diferente. Ele julgava querer ser arquiteto mas acabou por se virar para o Marekting e a Publicidade, em que fez carreira durante 21 anos; ela optou por Relações Internacionais "para trabalhar em ONG e mudar o mundo", mas durante mais de uma década andou entre Portugal e Angola, de onde fazia as ligações à Ásia e à Europa da empresa de comércio internacional de brinquedos e fardamentos em que trabalhava.
Nada fazia crer que viriam a reencontrar-se, a apaixonar-se e a criar juntos a extraordinária experiência que é o Quake - Centro do Terramoto de Lisboa. Um museu 100% privado cuja ideia surgiu há sete anos, pouco depois de se reencontrarem.
"Nós dois fizemos a vida em Lisboa, mas nunca nos cruzámos. E só quando nos reencontrámos é que tivemos esta ideia de fazermos qualquer coisa juntos na área do turismo", explica Ricardo, com Maria a juntar que tinha "acabado de voltar de Luanda e estava cheia de vontade de não voltar a sair, de "encher o frigorífico"". Não o conseguira nas várias vezes em que antes tinha tentado fixar-se de novo por cá, inclusivamente apostando numa pós-graduação em turismo e mudando para essa área. Mas agora, em 2015, fazia finalmente o "casamento perfeito" de vontade e oportunidade.
Há sete anos, acabados de se juntar, Ricardo e Maria viram enfim que o turismo podia ser um bom negócio e uma saída para a vontade que ambos tinham de criar. O boom estava aí, sentiam-no e viam-no nos tuk-tuk, nos ubers, nos hostels e nas 1001 empresas turísticas que iam surgindo, mas não queriam repetir o que toda a gente estava a fazer. "Queríamos fazer algo diferente e nos destinos que conhecíamos em viagem procurávamos sempre inspiração, mas que pudéssemos transpor para esta Lisboa que é uma cidade apaixonante para os turistas mas também para quem cá vive, com atrativos únicos. Costumo dizer que quando toda a gente está a fazer zig nós temos de encontrar o nosso zag" e o Quake resultou desse esforço, conta.
Um posicionamento diferente levou-os às atrações e ao entretenimento e depois de uma corrida pelos mais diversos temas, a começar nos Descobrimentos, claro, encontraram o "óbvio". "Estava à nossa frente", diz Maria. "A história deste tema não estava suficientemente contada, não tinha um espaço dedicado", junta Ricardo, concordando os dois a rir que o edifício contíguo ao Museu dos Coches em que nos encontramos está bem longe da ideia original, que se resumia a uma espécie de contentor, focada no entretenimento. Só a memória de onde partiram e aonde chegaram fá-los rir.
"Imaginámos uma coisa junto ao rio, um simulador para 20 pessoas", "em que sentissem o terramoto como uma coisa divertida", contam. Daí nasceu uma experiência imersiva com 2 mil metros quadrados divididos em 10 salas interativas high tech.
Durante sete anos, o projeto foi crescendo e tornou-se mais completo e complexo - o tema era imenso, altamente diversificado. Começaram a rodear-se de investigadores e sismólogos, de produtores de conteúdos internacionais, e foram percorrendo o caminho, já certos do que queriam: tocar a parte histórica e a científica sem que se tornasse aborrecido, sendo antes uma experiência emocionante, entretenimento com finalidade.
"Queremos que as pessoas saiam daqui divertidas, mas tendo aprendido algo e com consciência do que podem fazer individualmente num caso de sismo." Maria conta que eles próprios, quando começaram a embrenhar-se na ideia, criaram um ponto de encontro: "A estátua do Eusébio", ri-se. "É um sítio alto e seguro", completa Ricardo, divertido, antes de voltarem ao relato de como chegaram ao principal propósito do Quake. "O Oceanário é daquelas experiências de que saímos a pensar que temos de cuidar do planeta; também aqui queríamos deixar uma semente, a consciência sísmica. Porque se já aconteceu, vai voltar a acontecer, é uma evidência."
Se para os lisboetas é esse o propósito maior, quiseram tocar também os turistas com algo mais do que a ciência, a história e o entretenimento. E Ricardo explica que isso se materializa na importância que o Terramoto de 1755 teve para o mundo. "A reconstrução da cidade, a modernização de Lisboa, tudo vem daquele dia 1 de novembro. Lisboa foi a primeira cidade europeia a ter um plano urbanístico. O Marquês de Pombal incutiu na sociedade também a vontade de encontrar as razões científicas deste fenómeno e isto cola com o Iluminismo da época, os iluministas entraram todos na discussão; e o tema pode ter tido influência na História, teve essa importância." Maria junta outra visão, outro efeito: "Os turistas veem Lisboa com outros olhos quando vêm aqui. Bom era que começassem a visita aqui e depois veriam a cidade de outra forma, de certeza."
E como chegaram a este local? Ricardo compara a viagem do contentor-simulador até ao moderníssimo Quake com a compra de um carro: "Fomo-nos entusiasmando e quando aqui chegámos o "carro" já tinha imensos extras. O Quake precisava de espaço, o imobiliário estava a preços altíssimos, e escrevemos à Câmara de Lisboa a partilhar a ideia, sem grandes esperanças - mas responderam-nos. E acho que se apaixonaram pela ideia e quiseram ajudar, mesmo sendo um projeto totalmente privado, como sempre o pensámos."
A ajuda chegou com a disponibilização de um terreno municipal à medida das suas necessidades, fazendo um contrato de direito de superfície com renda anual a 50 anos. De resto, tudo foi saído da cabeça, das mãos e da carteira de Maria e Ricardo, algo não muito comum em Portugal: um museu 100% privado. Não será tão invulgar ideia para dois empreendedores-natos, mas como resume Ricardo, "ser empresário neste país é um pesadelo... só de pensar nas burocracias e dificuldades que nos atrasaram..." Felizmente, nunca cederam à ocasional vontade de deitar tudo às urtigas.
O pai de Maria trabalhou sempre fora - foi embarcadiço, depois instalou-se no catering em Angola e vai tendo projetos novos até hoje; a mãe ficou em Rio Maior, onde tem uma pastelaria, hoje gerida pelo filho. A mãe de Ricardo foi professora e o pai bancário, os dois filhos, já nos 20 anos, estão fora, um a estudar outro a trabalhar. Quanto a Maria e Ricardo, nenhum dos dois deu seguimento às tradições das famílias, que se mantêm pelo Ribatejo. Fizeram o seu próprio caminho, que continuam a trilhar diariamente.
"Temos muitas ideias e achamos que o Quake tem grande espaço para mais criatividade", diz ele, que vê o conceito sair daquelas paredes e tornar-se itinerante, fazer-se hotel temático, gerar mil projetos. "Estamos a fazer seis meses e temos tantas ideias que mesmo todos os meses vamos fazendo testes, como as sessões noturnas que agora arrancaram ou a feira do livro temática do terramoto que faremos em novembro", junta Maria. Há ainda o lado social em que se empenham para garantir que não há crianças que fiquem fora da experiência.
O muito trabalho que têm com o museu podia fragilizar-lhes a união, mas previnem-no com a regra de não falar de negócios em casa - "ele porta-se melhor do que eu", assume Maria - e deixando algum tempo livre para os pequenos prazeres de que não prescindem, como o desporto diário, as viagens que esperam retomar em breve e os jantares com amigos. "O Ricardo até nisso está sempre a criar conceitos: há uns tempos recebemos uns amigos e o tema era este, os pratos eram o Terramoto, o Fogo e o Tsunami, ele fez uma carta e tudo."
Em seis meses de vida, vieram 50 mil pessoas ao Quake e em velocidade-cruzeiro esperam chegar aos 200 mil. Têm sessões marcadas e o fluxo é fluido, de sala em sala, sem que os grupos se cruzem nos momentos em que disparam simuladores, ecrãs, máquinas de vento, com os visitantes a entrar com pulseiras que têm sensores RFID que permitem identificar os temas em que têm interesse e receber no seu email informação sobre esses assuntos.Maria e Ricardo não imaginam o Quake fora de Lisboa, porque é parte da cidade e dizem até que tem o papel de ajudar à não descaracterização de Lisboa. "É o anti-Disney", resume Ricardo. É irreplicável e irrepetível. Mas não descartam a ideia de aproveitarem o seu know how para fazerem algo temático, diferente, noutra cidade. É algo em que vão pensando com carinho e sem dúvidas quanto a um facto: "Este o projeto da nossa vida."