Um 'lobo' que sonha ser centurião e vai no segundo curso de Medicina
Brunch com Tomás Appleton, dentista e capitão da Seleção Nacional de Rugby.
É mais pela facilidade logística e necessidade de rentabilizar o tempo do que pela relação com o hipismo que nos sentamos à mesa do Jóquei, em Lisboa, para conversar. Tomás vem do Santa Maria, onde está a frequentar o 4.º ano de Medicina, e aproveita para almoçar enquanto me conta os seus 29 anos de vida, antes de seguir para o consultório da Appleton Medical Care, a clínica da família - os pais são ambos cirurgiões estéticos - onde dá consultas de Implantologia Dentária. À licenciatura em Medicina Dentária, já somou duas pós-graduações e um master, mas tem um projeto de vida e uma forma de estar que o empurram para a constante superação, o que justifica estar a caminho de terminar a segunda licenciatura na área da saúde. Na manhã em que nos encontramos, já passou pela Penitenciária de Lisboa, onde esteve com alguns outros Lobos a partilhar o que o rugby tem de melhor. É um programa em que a seleção se envolveu há três anos e que passa por dar treinos a reclusos, passar-lhes os princípios do desporto e os maiores valores desta modalidade: companheirismo e liderança. A Seleção Nacional de Rugby, de que é capitão, tem essa tradição de se envolver com a comunidade, pelo que iniciativas semelhantes em escolas ou a disponibilização de ajuda em momentos difíceis, como os fogos de Pedrógão, são comuns no calendário do grupo, mesmo que seja preciso encaixá-los entre a profissão e os treinos que em novembro valeram aos Lobos o segundo apuramento da história para um Mundial, deixando para trás os Estados Unidos e ocupando a última vaga no França 2023, que arranca em setembro.
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Precisamente 16 anos depois da histórica presença nesta competição, os Lobos voltam a estar no alinhamento de um Mundial de Rugby, que também repete o país organizador desse outro ano de boa memória, França, mas desta vez é Tomás Appleton o maestro da equipa. "Em 2007, houve um efeito grande de contágio, porque foi a primeira seleção amadora a jogar um Mundial. Desta vez, infelizmente, houve menos projeção, pouca cobertura - no dia em que nos apurámos, aparecemos nos três desportivos, mas o destaque maior era o que Rui Costa tinha dito sobre o futebol do Benfica. Eu entendo que há muito mais gente interessada nisso do que no nosso apuramento, mas se não se fizer essa aposta na visibilidade nunca vai mudar", diz-me, adiantando que a falha se estende ao Estado. Explica: "Os nossos jogos no Mundial vão passar em canal aberto, mas em todo o apuramento os direitos eram da SportTV. Ao contrário do que acontece com outros países - e nem vou aos EUA - há pouco apoio institucional."
O problema maior nem é financeiro - ainda que esse tipo de atenção pudesse atrair mais jovens ao rugby - "acaba por ser um desporto muito elitista", diz -, é a falta de soluções que facilitem a vida aos desportistas. "Por exemplo, o estatuto de alta competição facilita a entrada na faculdade, mas depois não é muito considerado nem abrangente. Nós tínhamos de ficar em 2.º lugar da Europa para aceder a esse estatuto. Por outro lado, existe a época especial, mas a decisão final é do regente. Eu hoje rio-me, mas lembro-me de estar em Medicina Dentária e pedir para adiar um exame porque ia jogar o Campeonato de Sub-20 ao Chile, e o professor me responder: "Vocês das tunas, ou lá o que é, querem ter mais do que os outros. Comigo é assim, não aparece no teste, tem zero."" A cadeira era Genética e Tomás só conseguiu fazê-la dois anos depois.
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O dia mais feliz
Desta vez, quando partir para França, a 22 de agosto - o primeiro jogo, que opõe os Lobos ao País de Gales, é disputado às 16.45 do dia 16 de setembro, em Nice, mas têm ainda um estágio nas montanhas, para se adaptarem à altitude -, Tomás não terá de se preocupar com a falta de compreensão dos professores. Mas terá de pôr em pausa a Cirurgia Oral e a licenciatura em Medicina de que precisa para cumprir o objetivo de depois se especializar em Plástica e cumprir o projeto de carreira em Cirurgia Maxilo-Facial - se tudo correr mal no Mundial, regressa a Lisboa a 10 de outubro, mas se a viagem dos Lobos for feliz e chegar ao Stade de France, pode ficar até novembro.
Especializado hoje em cirurgia de implantes, além do consultório, Tomás divide-se por várias clínicas - "é a forma de ter volume, até porque ganho à comissão por ato cirúrgico", explica, encontrando na disciplina e vontade de superação que o rugby lhe trouxe a justificação para conseguir desdobrar-se por todos os papéis que assume. Desde janeiro, passa as manhãs no Hospital - onde também já deu aulas - e as tardes em clínica. Se não vai ao ginásio logo às 7.00, não falha o treino ao fim da tarde. E depois ainda há que estudar e aproveitar a companhia de Marta Líbano Monteiro - que conheceu na faculdade e com quem se casou em setembro - e Benedita, de ano e meio. "Como ela ainda não está na escola, faz um bocado os nossos horários, mas claro que elas sofrem um bocado", admite. Talvez por ter essa consciência, diz que quando deixar o rugby, depois do próximo Mundial de 2027, vai afastar-se uns tempos, "uns dois ou três anos, para assentar a cabeça e dar tempo à família... e depois gostava de me manter ligado de alguma forma, talvez mais institucional."
Não é à toa que sente necessidade de compensar a mulher que lhe proporcionou o dia mais feliz da sua vida, "o do casamento" (quase ex-aequo com o dia em que a Seleção se apurou para o Mundial)... afinal, quantos recém-casados é que aceitam adiar a lua-de-mel? "Eu e a Marta casámo-nos em setembro e como tínhamos os treinos da Seleção no Dubai, o treinador pediu-me e a outro que estava na mesma situação que fôssemos só em dezembro." Dessa vez, a viagem foi de luxo, como manda a regra - Istambul, Capadócia e Maldivas -, mas todos os anos viajam. Até a pequena já se estreou, há um mês, numa visita ao irmão de Tomás (Francisco Appleton, também ex-jogador da Seleção, é advogado na Clifford Chance, em Londres). E quando não está a trabalhar ou a representar Portugal, aproveita para passar tempo com os amigos - "muitas vezes uso o almoço para estar com eles" - ou ir caçar no monte da família, em Serpa.
Viver o rugby
A viver nas Laranjeiras, Tomás fez quase toda a escola nas Doroteias e o 12.º no Liceu Maria Amália, antes de se candidatar a Medicina pela primeira vez. Não foi bem sucedido; e rapidamente percebeu que a alternativa de Engenharia Biomédica no Técnico não era a sua vocação - detestava Matemática e as perspetivas de carreira não o animavam. Nessa altura já contava com mais de uma década de rugby no currículo.
Seguira o irmão Francisco, três anos mais velho, no CDUL, e se a estreia, aos seis anos, o desagradou, não passaria um ano até dizer aos pais que queria dar uma segunda oportunidade ao desporto. "Dessa vez correu bem. Acho que correu bem", ri-se o agora capitão dos Lobos, sem perder a oportunidade para elogiar o percurso do irmão.
A honra maior
Tendo-se profissionalizado muito jovem, o rugby sempre fez parte da sua vida, sem pôr em causa a profissão que desde cedo escolheu - um luxo que reconhece que não há muitos que possam ter. "É por isso que digo que este é um desporto elitista, a maioria de nós tem a sorte de não precisar de decidir entre a alta competição e a sobrevivência, porque tem conforto e estabilidade financeira que permitem seguir a faculdade e manter o rugby como prioridade. Eu consegui atrasar um ano para ir jogar para Inglaterra... e talvez pudesse crescer muito mais depressa enquanto profissional se não tivesse o rugby, mas tenho a certeza que daqui a dez anos vou olhar para trás e pensar que valeu a pena." Teve uma segunda experiência, se seis meses, na Nova Zelândia, quando desistiu do Técnico.
Quando voltou a Lisboa, entrou em Medicina Dentária e deu por ele entusiasmado com o curso, sobretudo com as áreas cirúrgicas, onde encontrou a vocação. "Mas como sou teimoso, decidi, já depois de estar a trabalhar, que ia fazer Medicina. E aqui estou." Ri-se. Pelo caminho, ainda fez uma pós-graduação em Cuba e outra no Brasil, em Cirurgia, e tirou o master em Implantologia no Porto, sempre conciliando os estudos e o trabalho. E o rugby. Porque os grandes amigos da vida partilhavam com ele esse espaço, não sente que tenha abdicado da vida, apesar dos sacrifícios a que, naturalmente, a competição o obrigava. "Adaptávamo-nos, fazíamos escolhas. Não é que fosse antissocial, mas nunca íamos para os copos à sexta porque sabíamos que tínhamos jogo no sábado", exemplifica.
Talvez mais difícil de conciliar fossem as lesões com a carreira médica. Sobretudo para um cirurgião. Vai enumerando: "Já parti a cara em três sítios, fiz uma luxação da clavícula, fui operado ao cotovelo, fiquei com seis dedos fora do sítio, parti dois ossos do pé, fiz uma rutura de ligamento do joelho... já são uns aninhos nisto." Ri-se. Recorda um jogo em 2018 em que ficou com um dedo preso e rasgou um tendão - "percebi imediatamente; joguei até ao fim, mas depois foi difícil, porque tive de escolher entre ir jogar a Hong Kong, para onde partiria na semana seguinte, e arriscar não mexer mais o dedo, ou ficar para ser operado... foi um dos momentos mais difíceis que passei", assume. "Está a duvidar imenso da minha precisão, não é?" Ri-se. Escolheu com a cabeça, foi operado e ficou três meses sem trabalhar. Ainda assim, não conseguiu recuperar o movimento da última falange - felizmente, do anelar, que não interfere com a sua capacidade cirúrgica. "Desde então, jogo sempre com os dedos todos ligados, para os proteger, mas nunca pensei abandonar por medo de uma lesão pior... Se andarmos sempre com receios, não fazemos nada!" Confessa que tem muito mais cuidado com a possibilidade de se magoar e perder o Mundial.
É porventura isto aquilo que diz ser o que de mais importante o rugby lhe trouxe, a superação. "Diz-se que isto é um desporto de brutos jogado por cavalheiros e é um bocado assim, isto molda-nos, dá-nos princípios muito fortes, espírito de equipa, a certeza de termos ao lado quem nos puxe para cima e uma capacidade incrível de superação. Passamos a estar em competição em tudo e isso leva-nos à ambição de querermos sempre mais. E tem uma componente de enorme respeito pela autoridade - mesmo quando achamos que a decisão do árbitro foi injusta, baixamos a cabeça e seguimos."
Ser capitão é "um orgulho" que assume há quatro anos e não tem dúvidas de que jogar pela Seleção tem um sabor especial. "Estamos a representar o país, a honrar a História e quem já usou aquela camisola, e queremos deixá-la num lugar mais alto. E há momentos marcantes." Ouvir e cantar o hino nacional é um deles. Tomás canta-o sempre de olhos postos na família, na bancada. "Quando jogamos pela Seleção, jogamos pelas pessoas de quem gostamos, é a eles que representamos." Quanto ao seu percurso, tem um sonho confesso: ser o terceiro português a fazer parte do clube muito restrito do rugby mundial que são os Centurions, os jogadores com mais de 100 internacionalizações - os irmãos Vasco e Gonçalo Uva foram os primeiros e Tomás espera que, depois dele, muitos outros se sigam. E vê possibilidades reais de isso acontecer.
"Há hoje muitos jogadores em muito melhores condições. Eu estreei-me pela Seleção em 2014 e tenho 63 internacionalizações, mas apanhei anos negros, em que jogámos muito poucos jogos; hoje há miúdos de 20 anos e 30 internacionalizações." E podia haver mais, se a profissionalização fosse uma realidade. "A Seleção dá algum dinheiro, mas com base nos resultados, eu não recebo nada por deixar de dar consultas para treinar e se perder um jogo não ganho dinheiro."
O valor pago aos jogadores da Seleção varia, mas nesta fase ronda mil euros por vitória, um valor que parece razoável, até se fazer as contas. "Eu estive quatro anos sem receber nada. Em fevereiro/março do ano passado, com treino a 100%, ganhámos um jogo..." É por isso que defende também algum apoio do Estado a este nível - não exclusivo para o rugby, para todas as modalidades. Também aponta falhas às marcas, ainda que admita que, nesse caso, o investimento esteja associado a retorno - financeiro ou de outro tipo. Exemplifica com o Santander, que desde 2021 apoia os Lobos e até fez nascer a Taça de Portugal Santander, e com a Vanguard Properties, que fez de Tomás Appleton seu embaixador oficial. Porque consideram que os valores ali representados e o prestígio do que representa o desporto é identificativo com as suas marcas. "Não é tanto pela visibilidade que vão conseguir, ainda que o Mundial seja o quinto evento desportivo do mundo em visibilidade." Mas lamenta que não haja um patrocínio desportivo, por exemplo, que considera uma limitação enorme. "Não era preciso darem dinheiro aos jogadores, mas marcas como a Nike ou a Adidas podiam não nos obrigar a gastar 300 euros por cada par de chuteiras que temos de comprar", sugere.
Com tantos objetivos cumpridos antes dos 30 anos e em plena preparação para o Mundial 2023, Tomás não se deixa distrair. Enquanto acaba o café, confessa que a covid foi o pior que viveu. "Eu não sou nada de stressar, mas foram tempos horríveis, mesmo tendo tido a possibilidade de me mudar para o Alentejo, porque nem podia trabalhar nem podia treinar..." Já a apanhar a mota para se apressar para a consulta que se segue, confessa o projeto profissional que tem a ganhar forma na cabeça: fazer um centro de formação dentro de cirurgia para passar a outros aquilo que vem aprendendo, com possibilidade de pôr os alunos a operar doentes sob tutoria. Em Lisboa, onde quer que o seu destino se cumpra.