Um homem entre a paixão da política e o amor à agricultura
A semana normal de Nuno Melo gravita entre Lisboa, Porto, Bruxelas/Estrasburgo e a quinta que recuperou em Joane, onde se refugia sempre que pode entre as árvores que lhe permitem dar largas à veia de agricultor. "Tem sido um ritmo muito intenso", ri-se, à chegada ao bar do Hotel Altis, ainda a ultimar com o seu vice Paulo Núncio o almoço de trabalho que se segue à nossa conversa. Pedimos cafés e vamos correndo os desafios do líder de um partido histórico mas que vive o momento mais difícil da sua história, depois de ter ficado fora da Assembleia da República nas legislativas de há um ano, apesar da sólida base autárquica e de manter a presença no Parlamento Europeu.
Eurodeputado desde 2009, Nuno Melo tem de dividir o seu tempo entre a Europa e o país onde tem a família, a quinta e onde vai procurando recuperar a força dos democratas-cristãos. "Agora era bom voltar para Portugal, mas para isso é preciso ter os votos. Eu pego no partido na altura mais difícil, mas temos relevância partidária significativa, até comparando com outros partidos que estão na AR", sublinha, elencando os 1500 autarcas, seis câmaras que o partido governa a solo, outras 40 em coligação e a presença nos governos regionais da Madeira e dos Açores e no Parlamento Europeu. "Mas perdemos o grupo parlamentar, e isso significa perder grande parte do financiamento e da exposição mediática, ferramentas fundamentais para quem faz política."
Este é um momento de resistência e inversão do ciclo. "Ninguém desconhece as dificuldades, mas estamos todos motivados e acreditamos que é possível dar a volta às circunstâncias", assegura, apesar do "realismo" com que encara essa perspetiva. "O caminho descendente é sempre mais rápido do que a recuperação, mas todas as iniciativas que fazemos enchem salas, de norte a sul, os dirigentes estão empenhados e esse é o primeiro passo", diz.
"Há um antes e um depois de 30 de janeiro de 2022." Este foi um ano de resistência, de arrumar a casa e reestruturar contas. Agora é tempo de voltar a erguer bandeiras e a boa reação nas ruas anima-o a percorrer o país. E o tempo de Chicão passou de vez? "O CDS é um conjunto de todos os tempos, eu levo todos ao benefício do inventário", brinca. O que interessa é para a frente, é o futuro, não são ajustes de contas. E para isso conta com todas as fações e ideias de um partido "fundador da democracia, credível, estável e de corpo inteiro". Ir a votos sozinho é o objetivo e o ciclo eleitoral que arranca com no próximo ano será determinante. "Termos eleições na Madeira, em que concorremos coligados com o PSD, com quem estamos no governo, e acredito que nos manteremos. Depois temos europeias, com o desafio de voltar a eleger; nas autárquicas gostaríamos de manter ou crescer, mas com o desafio de haver vários autarcas no limite de mandatos. E por fim as legislativas, em que naturalmente queremos voltar a ter deputados. Este é o calendário normal, mas depois há o que não se pode prever", sublinha, antes de afirmar que, se as eleições fossem hoje, acredita que o CDS voltaria à Assembleia.
Essa hipótese de as legislativas acontecerem antes do que seria certo com um governo de maioria absoluta tem vindo a ganhar força. "A instabilidade do governo é tal, a dificuldade em dar resposta nas mais variadas áreas é tal que não é líquido que o mandato vá até ao fim." Nuno Melo considera que seria bom que houvesse um tempo de estabilização no país, mas olhando a prestação deste governo vê uma clara a necessidade de mudança de ciclo. E o CDS tem "bons quadros, pessoas muito capazes em todas as áreas, reconhecidas publicamente" pela sua capacidade. "O CDS tem isso para dar ao país", resume. Vê na política uma "oportunidade de serviço público e uma causa" e diz que o facto de ter vindo a degradar-se até obriga os centristas a ser a outra face da moeda, a da credibilidade. "A política pode estar muito mal, mas não é por causa do CDS, bem pelo contrário. Temos pessoas extraordinárias que todos os dias, graciosamente - porque ninguém recebe um cêntimo - se esforçam por construir algo melhor."
Para o conseguir, defende que o partido tem de recuperar as suas marcas identitárias, a voz nas áreas que sempre lhe foram caras e que foram sendo tomadas, da segurança às questões de mercado, que não vê bem tratadas pelo Chega e pela Iniciativa Liberal, respetivamente. "O CDS não é só protesto nem é só mercado, é um fiel da balança", é o equilíbrio que vê como fundamental em todas as áreas da vida. Dá o exemplo económico: "O CDS defende um mercado dinâmico, que gera emprego e riqueza, mas não secundariza as questões sociais, tem a pessoa no centro da atividade."
É pela definição das âncoras eleitorais que definem o CDS que quer reafirmar o partido, de forma que permita consensos e soluções de governo no espaço de centro-direita. "Fomos o partido dos agricultores, dos reformados, dos ex-combatentes, etc. e muitos desses nichos foram-se perdendo. Para os recuperar, pedi a António Lobo Xavier que liderasse um pequeno grupo para apresentar as bases de um futuro programa eleitoral que discutirei com todas as distritais, levarei a votação em conselho nacional e depois justificará um grande congresso programático para criar consensos sobre as ideias a trabalhar para o futuro." Quer que isso aconteça após o verão e vê-o como determinante para reafirmar a marca de água do CDS.
Pergunto-lhe sobre as suas referências, quem o marcou no percurso político, e de imediato refere duas, quase antagónicas, Adriano Moreira e Francisco Lucas Pires. "Um tinha o lado conservador que é para mim muito apelativo, o outro teve o discurso liberal mais lúcido que já vi." Depois segue: "Manuel Monteiro era presidente quando cheguei e foi o homem que não deitou a toalha ao chão e rodeou-se de pessoas de enorme talento (Rosado Fernandes, Lobo Xavier, Paulo Portas, Luís Queiró, etc.). Também Paulo Portas, que é, do ponto de vista da intuição política, inteligência, acutilância e capacidade de criar facto político, uma pessoa absolutamente singular." Nas camadas mais jovens também vê sólidos valores, de Cecília Meireles e João Almeida a Pedro Mota Soares e Adolfo Mesquita Nunes. "Continuamos a ter pessoas que podem ter imenso futuro no CDS, de norte a sul."
Quando o tema é o CDS, em que se move desde que foi eleito deputado pelo círculo de Braga, em 1999, Nuno Melo é a cara que nos habituámos a ver nos palcos políticos, os gestos são os de quem conhece todos os cantos à casa, o à vontade e a agilidade de movimentos típica de quem percorre uma estrada familiar e emocionalmente próxima. Tem mais pudor em falar da pessoa fora da razão política, atalha a descrição pessoal como pode, baixa a voz quando o tema se encosta ao mundo em que se move sem holofotes. Não é receio, é uma preservação pessoal que contrasta com a confiança pública, com a paixão e orgulho na defesa das suas causas, e até com a vaidade que se lhe colou à figura política em quase três décadas de intervenção partidária.
Recuo 25 anos, aos tempos em que se estreou nestas lides. Conta-me que é um caso atípico porque não chegou à política através das jotas, mas já como advogado e a fazer do Direito prioridade. Estava bem a viver do escritório, mas depois veio o "lado imprevisível", com o convite a candidatar-se por uma estrutura em Famalicão, onde se filiara, e a partir daí deixou de controlar esta parte da sua vida. "Toda a vida votei CDS, toda a vida me revi no espaço liberal-social-conservador-decorata-cristão. Mas quando ganhei foram surgindo desafios consecutivos. Eu sempre gostei muito de política, em miúdo via telejornais, assistia a debates na AR e sem fazer ideia de que poderia acontecer imaginava que gostaria de fazer aquilo." O Direito foi semelhante: a defesa de causas e ideias é uma paixão inata e isso vale na defesa de alguém em tribunal e no poder transformativo da política.
Nuno nasceu num meio conservador e foi crescendo e vendo as pessoas da geração do pai à frente do partido até acharem ser tempo de dar lugar a outros. Foi nesse momento muito difícil, com o CDS reduzido ao partido do táxi, que se filiou, impressionado por um partido que tanto lhe dizia estar assim, mirrado. O PSD vivia um momento semelhante e o líder daquela concelhia social-democrata era então o seu amigo Álvaro Oliveira (também agora eurodeputado), numa Vila Nova de Famalicão em que o PS era tão histórico quanto as relações desavindas da direita no concelho. A amizade deu-lhes a lucidez de entenderem que podiam derrotar o PS se juntassem esforços - e conseguiram. Até hoje, a câmara virou para a coligação PSD-CDS, e Nuno Melo mantém-se presidente da Assembleia Municipal há 20 anos. "Quis sempre manter a ligação. Como dizia Adriano Moreira, a nossa terra e a nossa família são o eixo da roda."
Assumindo que a política é a sua grande paixão e o Direito - "a justiça em Portugal" - se tornou "desmotivante", sente-se um privilegiado por fazer o que gosta. Atrai-o a capacidade transformativa dos órgãos executivos, a oportunidade de mudar, ainda que a sua experiência tenha sido não essa, mas a lógica parlamentar. "Ambas são política; também se deixa marcas em leis e resoluções. Eu deixei a minha, por exemplo, na comissão de inquérito do BPN, que ajudou a entender perversidades da banca e deficiências do supervisor; na de Camarate também. E em muitos projetos de justiça no Parlamento Europeu. São passos da nossa vida com impacto na vida dos demais."
Quero saber mais sobre a sua infância. "Foi muito boa", atalha, já a suavizar o tom, enquanto se conta resultado de dois mundos. "A minha mãe era lisboeta, filha de um industrial com uma fábrica no Porto, e conheceu o meu pai, minhoto de uma típica família de proprietários, quando ambos estudavam Medicina no Porto. E eu nasço deste caldo que, sendo uma junção de dois mundos, implicava a vivência familiar em sentido lato, com tios e primos. Éramos como irmãos, e essa vivência foi muito enriquecedora, marcou-me até na forma de ver a vida e o mundo. Foi assim." Os detalhes têm de ser arrancados a perguntas. E o dia-a-dia como era, as brincadeiras, a vida? "A de uma criança normal. O maior contraste é a liberdade que tínhamos. Pegávamos na bicicleta de manhã e desaparecíamos até à hora de almoço e depois só aparecíamos de noite, sem preocupações."
Conforme explora as memórias desses tempos, vai soltando o discurso, entusiasma-se a contar as experiências que habitualmente não partilha e deixa de parte alguma da contenção inicial. Conta que experimentou todos os tipos de ensino, sempre com "ótimas escolas", e é por isso que defende a diversidade. Nascido na vila de Joane, João Nuno Lacerda Teixeira de Melo, hoje com 57 anos, começou por estudar num colégio em Riba d"Ave, o Externato Delfim Ferreira, ainda antes do 25 de Abril, e recorda-se bem desse tempo em que as aulas começavam com os alunos perfilados a cantar o Hino Nacional. Após a revolução, o colégio virou cooperativa e ainda viveu o dinamismo desses tempos dois anos, até passar para as Caldinhas, colégio de jesuítas irmanado do São João de Brito, onde cumpriu o 11.º ano e viveu "experiências extraordinárias", que lhe deram "amigos para a vida". Decidiu então que chegara a hora de ter uma "experiência mais urbana" e mudou para o Liceu D. Maria II, em Braga, após o que se mudou para a Invicta, onde cumpriu a licenciatura, na Universidade Portucalense.
Amou cada passo, mas diz que teria gostado de ter estudado fora, provavelmente por França ou Inglaterra, apesar do mistério que o atraía ao lado de lá do Muro de Berlim. Mas a sua geração não havia programas como os Erasmus.
Esses anos de estudos foram tempo de libertação, vivia sozinho (apesar de ter os irmãos e a avó na cidade), tirou a carta e tinha carro, o que lhe permitia ir onde queria. "Era um Citroën Visa 2 Club, matrícula AI-01-95", dispara. "E fui", ri-se, "fiz tudo a que tinha direito". Foi um tempo de afirmação e descoberta. "Associo esse carro a alguns dos momentos mais felizes da minha vida; éramos cinco lá dentro, tudo a fumar, corremos muitos lugares" - o brilho desses episódios a mudar-lhe a expressão para um inevitável sorriso. Conta que ganhou novos amigos-irmãos e entre decisões certas e erradas repete que foi "muito feliz".
Desde então, chamar ao Porto casa, mesmo que goste de Bruxelas e de Lisboa e que não prescinda o regresso à infância na quinta de Joane, em que reproduziu a sua memória e que quer proporcionar aos gémeos, João e Luísa, de 11 anos. Vivem os quatro, Nuno, a mulher, Ana - médica que conheceu num jantar em casa de um primo -, e os miúdos, a quem faz questão de passar "os valores certos e o equilíbrio que é essencial".
É talvez essa vontade de encontrar também o seu fiel que o leva à terra. Nuno gosta de ler, adora carros clássicos, mas tem essência de agricultor, que perpassa quando fala nesse fator "identitário". "A terra é central. Adoro o campo e adoro a cidade e tenho a felicidade de poder viver ambas, mas a agricultura dá-me muito prazer. E a caça também. Ortega y Gasset dizia "eu sou eu e as minhas circunstâncias"; e eu nasci na caça, que é profundamente identitária no mundo rural e ajuda ao ordenamento do território. O meu pai era um belíssimo caçador e permitiu-me conhecer um Portugal recôndito extraordinário, lindíssimo, de Vinhais a Alcoutim."
Se na caça a sua predileção vai para as perdizes, na agricultura são as árvores que lhe roubam a atenção. "Lá está, eu cresci a não ter de comprar estas coisas." Num dos livros que havia em casa do pai, dos finais do século XIX, descrevia-se espécies de fruta portuguesas muito valorizadas pelo paladar, como malápio (espécie de maçã) e verdeal (tipo de pera), que nunca tinha visto à venda. Tomou então por missão ajudar a preservar algumas dessas especialidades nacionais antigas na sua quinta. Juntou-se a um grande amigo - antigo vice-diretor da agricultura regional do Norte - e puseram-se a fazer a recolha de garfos para os enxertos, dando vida a um pomar com variedades hoje raras. "Em breve" vai até republicar um livro sobre fruticultura em Portugal no século XIX. O tema entusiasma-o tanto quanto a sorte de ter fruta todo o ano. "Fruta da época, sobretudo maçãs, peras e citrinos, muita e boa!"
Essa paixão, que só lhe chegou na idade adulta - "em criança, queria era brincar" - já contagiou os gémeos, que o vão vendo nesses trabalhos e colhem os frutos à vontade. E Nuno gostava de se reformar por Joane? "Eu gosto de mar, campo e cidade e enquanto tiver saúde hei de gravitar sempre entre os três cenários. Uma vida completa não se cumpre confinada a uma só realidade." Esse lado atlântico é cumprido nas férias, com uma temporada em Moledo. "Há amigos que ali reencontro todos os anos."
Proponho-lhe o exercício de avançar uns anos, para uma realidade em que o CDS já regressou ao Parlamento e nem consigo terminar. Endireita-se e retoma a alta velocidade: "Assim que isso acontecer passo logo a pasta! Correndo as coisas bem, dou o meu dever por cumprido." E explica: "Não tendo nós presença na Assembleia, eu acabo por ser o único deputado eleito num círculo nacional, com palco político e a possibilidade de mediatizar o que fazemos. Num partido sujeito a um certo apagamento mediático, isso é uma ferramenta importante. Por isso tomei esta opção." E se os democratas-cristãos não quiserem que saia? "A vantagem de um partido como o CDS é ter não só quadros de grande talento como pessoas com egos suficientemente dimensionados para quererem tomar conta da carruagem, por isso não me preocupo nada com essa hipótese", ri-se. A sua missão é recuperar o CDS. "Seria a missão de uma vida. A oportunidade de devolver a um partido que me deu tanto."
É como advogado que se define nos papéis oficiais - "A política não é profissão, a advocacia é" - e até se vê a voltar ao escritório, mas se depender dele, terá sempre dedo na sua paixão maior, a política. E nessa esfera, não hesita quanto ao legado gostava de deixar. "Gostava de devolver o CDS à Assembleia. Mas tenho consciência de ter pela frente muitos jogos de mata-mata." E se as europeias não correrem bem? "Sempre fui de assumir responsabilidades. Um líder é o primus inter pares, deve chamar a si até aquilo que não é sua responsabilidade direta. A responsabilidade política é determinante na credibilidade dos regimes democráticos."