Louis Boutan tirou a primeira foto submarina e o parceiro nesta estreia foi o biólogo romeno e explorador antártico Emil Racoviță.
Louis Boutan tirou a primeira foto submarina e o parceiro nesta estreia foi o biólogo romeno e explorador antártico Emil Racoviță.Direitos reservados

Um grande mergulho. No século XIX a fotografia visitou o reino de Neptuno

No final do século XIX, a arte fotográfica desceu ao fundo do mar. Em 1899, o francês Louis Boutan captava nas águas mediterrânicas a primeira imagem de um humano no reino de Neptuno. Em breve, as águas profundas davam palco a uma outra arte, o cinema.
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A doença alastrou como fogo a partir da costa leste dos Estados Unidos. O século XIX assistiu a uma das pragas mais devastadoras para a viticultura mundial, um acontecimento que redefiniu métodos e áreas de cultivo, debilitou economias em vários continentes, com impacto político e social. Um humilde afídeo, inseto da família Phylloxeridae, que se alimenta da seiva das plantas, ganhou o estatuto de “consumpção”, palavra também aplicada ao horror da tuberculose ou peste branca. O Phylloxera vastatrix, de até 3 mm de comprimento, alimenta-se das raízes das videiras, suga-lhes a seiva, injeta-lhes um veneno, estrangula a absorção de água e nutrientes do solo. Em consequência, a Vitis vinífera sucumbe.  À planta reserva-lhe um destino, o emurchecimento. Em meados da centúria de oitocentos, o termo Filoxera passaria a definir o inseto e a doença que lhe está associada.  Do nordeste dos Estados Unidos, em 1854, a filoxera disseminar-se-ia para França, com a primeira notícia a datar de 1863, três anos depois em Portugal, no vale do Douro. No século XIX o mundo acelerava, o transporte a vapor enlaçava com rapidez distantes geografias, o complexo ciclo de vida do inseto beneficiava de viagens mais rápidas. No ano de 1866, o sugador de seiva de tonalidade amarela era reportado na África do Sul. Na década de 1870 proliferava longe, nas jovens vinhas australianas. Salvavam-se as culturas do sul daquele território. Na época, um biólogo e fotógrafo francês percorria o país-continente austral numa expedição científica. Louis Marie-Auguste Boutan, nascido em 1859 em Versailles, olhava para o fenecimento dos vinhedos australianos e percebia-lhes a praga que consumira os campos do seu país natal. Também lhes levava uma solução, a enxertia com a vinha americana, resistente à praga. O homem que estudara biologia e história natural na Universidade de Paris e que, aos 20 anos, exercia a docência na Sorbonne, desempenharia um papel de relevo na mitigação da praga de filoxera em território australiano. Porém, para Louis Boutan a presença nos antípodas, prendia-se menos com o discernimento dos porquês da pestilência infligida pelo inseto e mais com a embaixada francesa enviada à primeira Exposição Universal realizada abaixo da linha do equador.

Boutan apresentava-se na Austrália como vice-chefe da missão francesa à mostra mundial que se realizava de outubro de 1880 a abril de 1881 na cidade de Melbourne. Nos anos anteriores, a cidade fundada em 1835, entrara a par de Sydney numa febre de organização de certames com visibilidade mundial. Melbourne, na então província autónoma de Vitoria, rivalizava com Sydney, na província autónoma de Nova Gales do Sul. Ambas viviam um generoso crescimento económico devedor da exploração de ouro. Ambas as urbes queriam atrair sobre si os olhos do mundo, com a organização de feiras no formato europeu, como mostra do progresso comercial, industrial, científico, nas artes e na educação. Sydney adiantou-se e, em 1879, inaugurou uma feira agrícola. Certame de dimensão modesta, ultrapassado no ano seguinte pela mostra em Melbourne. A Louis Boutan finda a incumbência na exposição universal, coube-lhe 18 meses para explorar a feição natural do imenso espaço australiano. Ali, o biólogo descobriria novas espécies para a ciência e exerceria a atividade que o notabilizaria nas décadas seguintes, a fotografia. A Boutan é creditado o feito de obter a primeira fotografia subaquática de um ser humano. Isto, 73 anos após a captação daquela que é tida como a primeira fotografia reconhecida, uma imagem produzida em 1826 pelo francês Joseph Nicéphore Niépce.  

Longe dos vinhedos australianos, da multidão de um milhão e meio de visitantes que assomou à Exposição Universal de Melbourne, Boutan encontrava nas águas brandas mediterrânicas de Banyuls-sur-Mer, o seu palco para mergulhar. O biólogo aprendera a mergulhar em 1886 numa época em que trabalhava no laboratório oceanográfico no seu paraíso mediterrânico. Seis anos volvidos, face aos desenvolvimentos da tecnologia fotográfica, Louis Boutan decidiu iniciar um projeto pioneiro, o de fotografar a vida subaquática. A partir de 1893, a par do seu irmão, Auguste, aperfeiçoou um dispositivo, uma caixa impermeável dotada de um flash, que lhe permitia descer uma câmara fotográfica abaixo do horizonte marinho. Em 1898, o docente e cientista publicou o livro La Photographie Sous-Marine et les Progrès de la Photographie (Fotografia Subaquática e Avanços na Fotografia), título precursor daquele que se tornaria num futuro próximo um novo ramo da fotografia. Antes do século XX marcar uma nova página nos calendários, Louis Boutan desceu às profundidades de Banyuls-sur-Mer apontou a sua câmara fotográfica ao biólogo romeno e explorador antártico Emil Racoviță e fez história. Fantasmagórico, escondido sob um escafandro, o cientista avulta na névoa das águas costeiras. No ano seguinte, em 1900, Boutan pontuaria na Exposição Universal de Paris com uma série de imagens do mundo subaquático. Ao biólogo e fotógrafo que faleceria em 1934, a década de 1910 encaminhara-o para a Indochina (em sentido restrito abarca atualmente o Camboja, Vietname e Laos) e para a invenção de um aparelho de mergulho para o exército.

Da foto brumosa de Louis Boutan à descoberta pela Sétima Arte dos ambientes subaquáticos, o caminho foi breve. Em 1914, o inglês John Ernest Williamson, realizou o primeiro filme sob as águas. Thirty Leagues Under te Sea (Trinta Léguas Submarinas), assombrou o público com uma hora de documentário filmado ao largo das Bahamas, com recurso a uma câmara instalada dentro de uma esfera de aço. “Estas pradarias e florestas oceânicas parecem muito diferentes das ilustrações que vemos nos livros, dos espécimes que vemos nos museus, pois percebemos que é para a vida que olhamos”, lia-se nas páginas do jornal The Independent, a 2 de novembro de 1914. O clímax do filme dá-se na luta entre Ernest Williamson e um tubarão. Dois anos depois, o mesmo realizador embrenha o seu talento na ficção sob as águas. Realiza Twenty Thousand Leagues Under the Sea (Vinte Mil Léguas Submarinas). A luta faz-se, então, com gigantescos cefalópodes, saídos da inventiva do escritor francês Júlio Verne em 1870. Distante da fotografia solitária de Louis Boutan. 

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