Beatriz Flamini
Beatriz FlaminiGlex Summit

“Um ano depois, ainda não estou preparada para ver as filmagens dos 500 dias que passei na gruta”

Beatriz Flamini explora montanhas em situações extremas de isolamento e autossuficiência. Em abril de 2023 foi notícia em todo o mundo ao sair de 500 dias sozinha numa gruta. A readaptação ao exterior, garante, custou mais do que a experiência. E fazer o luto do que ficou para trás está a ser complexo.
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A ideia de Beatriz Flamini quando desceu a 70 metros debaixo do solo na gruta de Motril para passar 500 dias era testar-se ao limite, mentalmente, e bater o recorde mundial de dias consecutivos passados num ambiente subterrâneo, atribuído ao sérvio Milutin Veljkovic (463 dias). O recorde acabou por não ser reconhecido devido a um problema técnico com o seu equipamento de comunicação de emergência que a obrigou a um breve contacto com um elemento da equipa de assistência, à passagem do 300.º dia, em setembro de 2022. Mas a experiência, essa, não mais se apagará e deixou consequências difíceis de digerir, como partilhou com o DN na Glex Summit, a cimeira que trouxe até à ilha Terceira alguns dos grandes nomes de exploradores mundiais.

A 21 de novembro de 2021 resolveu baixar a 70 metros debaixo do solo para numa gruta perto de Granada, sul de Espanha, e passou lá 500 dias sem ver diretamente a luz do dia (saiu a 14 de abril de 2023). Qual era verdadeiramente o seu propósito?
Eu sou uma desportista profissional e de elite. Aquilo que faço são expedições num estilo desportivo em que vou sozinha e em autossuficiência. Sozinha é não ter nenhuma companhia animal nem humana. E em autossuficiência significa ter de valer-me a mim mesma em qualquer situação. Comecei a preparar uma expedição a um país remoto, montanhoso e desértico e, bem, entrei na gruta porque pensei que não estava preparada. Fisicamente, estava muito forte para fazer a expedição, mas mental e emocionalmente talvez não estivesse assim tão forte. Por isso, disse: vou viver um período numa gruta. Era a única maneira de saber se estava pronta para fazer algo tão extremo, para levar a solidão ao limite. Se queria estar pronta [para a expedição], não tinha outra escolha senão treinar numa caverna. Logo, essa missão da Gruta do Tempo, 500 dias dentro de uma gruta, foi um treino para essa expedição.


Essa expedição será à Mongólia. Porquê a escolha da Mongólia? ¿Que procura nessa expedição?
Procuro solidão. A Mongólia porque é um país que tem três vezes o tamanho de Espanha ou da França e tem apenas dois milhões e meio de habitantes; porque não consigo comunicar, não sei a língua; porque há montanhas e um deserto que não conheço. São essas as razões, vou a sítios desconhecidos para explorar, para abrir novos caminhos.


Escolhe os locais pelo que pode descobrir sobre eles ou pelo que eles lhe podem fazer descobrir sobre si própria?
O que me motiva primordialmente é conhecer, porque sou muito curiosa. Desde pequenina sempre gostei de andar a procurar coisas novas. E faço-o primeiro porque me apetece muito conhecer o país, e conhecê-lo em estilo solitário e em autossuficiência. E depois faço-o também por mim, para me conhecer cada vez mais e melhor, porque creio que nós, humanos, somos mais do que aquilo que pensamos de nós próprios. Somos muito mais. E a permanência na gruta durante 500 dias demonstrou-me isso.

Fá-lo-ia outra vez?
Se hoje fosse dia 21 de novembro de 2021, sem dúvida. Hoje não, porque estou doente. Amanhã, se calhar sim. Daqui a três dias, porventura já não. Depende do estado físico e de espírito com que estamos em determinado contexto da nossa vida. Mas se tivesse que voltar atrás, àquele dia, definitivamente sim.

E como “fez” passar o tempo durante esses 500 dias? De que sentiu mais falta?
Bom, a única coisa de que senti falta foi da minha máquina fotográfica, mas não pude levá-la porque a câmara tem um ecrã onde se pode ver a data e isso não é válido. Por isso, senti falta máquina, mas não senti falta de mais nada, porque para mim aquilo passou rápido.

Como assim passou rápido?
Sim. Para mim, foi entrar na gruta, preparar o acampamento base, comer, ter uma longa e estranha insónia e sair. De resto, tricotei muito e trabalhei com cores, muitas cores, porque dentro da gruta é tudo monocromático e escuro e isso não é bom para a glândula pineal [o pequeno órgão no nosso cérebro que 
regula o sono], porque se as células da glândula pineal não veem cores acabam por ficar desreguladas. Então aquilo que eu procurava fazer era tecer com lãs coloridas, fiz muitíssimos gorros para toda a gente, e escrever, ler, desenhar.

Quantos livros levou para a gruta?
Creio que 67, mas a grande maioria deles acabei por lê-los duas vezes, por isso dá praticamente o dobro desse número. Não sei exatamente, mas todos os dados foram recolhidos pelo grupo de assistência que acompanhou esta missão, os espeleólogos, e eu ainda não quis saber nada da parte deles.

Houve algum momento mais extremo que a tenha feito hesitar sobre se conseguiria levar essa missão até ao fim?
Sim, houve uma vez um problema com moscas e foi um risco. Houve uma invasão de moscas, porque elas entraram de alguma forma, colocaram as suas larvas e de repente aquilo ficou cheio de moscas e estava a ficar insuportável. Tive que comunicar à equipa no exterior e eles enviaram-me umas daquelas tiras com cola para que as moscas fiquem lá presas, porque dentro da gruta não podes contaminar nada com sprays, com nenhum tipo de veneno que interfira com a vida natural.

Podíamos pensar que o mais difícil já ficou para trás, mas pouco mais de um ano depois diz que ainda não conseguiu ver as filmagens da experiência por que passou. Está a ser mais difícil confrontar-se com o que passou do que ter passado por isso?
Sim, ainda não consegui ver as imagens. Porque, a mim o que me ocorreu é que de repente começou a surgir uma Beatriz que não surgiria em quaisquer outras circunstâncias. Eu gravei tudo… se estava feliz, se estava triste, se chorava, se me lavava, tudo, tudo. E houve momentos em que me aborreci, em que divaguei, em que tive reações que não controlei, então ainda não sei se estou preparada para ver esses momentos em, evidentemente, sou eu que estou ali mas nos quais te questionas a ti próprio sobre quem és tu. No exterior eu não me comportaria assim nem pensaria daquela maneira. E outro motivo é porque recordo muito pouco do que aconteceu lá. O meu cérebro entrou numa espécie de amnésia seletiva, desconectou-se. Recordo algumas coisas, claro, mas não o filme completo da experiência. E antes de ver essas imagens e contaminar a minha versão, quero ser capaz de escrever o que tenho aqui dentro como o retive. Sem filtro. E depois, sim, compará-lo com as imagens e com a equipa de assistência, com a psicóloga. Até porque choro, choro, choro ao pensar nisso.

E já conseguiu começar a escrever?
Não, também não. Desde que saí passou aproximadamente um ano. Há muitos desportistas, e muitas pessoas em geral, que depois de umas experiências muito marcantes, como umas férias maravilhosas, por exemplo, entram em depressão quando têm de voltar à rotina. Em Espanha chamamos-lhe o síndrome pós-férias. Pois imagina a minha depressão depois destas largas férias num sítio onde eu quis muito estar, onde fiz o que queria fazer, treinei para isso, saí com os meus objetivos cumpridos. Eu não queria sair quando me disseram: ‘olha, já está, tens que sair’.

Custou mais o regresso ao mundo exterior do que os 500 dias na gruta?
Sim. Os seis primeiros meses foram muito inquietantes e os outros seis foram já de luto. Esta coisa de fazer o luto de algo querido que nunca mais vais voltar a ter. Ainda me emociona muito, embora um pouco menos já. Mas sim, tem sido um ano brutal de readaptação ao exterior e ainda não estou completamente readaptada.

Mas não estava curiosa por saber o que se tinha passado cá fora ao longo desse tempo todo? Não havia nada em particular por que estivesse expectante de saber algo?
Não, não. Nada. Somente poder sentar-me com as pessoas que me assistiram do exterior, perguntar-lhes como estavam. Era a minha única necessidade. E ainda não nos conseguimos sentar para analisar a missão, por culpa minha, que ainda não me sinto preparada para isso.

Quando lhe contaram o que se tinha passado no mundo entretanto, ou notícias de amigos, família, política, guerra na Ucrânia, o que seja, não houve nada que a tenha surpreendido especialmente?
Não. É sempre o mesmo. Apercebes-te rapidamente que as notícias são as mesmas, com uma outra variação, os conflitos são os mesmos, nada de novo. A única coisa na verdade, é que pensei que ia encontrar o mundo ainda pior. O ser humano é estúpido por natureza, repetimos a história uma e outra vez, não aprendemos nada com o passado. Basta ver onde estamos agora.

O que a fez abandonar uma vida estabelecida, com um trabalho anterior como professora de aeróbica, uma casa, uma relação e mudar radicalmente de vida para se dedicar à exploração na natureza?
Fi-lo porque não era feliz. A educação tradicional, pelo menos as minhas referências culturais, de que o ser humano nasce, cresce, estuda, trabalha, casa, tem filhos, um carro e essas coisas, nada disso a mim me fazia feliz. Não me encaixava nesse padrão. Então um dia questionei-me a mim mesma: O que queres mesmo fazer antes de morrer? E o que queria era pegar na mochila e ir viver sozinha para as montanhas. E é o que estou a fazer. E se não fosse isso não tinha passado por esta experiência da Gruta do Tempo. E é assim que sou feliz, garanto.

Pronta para a Mongólia agora?
Sim. Estou a planear arrancar no início de 2025, espero conseguir completar o financiamento da expedição até lá.

O jornalista viajou para a Terceira a convite da Glex Summit

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