O Centro das Taipas abriu portas a 17 de Agosto de 1987 e a 1 de setembro lançava o serviço de urgência, respondendo 24 sobre 24 horas ao tratamento e acompanhamento da toxicodependência. Foi criado através de um decreto-lei da então ministra da Saúde, Leonor Beleza, mas teve dois co-fundadores, os médicos Nuno Miguel e Luís Patrício, a quem muitos chamaram “visionários” na forma como lançavam Portugal na abordagem e no tratamento da dependência de substâncias ilícitas. A partir daqui, e até à década dos anos de 2010, Portugal tornou-se referência mundial no tratamento das dependência através da criação de respostas quer para a desintoxicação. Depois deste centro surgiram comunidades terapêuticas, equipas de rua, projetos como o de troca de seringas, apoio a cuidados nas prisões, salas de consumo assistido e legislação inovadora que levou à redução do consumo. Mas hoje, e numa altura em que os números apontam para um aumento no consumo de substâncias ilícitas, com novas drogas, como o crack, e no álcool, os funcionários do Centro das Taipas receberam da sua direção uma carta a informar que a unidade de desintoxicação ia fechar a partir de 3 de março, pedindo mesmo que não fossem aceites mais doentes e que começassem a "gozar" as horas feitas em excesso. Ao DN, o conselho diretivo do Instituto para os Comportamentos Aditivos e Dependências (ICAD), organismo que tutela a área desde o final de 2023, assumiu o grave problema de falta de recursos humanos no Centro das Taipas, sublinhando que os profissionais não conseguem trabalhar 24 horas por dia. Mas em resposta ao DN, esta sexta-feira ao final do dia ao nosso jornal, o Ministério da Saúde garantiu que "a unidade de internamento do Centro das Taipas não irá encerrar", referindo que "o ICAD, em conjunto com os profissionais, procedeu à otimização das escalas, para o internamento funcionar por grupos, utilizando toda a capacidade instalada".Ora, não era isto que foi referido ao DN por fontes do centro, nem o que estava referido nas cartas que os profissionais receberam. Na conversa com o vogal do conselho diretivo do ICAD, Manuel Cardoso, o próprio assumiu: “Precisamos de ajuda. Claramente não estamos a ter capacidade para dar resposta àqueles que procuram os nossos serviços. Se não temos capacidade para tirar as pessoas das ruas e tratá-las é normal que haja um recrudescimento nas dependências.” E sublinhou: “Costumamos dizer que estamos a ser vítimas do nosso sucesso. Portugal trabalhou tão bem nesta área que deixou de investir. Há 15 anos tínhamos tudo a funcionar, agora tudo está a extinguir-se paulatinamente”, assumindo mesmo que “as listas de espera são hoje maiores do que há 15 anos”.Na mesma resposta, o MInistério da Saúde argumenta que "o problema das dependências e a sua resposta é uma prioridade" e que quando esta equipa chegou ao MS encontrou uma situação de "perda crónica de profissionais de saúde ao longo dos últimos anos, que não foi colmatada, tal como se pode confirmar na evolução do número total de recursos humanos". A tutela destaca ainda que "tem autorizado todos os concursos de recursos humanos neste âmbito que lhe foram remetidos. Prova disso é que o ICAD tem aberto concursos internos para colmatar a perda destes profissionais". E que "apenas ontem (dia 20 de fevereiro), chegou à tutela um pedido de abertura de concurso externo, que contempla a contratação de profissionais para o Centro das Taipas, entre outras unidades do ICAD espalhadas pelo país. A tutela já analisou o pedido, e solicitou hoje documentação adicional ao ICAD, para o pedido ser posteriormente encaminhado para as finanças, para autorização de abertura".. Profissionais saíram e concursos internos ficaram vaziosMas vida no Centro das Taipas tem vindo a piorar nos últimos anos, tendo chegado a unidade de internamento ao limiar das camas viáveis, apenas dez. E, segundo assumiu o dirigente do ICAD, tudo por causa da falta de recursos humanos. “O problema que o Centro das Taipas enfrenta é claramente o de falta de recursos humanos, porque os profissionais começaram a sair por reforma ou até para irem para outros locais por mobilidade e os que estão são insuficientes para manter a unidade de desabituação aberta”. Aliás, ressalva, "a falta de recursos humanos atinge todas as classes profissionais, médicos, enfermeiros, assistentes operacionais, psicólogos e terapeutas", dando exemplos: "Neste momento, na unidade de desabituação temos cerca de 100 horas de enfermagem e precisamos de mais de 150 horas. Há apenas dois médicos a dar suporte à unidade de internamento, e ainda que consigam dar esse apoio, depois não conseguem assegurar todos os tempos de prevenção", refere. Mas "tão importante quanto estes profissionais, são os assistentes operacionais, que são em número muito insuficiente e que têm de estar presencialmente o tempo todo. Portanto, por muita boa vontade que os profissionais das Taipas tenham, não conseguem trabalhar 24 horas sobre 24 horas. Não é possível, sublinha". .Droga: 55 mil pessoas em tratamento, jovens consomem LSD - balanço de últimos 10 anos. Os profissionais saíram e não foram feitas novas contratações para os substituir. Manuel Cardoso confirma que o ICAD, organismo que veio substituir o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), já lançou vários concursos internos de recrutamento no âmbito da mobilidade, mas que estes ficaram , de facto, vazios. “Era o que podíamos fazer, abrir concursos internos para várias áreas, nomeadamente para assistentes operacionais de saúde, mas houve candidatos”.O dirigente do ICAD assume que a falta de interesse nos concursos internos também terá a ver com o facto de “não conseguirmos oferecer condições vantajosas”, a ponto de os profissionais não considerarem a mudança de um serviço do SNS para ali. Tal como refere o ministério na sua resposta ao DN, o ICAD solicitou autorização à tutela para lançar concursos externos para ver se é possível recrutar profissionais fora da estrutura do SNS, mas sabe que este será “um processo que levará muito tempo”.O dirigente aproveita para sublinhar “os esforços que os profissionais das Taipas têm feito para manter o centro a funcionar”, referindo que, neste momento, o ICAD continua a tentar “estabelecer contratos com empresas que contratam médicos reformados para ver se ainda é possível manter a unidade aberta, mas, mesmo isso, tem sido muito difícil”. Os mesmos esforços “têm sido feitos em relação à contratação de enfermeiros, também através de uma empresa, mas também não foi possível. Vamos ver se conseguimos ainda encontrar uma forma de manter a unidade aberta”. A data limite dada aos profissionais era o dia 3 de março e o ministério tenta agora através da otimização das escalas que isso não aconteça, mas os profissionais gostariam de outras respostas. . Há plano de recuperação, mas recursos já faltam no ambulatório também A falta de recursos já atinge também a unidade de ambulatório do Centro das Taipas, embora, Manuel Cardoso sustente que "o grave nesta situação é mesmo o internamento porque a unidade de alcoologia também está fechada por falta de recursos e por falta de obras, que implicam um grande investimento”. Ora, são duas unidades de internamento para o tratamento de dependências que não estão a dar resposta. O DN questionou o dirigente do ICAD, médico de formação, sobre se a tutela tinha conhecimento de toda esta situação. E a resposta foi que 'sim'”. “A tutela está informada e já propusemos um plano de recuperação que integrasse as duas unidades das Taipas, estavam juntas, mas parte do edifício foi cedido para internamento de doentes inimputáveis quando fechou o Hospital Miguel Bombarda, e uma das unidades teve de sair. Entretanto, os doentes inimputáveis já saíram, mas o resto do edifício não nos foi devolvido. E o internamento funciona num pavilhão e o ambulatório noutro”.Segundo explicou, este plano de recuperação iria juntar também às unidades das Taipas a unidade de internamento de alcoologia. “Estamos a tentar juntar a intervenção no internamento para que possa haver uma resposta mais robusta a nível da desabituação das substâncias ilícitas e do álcool, procurando também maior articulação com o próprio Hospital Júlio de Matos”, porque "as dificuldades nas respostas são cada vez maiores".ICAD com menos 2/3 do orçamento que precisaA situação “é grave” no Centro das Taipas, mas também em todos os organismos que trabalham na área do tratamento às dependências, tanto de substâncias ilícitas, alcoolismo, jogo, internet, etc. O próprio ICAD está a braços com uma situação de desorçamentação. “Temos um orçamento que corresponde a menos de 2/3 do que necessitamos”, afirma Manuel Cardoso, destacando: “Temos um orçamento que dá para pagar aos profissionais do ICAD, mas não dá para pagar o plano operacional de respostas integras, como comunidades terapêuticas, que são parcerias com regras, ou o financiamento para as equipas de rua, centros de acolhimento ou de abrigo, etc. Portanto, estamos a deixar de ter as respostas que o país tinha na década de 90, numa altura em que há parece haver um recrudescimento nos consumos, tanto do substâncias como de álcool”.Quando perguntamos, o porquê desta falta de investimento numa área que foi pioneira, o dirigente do ICAD responde: “Essa pergunta não nos deve ser feita a nós”. O DN questionou também a tutela nesta matéria que responde: "O ICAD tem este ano (2025) um financiamento superior ao que lhe foi atribuído no ano de 2024 (58.361.462 versus 56.004.289). Ainda assim, e cientes da possibilidade de reforço orçamental, está já prevista uma reunião entre o Gabinete da Secretária de Estado da Saúde, a ACSS, o Gabinete da Secretaria de Estado Adjunto e do Orçamento e o ICAD". Na resposta, é referido ainda estar "previsto no orçamento de 2025 do ICAD um reforço de 105 recursos humanos. De salientar que em 2024 o ICAD (já depois da fusão SICAD e DICAD) tinha um total de 1202 profissionais, inferior ao do antigo IDT no ano da sua extinção (ano de 2012, 1259)”.O dirigente do ICAD reconhece ao DN que se a situação no orçamento é mais grave este ano, é por causa do “processo de transição do SICAD para o ICAD”. Ou seja, o que foi tido em conta para o orçamento de 2025 foi a verba de atribuída para 2024, a qual só reportava a nove meses e não a 12. E sem orçamento, refere, “não conseguimos dar as respostas necessárias nas unidades de ambulatório, de internamento, de desabituação, nem para dar resposta nas comunidades terapêuticas nem às equipas de rua".Manuel Cardoso argumenta ainda que, "se não conseguirmos tirar as pessoas da rua, elas vão continuar lá. E na minha opinião o aumento de consumos tem muito mais a ver com esta incapacidade de dar respostas e de ajudar aqueles que pedem ajuda e que querem sair deste circuito”.De acordo com o último relatório do ICAD, com dados de 2022, havia 24 mil utentes em tratamento, 3596 tinham-no iniciado nesse ano. E já nesta altura, o relatório destacava "o relevante aumento de utentes a iniciarem tratamento com a cocaína como droga principal". Hoje, diz Manuel Cardoso, “temos cerca de 40 mil utentes em tratamento, mas segundo as estimativas em relação aos comportamentos aditivos e dependência do álcool é que cerca de 4,2% da população tem problemas de dependência”. O Ministério da Saúde diz estar a reorganizar a resposta nesta área. Manuel Cardoso, como dirigente no ICAD, diz continuar a acreditar que Portugal vai continuar a dar resposta a esta área de tratamento. Mas as dificuldades existem e há muitos anos que os profissionais vêm denunciando a situação de degradação. Se nada for feito, daqui a uns anos tudo estará pior.