"Todas sabemos". Boaventura Sousa Santos entre acusados de assédio no CES

Um artigo num livro sobre assédio sexual na academia acusa dois dos membros do Centro de Estudos Sociais de Coimbra, um dos quais Boaventura Sousa Santos, de usarem o seu poder sobre jovens estudantes e investigadoras para "extractivismo sexual", e a instituição de silenciamento e cumplicidade. Acusados negam qualquer comportamento inapropriado. CES anuncia investigação.
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A publicação, pela prestigiada editora académica Routledge, de um livro sobre condutas sexuais inapropriadas na academia está a causar ondas de choque no meio académico português.

Intitulado Sexual Misconduct in Academia - Informing an Ethics of Care in the University (Má conduta sexual na Academia - Para uma Ética de Cuidado na Universidade), o livro, disponibilizado online a 31 de março, tem 12 capítulos, o último dos quais descreve acontecimentos ocorridos numa instituição que, não sendo nomeada - as organizadoras do volume assumem na introdução a opção pelo anonimato das instituições e pessoas referidas - é facilmente identificada, até por ser a única em comum no percurso das três autoras, como sendo o Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

Do mesmo modo, também não é difícil perceber que os dois homens referidos nesse capítulo como protagonizando condutas sexuais inapropriadas, crismados na narrativa como "The Star Professor" (o professor estrela) e "The Apprentice" (o aprendiz) são, respetivamente, o sociólogo Boaventura Sousa Santos, diretor emérito do CES, e o antropólogo Bruno Sena Martins, investigador do quadro da instituição.

Quase seis anos depois da explosão internacional do movimento metoo, este é um dos primeiros relatos de condutas sexuais inapropriadas numa instituição portuguesa a permitir identificar os acusados.

Confrontados pelo DN, os próprios assumiram reconhecer-se como retratados sob essas denominações, refutando no entanto as acusações que lhes são feitas.

"É evidente que [o artigo] se refere ao Centro de Estudos Sociais", escreve Boaventura Sousa Santos (BSS) em resposta ao jornal, na qual diz ser o CES "um alvo apetecível por muitas razões, e eu certamente em especial".

Frisando que o texto "foi certamente escrito sob aconselhamento jurídico para, não mencionando nomes, evitar ardilosamente queixas judiciais", BSS vê-se como alvo de "cancelamento". "Nas instituições académicas norte-americanas tornou-se um pesadelo. Colegas (homens e mulheres) injustamente acusados e até ilibados em processos judiciais internos (caso do Professor Comaroff) continuam a ser vilipendiados. Pelos vistos, vai-se alastrando pelo mundo".

"O que é descrito", prossegue, é "uma distorção e uma falsificação da realidade a meu respeito e a respeito do CES, de tal ordem que nem sequer ouso comentar. (...) O ambiente académico de proximidade e de crescimento coletivo que criámos ao longo de décadas é arrasado de uma maneira vil e inqualificável. (...) O artigo é um típico produto de um ataque ad hominem em que o mundo académico começa a ser fértil. O objetivo é lançar lama sobre quem se distingue e luta por um mundo melhor. O neoliberalismo está a roubar a alma da solidariedade e da coesão social e criar subjectividades que canalizam os seus ressentimentos para acusações de que sabem não poder haver contraditório eficaz. Chama-se a isso cancelamento." E lamenta: "Aos 82 anos de idade julgava ter direito a um pouco de paz, mas infelizmente o mundo em que vivemos não permite que isso suceda."

Certificando ainda que "quando houver conduta menos correta as instituições devem actuar", e que "o CES tem um Código de Conduta, uma Comissão de Ética e uma Provedoria", o diretor emérito do CES garante: "Os factos de alegada conduta menos ética mencionados nunca foram apresentados aos órgãos do CES."

Também Bruno Sena Martins, de 45 anos, exprime a sua indignação na resposta ao DN. "Não resta dúvida que a intenção das autoras é a de me expor, sem a coragem de dizer o nome, e que eu seria a pessoa designada por "Apprentice". (...) Ao contrário do que o capítulo ora publicado ardilosamente pretende insinuar, quero reiterar que em momento algum agredi física ou sexualmente [uma das autoras do artigo] ou qualquer outra pessoa." Sena Martins garante igualmente que "em nenhum momento" foi alvo de queixa, na academia, por assédio ou comportamentos inapropriados.

As autoras do artigo, a belga Lieselotte Viaene, a portuguesa Catarina Laranjeiro e a norte-americana Miye Nadya Tom, que estiveram no CES como, respetivamente, investigadora de pós-doutoramento (com uma bolsa Marie Curie) e estudantes de doutoramento, e que estão agora noutras instituições universitárias - Viaene é professora na Universidade Carlos III, em Madrid, Laranjeiro está como investigadora no Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova e Tom é professora na Universidade de Nebraska, em Omaha, EUA- foram contactadas pelo DN mas declinaram qualquer comentário.

Alguns dos 12 artigos reunidos no livro da Routledge são narrações de experiências diretas de quem os escreveu; é o caso do assinado pelas três académicas referidas, que se apresenta como "Notas autoetnográficas sobre uso do poder sexual como controlo de acesso na academia avant-garde".

No abstract/resumo, as autoras dizem que, apesar de terem em comum no seu percurso a instituição que sabemos ser o CES, só se deram conta da existência umas das outras após um determinado acontecimento. Esse acontecimento, que dá nome ao artigo - "The walls spoke when no one else would/As paredes falaram quando ninguém se atrevia" - consistiu no aparecimento de uma série de graffiti nas paredes do CES e da Universidade de Coimbra.

Sem eles, garantem, não teriam escrito aquele capítulo do livro, não se teriam conhecido, não teriam a coragem de denunciar: "Embora os graffiti anónimos (contámos oito) não tenham provocado um escândalo público (inter)nacional, reforçaram uma (...) rede de murmúrios, que nos permitiu entrar em contacto, partilhar, e escrever este capítulo em conjunto. (...)"

O artigo não situa temporalmente essa sucessão de "escritos no muro" que terão, adiantaram vários membros do CES ao DN, ocorrido no outono de 2018. De acordo com uma das pessoas ouvidas, coincidiram com o colóquio dos 40 anos da instituição.

Essas pichagens, narra o artigo e o DN confirmou através de outras fontes, eram sempre prontamente apagadas. "Vi ene graffiti nas casas de banho na altura do colóquio", diz um membro do CES que falou na condição de não ser identificado. "Vários eram acusatórios. E senti-me mal com a pressa com que aquilo era apagado. Causou-me grande incómodo."

Uma das situações referidas no artigo para ilustrar a aflição causada pelas pichagens é protagonizada por "uma das feministas mais conhecidas da instituição", a qual terá "coberto um dos graffiti com o seu casaco enquanto esperava que o viessem apagar."

Das três autoras, só Lieselotte Viaene, que é referida no artigo como "a ex investigadora de pós-doutoramento" (Catarina Laranjeiro é a "ex estudante nacional de doutoramento", e Miye Tom a "ex estudante internacional de doutoramento"), viu pessoalmente os graffiti - as outras estavam à época a viver fora de Portugal, tendo tomado conhecimento dos escritos por fotos, que circularam entre um grupo de pessoas: "Ao contrário do que se passa com as paredes, é impossível apagar as imagens de todos os aparelhos para os quais foram enviadas."

O primeiro graffito com que Lieselotte se deparou estava na entrada do centro. Em inglês, o artigo reprodu-lo como "Beat it or go away [name of Star Professor]. We [females] all know it." Em português, o escrito lia-se (a fotografia foi enviada ao DN e vários membros do CES o referiram em conversas separadas) "Fora Boaventura. Todas sabemos".

O artigo descreve a reação da académica belga: "Ficou chocada e confusa, mas a situação de conflito em que estava com a instituição de acolhimento começou a fazer sentido. Embora se sentisse completamente isolada, percebeu que outras colegas carregavam o mesmo fardo."

Outra das pichagens cuja fotografia o jornal recebeu mostra a frase "a linha abissal passa no teu cu". Remete para a expressão usada pelo sociólogo para designar "as linhas cartográficas "abissais" que demarcavam o Velho e o Novo Mundo na era colonial", e que considera subsistirem "estruturalmente no pensamento moderno ocidental", associando a "injustiça social global" à "injustiça cognitiva global", e concluindo que "a luta por justiça social global" exige a "construção de um pensamento "pós-abissal"".

Um dos pontos focais do artigo é precisamente o "amargo" contraste entre a autodefinição do CES como "uma instituição vocacionada para a produção de conhecimento crítico com vista à construção de uma sociedade mais inclusiva e mais justa", e a apresentação da sua figura tutelar como defensor da justiça social e restaurativa, e a "completa ausência de formas positivas e construtivas de lidar com o descontentamento e as queixas de todas as jovens investigadoras".

A abordagem da instituição "perante o bullying, a manipulação, a coação e o controlo é piorada pelo facto", escrevem Viaene, Laranjeiro e Tom, "de que os seus princípios teóricos sobre uma academia decolonial, inclusiva e reflexiva criam a convicção de que lutará contra injustiças e abusos se alguma vez se deparar com eles na vida real. Este enorme fosso entre a teoria e a prática reforça relações abusivas (...). Como já demonstrado noutras investigações no mesmo contexto, homens que se apresentam publicamente como feministas e são abusadores em privado revelam-se cada vez mais numerosos. Geralmente mantêm relações próximas com mulheres e pessoas não binárias, que podem proteger-lhes a reputação se forem acusados de condutas sexuais inapropriadas."

Vamos então às "condutas sexuais inapropriadas" em causa no artigo: falamos de quê?

Para responder a esta pergunta é preciso lê-lo com redobrada atenção: está escrito de forma nada linear, somando à não identificação do local e das pessoas designadas a indeterminação temporal, e parecendo, com raras exceções, fugir deliberadamente à clareza no que respeita à descrição de episódios específicos de assédio ou abuso - talvez também, como aventa BSS, para evitar processos judiciais.

As autoras dão uma explicação diferente: "Assumindo que a memória é a fonte primária da nossa análise, é essencial sublinhar que a verdade de uma autoetnografia não é estável, uma vez que a memória é ativa, dinâmica, e mutável. Acresce que estamos a refletir sobre situações de abuso institucional, que tendem a acontecer em lugares privados e sem testemunhas. Podem ser conhecidas através das vozes de sobreviventes, naturalmente subjetivas, emocionais e até ressentidas. Estamos a escrever a partir dessas vozes."

Considerando que "exigir objetividade a uma descrição de sobrevivente é um ato de violência", afirmam até que, "comummente, sobreviventes não conseguem lembrar-se de detalhes do abuso ou podem confundir dois casos de abuso no mesmo. Estes erros podem ser psicologicamente verdadeiros e essa verdade pode ser mais reveladora do que o relato factual."

Entre os episódios narrados - uns apresentados como tendo sido vividos pelas autoras, outros em que não se percebe se é o caso e outros ainda atribuídos à "rede de murmúrios" - há desde menções a "sexual assault" até a um abraço demasiado longo e apertado que fez a abraçada sentir-se assediada.

Começando por este último, que é relatado como tendo-se passado com Catarina Laranjeiro e o "professor estrela": a situação ocorreu num restaurante no qual, segundo o artigo, era "uma regra não escrita" que todos os investigadores deviam reunir-se anualmente com BSS (trata-se, segundo o próprio esclarece na resposta ao DN, de o restaurante Casarão) em longos jantares em que se bebia muito e que acabavam de madrugada.

"Durante um desses jantares, a ex estudante nacional de doutoramento e outra colega foram abraçadas pelo professor estrela. Este gesto, aparentemente inócuo, durou demasiado, insinuando familiaridade excessiva ["inviting closer familiarity"]. Um colega de doutoramento percebeu o que se estava a passar e avisou-as de que este tipo de comportamento inapropriado era habitual, aconselhando-as a terem cuidado."

Outra referência a BSS diz respeito a uma situação em que o "professor estrela" teria tocado o joelho de uma estudante de doutoramento de quem era orientador, "convidando-a a "aprofundar o relacionamento" como "paga" do seu apoio académico". Abordagem que, segundo o artigo, levou a estudante (que não é qualquer das autoras) a voltar ao seu país de origem. Uma outra passagem do artigo, na qual está em causa também uma antiga estudante de doutoramento, refere um "abuso sexual": "Assim que uma investigadora sénior se deu conta de que uma antiga estudante de doutoramento tinha denunciado publicamente o professor estrela por abuso sexual [que denúncia pública terá sido essa, e quando, não é explicado], a investigadora sénior contactou-a, expressando o seu apoio. Tinha feito o mesmo com outras estudantes de doutoramento que tinham passado por situações semelhantes. No entanto, a investigadora sénior não confrontou os seus colegas ou supervisores em defesa das estudantes. Claro que uma atitude mais frontal teria gerado hostilidade dos seus pares. Num contexto laboral competitivo, muito poucas/poucos arriscarão perder as suas posições, mesmo se isso significa ignorar condutas inapropriadas e antiéticas."

Há ainda no artigo alusão a um graffito no qual BSS seria acusado de ter violado uma aluna (não é reproduzida a frase em causa; o DN não recebeu imagem dessa pichagem).

E, por fim, existe um parágrafo sobre o "extrativismo sexual" do professor estrela, que seria "bem conhecido entre as suas investigadoras feministas e reproduzido pelo aprendiz sem qualquer problema": "De facto, em certos círculos, os rumores sobre os affaires do professor estrela por todo o mundo pareciam ser tolerados como parte do seu estatuto prestigiado de professor estrela. Algumas investigadoras viam essas interações sexuais como uma forma de ascensão na hierarquia académica. Estamos perante mais um exemplo de "uma muito familiar história de instituições seriamente fodidas [deeply fucked up] nas quais os professores estrela detêm demasiado poder na determinação do futuro das suas protegidas e protegidos".

Mas o episódio mais grave referido no artigo, que ora é qualificado como "sexual assault" ora como "sexual abuse", tendo como vítima uma das autoras, Miye Tom, não está relacionado com Boaventura Sousa Santos; é atribuído ao "aprendiz" (Bruno Sena Martins, doravante BSM).

Essa referência surge em vários locais do texto, sem que seja explicitado o que se refere exatamente por sexual assault/abuse, termos ingleses para abordagem sexual não consentida que tanto podem significar a mais grave de todas - violação, implicando penetração -, ou coação (atos sexuais de relevo) ou ainda importunação sexual (contactos físicos de teor sexual não consentidos), crimes com diferentes graus de gravidade, e se houve comunicação às autoridades. Por não ser possível saber que termo português está mais correto, manter-se-ão as designações inglesas utilizadas.

Uma das menções ao episódio é esta: "Os graffiti desencadearam mais reações: meses depois de terem aparecido e vários anos após ter sido "sexually assaulted" pelo aprendiz, a ex estudante internacional de doutoramento, então a viver noutro continente [Myie Tom é, como já referido, norte-americana], decidiu denunciá-lo num rede social, explicitamente designando-o como "predador sexual". Também advertia, no mesmo post, para o facto de o aprendiz "não ser a voz do antirracismo nem da justiça social"".

Outro momento do artigo em que este episódio é mencionado diz respeito à comunicação do mesmo a alguém da estrutura do CES - comunicação que foi confirmada ao DN por outras fontes na instituição.

A pessoa informada por Miye é designada no artigo como "Watchwoman" (o termo tem vários significados -controleira, vigilante, sentinela - pelo que se vai manter a forma inglesa), uma mulher com poder no CES, que, com o professor estrela e o aprendiz, é apresentada pelo artigo como parte do triunvirato de abuso na instituição. Esta pessoa, em relação à qual se diz no artigo que Lieselotte foi advertida, quando chegou ao CES, de que mantinha há muito "uma relação íntima com o professor estrela", foi identificada ao DN por algumas fontes. Porém, não havendo a certeza absoluta, apenas a partir do texto, de quem se trata, o jornal entende não a identificar.

Miye terá então confessado à watchwoman "o seu fraco estado emocional e receios depois do abuso sexual de que fora vítima por parte do aprendiz, que continuava a contactá-la e a assediá-la apesar de ela pedir para ser deixada em paz. A watchwoman não respondeu."

Há outra passagem do artigo na qual é atribuído um "sexual assault" a BSM: "A primeira vez que Catarina Laranjeiro percebeu que tinha existido um "sexual assault" envolvendo o aprendiz, falou disso com uma colega. Essa colega disse-lhe que já conhecia a história, acrescentando pormenores. Mais tarde, ambas perceberam que tinham estado a falar de dois casos diferentes acreditando que eram o mesmo."

Não se percebe se as duas situações se referem ao "aprendiz".

Há outras referências a condutas inapropriadas de BSM. Como quando se indica que tanto Tom como Viaene se "deram demasiado tarde conta do habitual grooming [termo usado para referir aliciamento de crianças para fins sexuais] e extrativismo sexual do aprendiz". Ou quando se diz que a segunda atribuiu a origem dos problemas que lhe surgiram no CES - foi sujeita a um processo disciplinar com vista ao despedimento, naquela que, garante o artigo, era, em 40 anos, a primeira vez em que se invocava o Código de Trabalho na instituição; de acordo com Boaventura Sousa Santos na sua resposta ao DN, acabaria mesmo por ser "expulsa" - ao facto de ter recusado entrar no esquema de "amigos/colegas com benefícios" que o aprendiz (o qual fora nomeado, juntamente com a watchwoman, para a comissão de acompanhamento da sua bolsa), tinha insinuado um ano antes.

Também é atribuída à académica belga uma conversa com uma colega do CES, surgida a partir da pichagem que vira na entrada do centro, na qual esta colega lhe teria sugerido falar com Catarina Laranjeiro, que estaria igualmente a ter problemas com o aprendiz (este era um dos seus orientadores de tese). Esta colega teria ainda partilhado ter ouvido dizer que o aprendiz "andava frequentemente em cima das estudantes, flirtando com elas sempre que se encontravam em festas, bares ou outras situações informais."

Por sua vez Laranjeiro terá ouvido de uma colega de doutoramento que os seus problemas com BSM, no contexto da orientação do seu doutoramento, se deveriam ao facto de ele não ter conseguido sexualizar a relação com ela - algo de que, de acordo com o artigo, a estudante nunca se teria apercebido.

É também com Laranjeiro que se situa uma conversa, ocorrida na mesma época em que Tom publicou o seu post acusatório no Facebook. Nessa conversa, no contexto de uma reunião em que se discutia a data da defesa da sua tese, ter-lhe-á sido perguntado se se sentira vítima de assédio por parte de BSM. "Não podendo confirmar, ela usou esta oportunidade inesperada para descrever os abusos [não é explicado a que abusos se refere] a que fora sujeita nos últimos anos. Durante a conversa, não percebeu que esta figura de poder dentro do CES [um homem] estava a tentar perceber o que se tinha passado, mas para usar a vulnerabilidade dela para proteger o Aprendiz."

De resto, se a queixa que Miye Tom terá feito à watchwoman não teve qualquer efeito conhecido, a denúncia pública que escreveu anos depois numa rede social teve consequências.

Não só recebeu emails de um dos advogados do CES a exigir-lhe, em nome de BSM, que apagasse o post sob pena de este apresentar queixa por difamação, como, depois de o apagar, foi na mesma alvo de uma denúncia por esse crime. Essa denúncia tê-la-á impedido de regressar ao CES para um curso de verão: foi avisada de que seria detida se entrasse em Portugal.

De acordo com várias pessoas contactadas no CES, o "surto" de graffiti verificado no final de 2018 levou a que, numa reunião da instituição. o seu diretor emérito fosse levado a explicar-se.

Há quem diga que se tratou de uma assembleia geral, e quem fale de uma reunião do conselho científico alargado (plenário).

Adriana Bebiano, contactada pelo DN por ter sido presidente do conselho científico do CES de fevereiro de 2019 a fevereiro de 2022, responde: "As pichagens de que fala apareceram nas paredes do CES no outono de 2018. O caso foi referido num Conselho Científico - quando eu não era ainda a presidente - altura em que o Professor Boaventura Sousa Santos disse, tanto quanto me lembro, que apenas tinha "conversas adultas com pessoas adultas". Nenhuma das alegações constante das pichagens foi apresentada a instâncias de governação do CES."

Esta investigadora associada do CES, diretora de um Doutoramento em Estudos Feministas, lembra que "o CES tem um compromisso com a Igualdade de Género, e combate as situações resultantes da assimetria de género existentes na nossa cultura". Admite no entanto que à época a instituição não tinha ainda - só foram criados em 2020 - "um Código de Conduta e uma Provedoria, instrumentos às quais as pessoas que se sentem em posição vulnerável podem recorrer".

Outra pessoa, que prefere não ser identificada, tem uma lembrança semelhante à de Adriana Bebiano: "Ele disse, creio que foi perante uma assembleia geral do CES, com 60 a 80 pessoas, que tudo o que fizera era consensual".

Uma terceira fonte, que quer também manter o anonimato, corrobora, embora a frase reproduzida seja ligeiramente diferente: "O professor Boaventura foi interpelado numa reunião de conselho cientifico sobre essas questões, na sequência dos graffiti. Disse que tinha relações livres com pessoas adultas."

Pois, adultas, prossegue a mesma pessoa, "mas está-se a esquecer das questões de poder. Cabe à pessoa que tem o poder pensar e consciencializar. As relações entre professor e aluno, professor e investigador são relações de poder muito marcadas pela dependência pessoal. Eu não estava nessa reunião, contaram-me, e a minha interpretação foi de que era uma resposta estudada de defesa." Tem um sorriso irónico na voz: "Somos muito capazes de analisar os outros mas não somos capazes de nos analisar a nós próprios. A Universidade precisa de se repensar, a academia tem de perceber que é uma organização como as outras - e como em todas as outras organizações hierárquicas coloca-se a questão do poder."

Foi aliás na sequência desses acontecimentos, adianta este membro do CES, que "foi criado o código de conduta, que tem uma parte sobre assédio, e criada a figura do provedor."

Porquê tão tarde? Como é que numa instituição com tanto trabalho sobre, precisamente, as relações de poder e sobre o poder patriarcal - o poder dos homens sobre as mulheres -, não houve mais cedo essa preocupação? A resposta é sarcástica: "A minha interpretação seria esta: aqui como toda a gente é antipatriarcal, essas coisas não existem. Se de facto não aparecem pessoas a demonstrar que as coisas acontecem... Caro que acontece em todo o lado. Mas no CES parece ainda pior porque supostamente deveria ser diferente." Suspira. "É lamentável que a partir de um episódio destes fique esta imagem do CES - porque o CES é mais que isto, mais que o "professor estrela" e o seu "aprendiz"."

Como fica claro, o CES não tinha ainda, à época dos acontecimentos relatados, vários dos mecanismos que Boaventura Sousa Santos invoca na sua resposta ao DN, quando sublinha não terem existido queixas formais em relação "aos factos de alegada conduta menos ética mencionados" no artigo. Existia já contudo uma Comissão de Ética, presidida pela socióloga Ana Cristina Santos, conhecida pelo seu ativismo feminista e LGBT, e que é referida no texto como alguém em quem as autoras não tinham confiança, pela sua relação de proximidade com Bruno Sena Martins.

"Fui presidente da primeira Comissão de Ética criada no CES em 2017", responde esta ao DN. "O mandato terminou em 2020. Durante este tempo não tivemos nenhuma denúncia ou mesmo pedido informal de averiguação sobre qualquer caso de assédio ou violência sexual. Foi nessa altura que surgiram os tais graffiti e, logicamente, tinha a expectativa de receber uma queixa para que pudéssemos avançar de uma forma consubstanciada. Tal nunca sucedeu."

Ainda assim, adianta, "houve um debate interno no CES e foram implementadas medidas, mas sobre isto devem ser os órgãos internos vigentes no CES a pronunciar-se."

De que medidas fala Ana Cristina Santos não foi possível saber; o comunicado interno exarado pela direção do CES e pelo seu conselho científico neste sábado, na sequência dos contactos do DN com membros da instituição, refere as "respostas institucionais robustas" que foram promovidas para "enfrentar estes problemas", lamentando que "este conjunto de instrumentos, que constituem, neste momento, uma componente essencial da sua arquitetura organizativa, só tenha sido implantado em tempos relativamente recentes".

A atual presidente da Comissão de Ética, a também socióloga feminista Virgínia Ferreira, assegurou ao DN estar em curso "uma discussão/reflexão para ver como podemos melhorar e reforçar os mecanismos institucionais para que coisas destas não tornem a ocorrer." Questionada sobre se a Comissão se vai debruçar sobre as acusações feitas no artigo, hesita. "Estamos a pensar. Teremos de pôr aqui algumas perguntas. A comissão de ética não tem nenhuma comunicação formal." Mas aquele artigo é uma coisa que se diz para o mundo, é público. "Devo entendê-lo como uma denúncia que temos de avaliar? Se houve agressões sexuais, por é que não houve queixa à policia, às autoridades judiciais?"

As autoras do artigo tentam responder a estas perguntas. "Revisitando a questão central, sobre o que pode inibir a jovens académicas de enfrentar e falar abertamente contra as condutas sexuais inapropriadas, o abuso sexual (ou até violência sexual), há várias camadas e fatores complexos em causa. Talvez o preponderante seja o apontado por uma investigadora que faz parte da nossa rede de solidariedade: "O centro é o Professor Estrela, portanto se o Professor Estrela cai... a instituição toda cai com ele. Não há consequentemente massa crítica no centro para combater as condutas inapropriadas e o abuso. Ninguém quer cair e ser carimbada como pertencendo a um centro caído em desgraça."

Ana Cristina Santos, que se indigna com o facto de o artigo "levantar suspeitas sobre a minha idoneidade sem que sequer tivessem dados para dela duvidar", não compra esta explicação. "Acho o capítulo em causa de uma cobardia deplorável de início ao fim. Porque em momento algum surgiu queixa - não consigo perceber a ausência de denúncia, mesmo que de modo informal, a qualquer membro da Comissão de Ética - e porque, ao abrigo de um anonimato frágil, promovem um ataque gratuito." Porquê gratuito? "Porque há demasiadas incongruências, conclusões precipitadas e omissões naquele texto. Muito ruído ali sobre um tema sério e que nos deve merecer o maior respeito."

Como já referido, quer Boaventura Sousa Santos quer Bruno Sena Martins negam, nas suas respostas ao DN, qualquer conduta inapropriada.

Bruno Sena Martins admite ter havido um relacionamento sexual com Miye Tom, que situa em 2011 ou 2012, mas assevera que "o princípio do consentimento sempre foi respeitado", e que há quem possa testemunhar isso mesmo. Frisa também: "Nunca fui professor, orientador ou membro da mesma equipa de investigação da Miye, nunca tive nenhuma relação profissional com a Miye no CES e nem me lembro de alguma vez me ter cruzado com ela nas instalações do CES. Na altura, os meus interesses de investigação não tinham nada a ver com os dela, eu trabalhava a deficiência e ela estudava outros temas. Nestas circunstâncias, falar de uma relação de poder académico é infundado."

Situa em janeiro de 2019 a primeira vez que foi confrontado com "a insinuação da Miye contra mim". "Fui avisado relativamente a um post que me procurou caluniar em termos profundamente ofensivos. Perante uma representação que punha em causa de forma perversa e falsa tudo o que sou, passei o pior momento da minha vida e confesso por um período perdi a vontade de viver. Perante isso, evitando um silêncio que poderia ser lido como anuente, achei que deveria repor a verdade recorrendo ao único meio que pareceu adequado [a queixa criminal]. Quer isto dizer, que estava disponível - como ainda estou - para confrontar a autora do post em tribunal e expor a enormidade daquilo de que me acusa e/ou vem insinuando." O caso acabaria por ser arquivado, informa, por não ter sido possível notificar a denunciada.

BSM também acusa as autoras do artigo - uma das quais, precisamente Miye Tom, é de origem indígena, sendo membro registado de uma tribo norte-americana -de racismo e machismo: "Custa-me a acreditar que três investigadoras que trabalham com populações racializadas achem adequado designar um homem negro em termos [refere o apodo de "aprendiz"] que o colocam como lacaio de um qualquer senhor. Além de ser uma expressão profundamente infantilizadora, denota o racismo de quem não acredita que um homem negro em Portugal possa desenvolver uma carreira na academia sem prestar vassalagem. O facto de me representarem, com 45 anos e um percurso académico autónomo que fala por si, como mero seguidor reverente de outrem diz muito do teor colonialista que atravessa todo o texto. Faço notar que o tema da minha tese de doutoramento foi representações culturais sobre a cegueira e as pessoas cegas. Do mesmo modo, permito-me comentar que a designação de uma académica enquanto "Watchwoman" revela um machismo insidioso."

Já Boaventura Sousa Santos, que assume ter sido o supervisor do estágio Marie Curie de Lieselotte Viaene no CES, e por esse facto ter reunido duas vezes com ela (com as outras duas autoras diz nunca ter reunido), fala da "insolência" da académica belga: "O comportamento institucional dela era de tal ordem insolente que o diretor executivo me pediu para falar com ela. Em face dos antecedentes, o CES não aceitou que ela indicasse a nossa instituição como instituição de acolhimento para uma bolsa do European Research Council (ERC)."

O mau comportamento que o diretor emérito do CES atribui à sua antiga supervisionada não se limita à passagem por Coimbra: "Não resisto a mencionar-lhe os problemas que a senhora Lieselotte Viaene tem criado na Universidade Carlos III, onde está agora a realizar um projeto financiado pelo ERC. Trata-se da expulsão autoritária da equipa que coordena de estudantes indígenas, de cujo trabalho se tem aproveitado. Tendo sabido da sua expulsão do CES, essas estudantes contactaram-me para pedir a minha opinião sobre como proceder. Remeti-as para as autoridades académicas da Carlos III. Acusada há muito de extractivismo científico (aquilo de que me acusa miseravelmente e sem qualquer fundamento), fui recentemente informado pelas indígenas visadas que uma associação indígena da Guatemala tencionava proibi-la de voltar a realizar pesquisa na Guatemala."

Em contraste com a resposta de BSS e BSM ao DN, o comunicado do CES não dispara de volta nem busca a vitimização: "Embora tradicionalmente apresentadas como ambientes neutros e seguros, as instituições académicas e de investigação não são alheias ao sistema social e cultural que produz e reproduz relações de poder desiguais. Sendo as diversas formas de desigualdade, violência e abuso (moral e sexual) problemas transversais às organizações, o CES não se coloca fora desta discussão importante nem se demite da responsabilidade que tem na promoção efetiva de um ambiente de trabalho científico mais igualitário e livre de todas as formas de assédio."

Há "uma cultura de certas pessoas", resume ante o DN um dos membros da instituição que falou sob anonimato, "e é um problema da instituição não querer conhecer ativamente o que se passa. Causa uma particular revolta." Acredita porém que o artigo-denúncia pode ser, "finalmente", o ponto de viragem. "Este caso pôs a nu que temos de ter uma política que favoreça as denúncias. Os próprios códigos de conduta que fomos aprovando têm de ser relidos à luz deste artigo, para perceber se cobrem casos como os relatados. Estou com esperança de que as coisas mudem."

Esta quarta-feira o comunicado que fora emitido internamente pelo CES foi colocado na página digital da instituição, com um novo parágrafo no qual se anuncia que "estando o CES comprometido com o tratamento diligente deste tipo de ocorrências, decidiu averiguar a fundamentação das alegações produzidas. (...) Nesta medida, o CES irá constituir num curto prazo uma comissão independente à qual caberá a identificação de eventuais falhas institucionais e a averiguação da ocorrência das eventuais condutas anti-éticas referidas. A comissão será composta por dois elementos externos, um dos quais lhe presidirá, e pela Provedora do CES. Os membros externos a convidar terão competências reconhecidas no tratamento de processos análogos."

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