Sylvie Figueiredo: "A quantidade de cocaína é tal que os traficantes vão procurar todas as portas de entrada"
Investigadora e analista de crime organizado e terrorismo, Sylvie Figueiredo foi 15 anos oficial de informações do SIS nestas áreas. É professora no Instituto CRIAP, do Porto, e está agora a investigar, no âmbito da sua tese de doutoramento, o impacto em Portugal do tráfico internacional de cocaína.
Portugal bateu já este ano (ainda em agosto) o recorde de apreensões de cocaína. Sabendo que a produção de cocaína mais que duplicou nos últimos anos este é um resultado expectável?
É um resultado expectável e já estava à espera de ver este tipo de valores há algum tempo. São valores normais tendo em conta aquilo que é o tráfico para a Europa, que neste momento é muito intenso, e acho que vamos ter este tipo de padrão durante uns bons anos.
E porquê?
Por vários fatores. Um é o que já referiu em relação ao aumento da produção de cocaína, tendência que vem desde 2013. Na última década a quantidade disponível duplicou, mas os mercados e os consumidores não cresceram ao mesmo ritmo.
A cocaína precisa de sociedades com grande disponibilidade financeira para ser um bom mercado para os traficantes e, por enquanto, só a América do Norte, a Europa e a Austrália têm essas características.
Depois, a própria globalização, os desenvolvimentos na tecnologia e nas comunicações intensificaram todo o tipo de comércio, tanto o lícito como o ilícito, e as redes especializaram-se, o que tornou o crime organizado mais eficiente.
Porque é que aumentou tanto a produção de cocaína?
Porque houve uma melhoria nas técnicas de cultivo. Com a mesma área cultivada, conseguem recolher muito mais produto, pois melhoraram substancialmente a capacidade de extrair a cocaína da folha de coca. E ainda não chegámos ao pico da produção pelo que esta tendência vai continuar no futuro.
E porquê a Europa?
É o mercado onde a cocaína permite maiores lucros. Esse é o motor do crime organizado: o dinheiro. Na América Latina, as ações policiais dos últimos anos desmantelaram os grandes cartéis, o que pulverizou os grupos e agora as células desses grandes cartéis querem continuar o negócio e precisam de novos interlocutores do lado europeu.
Antes eram os cartéis colombianos e a Ndrangheta (organização mafiosa da Calábria) que dominavam o mercado e agora vemos o aparecimento de outros grupos como os albaneses.
No mapa do grande tráfico, como tem evoluído a participação portuguesa? Continuamos a ser porta de entrada na Europa?
Somos um ponto de trânsito, sem dúvida. Temos características geográficas que não conseguimos mudar e que nos colocam na rota direta entre os produtores, na América Latina, e os principais consumidores na Europa.
A Madeira e os Açores são pontos de abastecimento na circulação transatlântica, e temos uma extensa costa que é fronteira externa do continente. Há cerca de sete, oito anos, os grupos começaram a aproximar as rotas de entrada dos mercados de consumo no centro da Europa, como a Bélgica e a Holanda.
Começámos a ter apreensões de grandes quantidades nesses países e alguma redução do tráfico através da Península Ibérica. Portugal não é um mercado de consumo significativo pelo que não tem interesse para o crime organizado transnacional.
Mas agora, a quantidade de cocaína disponível é de tal ordem que os traficantes vão procurar todas as portas de entrada possíveis para fazer entrar a droga.
Que tipo de bases de apoio têm os grandes traficantes em Portugal?
Isso é precisamente o que quero estudar. Desde há muito que existem referências da atividade de algumas estruturas criminosas no território, como é o caso das italianas.
As elevadas apreensões que têm ocorrido implicam que exista aqui algum tipo de apoio. Que estruturas, que tipo de apoio e qual é o grau de implementação das mesmas em Portugal é o que é preciso investigar. O grau de implementação dos grupos é diferente de país para país.
Quais são neste momento as principais organizações criminosas ativas no tráfico de droga, que meios envolvem?
Vemos cada vez mais atores no tráfico de cocaína para a Europa. A Ndrangheta continua a ser a mais importante. Desde o início do século que esta máfia consolidou o seu poder através deste tráfico porque conseguiu estabelecer um monopólio com os fornecedores colombianos.
Agora que tem sido um alvo intenso de várias ações policiais a nível internacional e europeu, tem perdido alguma da sua capacidade e deverá continuar a perdê-la.
Paralelamente, consolidam-se outros grupos e os principais são os albaneses que são muito ativos e muito profissionais, e conseguiram quebrar o monopólio dos italianos, e fazer a ligação direta aos grupos colombianos.
Já dominam o mercado do Reino Unido que é um dos maiores mercados de consumo na Europa. Vendem a preços mais baratos e não têm problemas em recorrer à violência.
A Colômbia continua a ser o grande fornecedor?
Sim. Juntamente com o Perú e a Bolívia, são os três grandes produtores. Mas quem controla o tráfico são os grupos colombianos.
Um dos maiores narcotraficantes brasileiros, Sérgio Roberto de Carvalho (major Carvalho) , o "Escobar brasileiro", detido no ano passado na Hungria, viveu alguns anos escondido em Portugal, e tinha um operacional português, Rúben Oliveira (Xuxa), também detido no ano passado (Operação Exotic Fruit). Por isso lhe perguntava se há mais sinais / evidências de presença em Portugal ou ligações aos grandes cartéis sul-americanos?
Os brasileiros são, de facto, importantes. Demonstram ter capacidade de mover grandes quantidades e de forma sistemática. Penso que atuam essencialmente como transportadores no tráfico europeu.
A especialização tem levado a que o processo de tráfico seja repartido entre vários grupos criminosos. O Brasil é importante porque é a principal "porta de saída" da cocaína que chega à UE. O Primeiro Comando Capital (PCC) é um dos principais atores neste tráfico.
Atua essencialmente a partir de lá, não penso que existam células de coordenação em Portugal. É um grupo que se estabeleceu a partir da prisão e é a partir daí que comanda as suas células. Agora, de facto, esse caso, deixou evidente que Portugal foi usado como rota para a entrada de grandes quantidades de droga na Europa.
A PJ defende que mais do que as apreensões, o que importa é deter os grupos criminosos e a recuperação de ativos. Concorda com este princípio? Que resultados tem alcançado?
O crime organizado tem como objetivo o benefício material, por isso, a apreensão de bens e de capital é fundamental. Mais importante do que deter pessoas porque estas são mais facilmente substituíveis.
Apreender dinheiro tem maior probabilidade de impedir a continuidade da ação criminosa: os grupos deixam de ter liquidez para pagar as remessas ou comprar mais produto, o que desestabiliza o sistema e pode criar problemas com os fornecedores.
As investigações económico-financeiras são a única forma de combater eficazmente o crime organizado. Foi a forma como, no passado, Espanha conseguiu travar os clãs galegos: apreendeu barcos, dinheiro e fechou as empresas que usavam.
A propósito da importância das investigações da criminalidade económico-financeira associadas ao narcotráfico, várias têm sido as entidades, agências, de combate ao crime, que alertam para o enorme risco de corrupção que decorre do fortalecimento destas redes. Como é que essa corrupção acontece?
Nos últimos anos houve um grande aumento da corrupção ligada ao tráfico, e ele está presente em vários níveis. Desde logo nos portos. A grande maioria da cocaína que entre na Europa, entra por via marítima, em contentores.
Há uma grande pressão sobre os funcionários dos portos que já demonstraram receio pelas ameaças de que são alvo.
No porto de Roterdão, oferecem 500€ para o empréstimo de 24H de um passe de acesso à infraestrutura. Em janeiro deste ano a MSC (Mediterranean Shipping Lines) suspendeu algumas operações no Brasil por não conseguir impedir estar a ser usada no circuito do tráfico. Isso desestabiliza a economia e tem efeitos no quotidiano das pessoas.
Também assistimos a um aumento da corrupção direcionada às autoridades de controlo - fronteiras, polícias, investigadores - e aos magistrados. A corrupção expandiu-se, tal como a violência.
Os analistas do Insightcrime fizeram as contas e concluíram que "de uma perspetiva empresarial, o tráfico de cocaína para a Europa é muito mais atrativo do que para os EUA. Os preços são significativamente mais altos, e os riscos de interdição, extradição e apreensão de bens são significativamente menores". Concorda?
Efetivamente, os preços da cocaína na Europa são mais elevados, o que atrai cada vez mais traficantes. Quanto aos riscos, não sei se serão menores. A UE tem características particulares que tornam o combate ao crime mais exigente.
As jurisdições e autoridades são diferentes em cada país o que obriga as polícias a um grande esforço de coordenação para conseguirem seguir o processo de tráfico desde o momento em que a droga entra no espaço europeu até chegar aos mercados de consumo.
Por exemplo, se a droga entrar por Portimão, um grupo estabelecido em Espanha pode vir recolhê-la sem deixar rasto praticamente nenhum em Portugal. Isso dificulta a perceção do fenómeno pelas autoridades dos dois países.
No início da pandemia, os traficantes tiveram muitas dificuldades em fazer circular a droga devido ao encerramento de fronteiras internas na UE. Foi uma realidade que nunca estimaram: que as fronteiras nacionais pudessem ser restabelecidas.
Em Portugal o tráfico de droga não está sequer entre os "crimes de investigação prioritária" na Lei de Política Criminal. Devia estar?
Há algumas matérias sobre as quais devemos mudar de perspetiva. Temos de olhar para o crime organizado como um todo. Do ponto de vista da investigação, olhamos para as suas formas de manifestação.
Na PJ, por exemplo, a Unidade Nacional de Combate ao Tráfico de Estupefacientes (UNCTE) trata da droga, a Unidade Nacional de Combate à Corrupção (UNCC), do crime económico-financeiro, incluindo a corrupção, a Unidade Nacional de Contraterrorismo (UNCT), do crime violento.
Em algum momento, alguém tem de saber que grupos atuam em Portugal, como atuam, quais os seus mercados e quais são as suas ramificações criminais. No caso da Ndrangheta, por exemplo, para além do tráfico de cocaína, o grupo desenvolve outras atividades em Portugal?
Devíamos ter uma perceção mais clara dos tentáculos de cada grupo no nosso país. Nos últimos 10 anos, vários países têm adotado estratégias nacionais de combate ao crime organizado e têm estabelecido agências especializadas para o seu combate.
Em França, a PJ francesa tem o SIRASCO que faz análise estratégica da informação da criminalidade organizada e grave, no Reino Unido existe a National Crime Agency (NCA).
Dedicam-se exclusivamente ao crime organizado e isso permitiu melhorar significativamente o combate ao fenómeno. Quanto, ao que me perguntou especificamente, há tantos anos que Portugal sabe que é uma porta de entrada de tráfico de cocaína, pelo que é pouco cauteloso que esta investigação não seja prioritária.
Nos últimos 10 anos, de acordo com os dados da DGRSP o número de reclusos por tráfico de droga caiu de 2075 (2011) para 1742 (2021). A que se deve esta queda? Problemas na investigação que não conduzem a condenações?
Penso que a maior parte dos detidos por droga no país estão mais ligados ao fornecimento do mercado nacional e não tanto ao grande tráfico. Portugal tem sido ativo em grandes operações europeias e mundiais.
Cada vez mais os grupos atuam de forma transnacional por isso as pessoas tanto podem ser detidas em Portugal, como noutros países. O caso que referiu do major Carvalho é exemplo disso.
Segundo a Europol, "o florescente mercado da cocaína implicou um aumento no número de mortes, tiroteios, bombardeamentos, incêndios provocados, raptos, tortura e intimidação". Ainda estamos longe desse tipo de cenários em Portugal?
Acho que sim, mas não quer dizer que, de um momento para o outro, não possa acontecer. Depende do papel que o país venha a ter e dos grupos que possam vir a atuar em Portugal.
Recordo que há cerca de um ano, a PJ prendeu no Alentejo dois membros da organização criminosa montenegrina "Kavac" (uma das mais violentas máfias da zona dos Balcãs) e eles estão envolvidos num conflito com um outro grupo montenegrino por causa de cocaína.
Ou seja, a qualquer momento, podemos importar essa violência. Na Holanda foram assassinados (2019/2021) um jornalista que escrevia sobre crime organizado e um advogado que representava uma testemunha que ia a tribunal contra um grupo de traficantes.
Chegou também a ser noticiado que o primeiro-ministro holandês estava a ser seguido pelo crime organizado. Isto são sinais de como o crime organizado já está a prejudicar as democracias europeias.
Estamos muito longe da América Latina e por isso muitas vezes não temos tão presente a violência e a lesão dos direitos humanos provocados por estas organizações.
Só na Holanda, ou esse patamar de violência já se instalou noutros países europeus?
Já se verifica em vários países europeus ao ponto da Europol ter feito um relatório sobre isso em finais do ano passado. Na Holanda tem sido mais visível. Houve um grande aumento dos grupos criminosos no país, aparentemente por causa da legislação mais permissiva em relação às drogas.
Em Espanha também, principalmente no sul, onde estão estabelecidas grande parte das rotas de entrada de drogas. Em 2018, em Cádis, os criminosos invadiram um hospital para ir buscar um parceiro ferido que tinha sido detido pela polícia.
Em França, as autoridades têm dificuldade em agir em algumas zonas, como os bairros à volta de Paris e em Marselha. O país é o maior consumidor de canábis da Europa e um grande consumidor de cocaína.
Recentemente, o diretor da polícia federal de Antuérpia afirmou que a droga e a violência estão numa espiral de tal ordem que a polícia só tenta gerir os riscos. O que mais me preocupa é isto estar a acontecer em sociedades democráticas como as nossas onde este tipo de violência não devia ter lugar.
A situação na Europa é muito complicada e em Portugal não devíamos olhar para o tráfico de drogas com brandura, devíamos mantê-lo na lista dos crimes de investigação prioritária.
Fazemos parte da segurança coletiva da UE e na fortaleza europeia o país que apresentar maior vulnerabilidade será aquele que os traficantes vão escolher para fazer a droga entrar.
Artigo originalmente publicado no DN de 12 de setembro de 2022.