"Substituir médicos de família por não especialistas é enganar os doentes"

Pela primeira vez, os médicos de Medicina Geral e Familiar saem à rua em protesto contra a medida incluída no Orçamento do Estado 2022, que permite a contratação de médicos não especialistas para os centros de saúde. É esta tarde e têm o apoio dos sindicatos e da Ordem. O objetivo é gritar bem alto que a medida "ameaça a qualidade dos cuidados à população", a quem não tenha percebido. A médica Lara Subtil, coordenadora da Unidade de Saúde Familiar Águeda Mais Saúde, conta-nos a sua história e explica porque não podem ser substituídos.
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Lara Sutil tem 44 anos e é especialista em Medicina Geral e Familiar (MGF) desde 2009. Foi esta a área da medicina que escolheu, precisamente por considerar que "um médico de família é um médico diferente dos outros" ou porque esta área da medicina tem um papel privilegiado nos cuidados de saúde. "Dá-nos a oportunidade de poder acompanhar um doente ao longo do percurso da sua vida. Nalguns casos, desde a pré-conceção - desde que a gravidez é pensada, porque já podemos intervir nesta fase - ao seu desenvolvimento, ao nascimento, depois na saúde infanto-juvenil, fase adulta e idosa, até à morte". E foi este acompanhamento que a fascinou, o facto de poder "criar uma ligação muito próxima e humana com os doentes. É uma relação que nenhuma outra especialidade permite, porque nas outras não há esta continuidade de cuidados".

Se outras razões não existissem para explicar a diferença entre um médico especialista em MGF e um não especialista, Lara Sutil diz que só a ligação de proximidade dos cuidados seria suficiente. A questão é que "nenhum médico de família pode ser substituído por um médico não especialista em nome da qualidade e da segurança dos cuidados, diz-nos, "porque não é possível desempenharem o mesmo papel sem a formação adequada". Se tal for feito, "é estar-se simplesmente a enganar os utentes. Um médico de família especialista tem de fazer seis anos de licenciatura com mestrado integrado, um ano de formação geral e mais quatro de formação específica. Tudo isto junto é o que lhe dá formação em cuidados primários".

Um médico não especialista não fez "formação nos centros de saúde, acompanhando o médico orientador em toda a sua atividade", não fez "estágios de urgência, que dão competências e formação neste âmbito", não fez outras formações complementares, como em saúde infantil, saúde da mulher ou em saúde mental e até em outras áreas opcionais, como cardiologia ou urologia".

Portanto, reforça, "não é possível desempenharem o mesmo papel com a mesma qualidade de um médico de família". E, se alguém disser que sim, "está a enganar os utentes e isso é algo que me assusta, porque em termos de estratégia só virá agravar a situação dos cuidados hospitalares", reforça a especialista e coordenadora da Unidade de Saúde Familiar Águeda Mais Saúde, sustentando ainda que "se tivermos gente com menos formação nos cuidados primários as consultas nos hospitais serão muito mais sobrecarregadas com situações que um médico de família tem competência para orientar e um não especialista não tem, mas é normal que não tenha. E o mesmo acontecerá nas urgências, haverá mais casos referenciados".

É com esta argumentação que Lara Sutil se coloca ao lado dos colegas que hoje se irão manifestar em frente ao Ministério da Saúde, em Lisboa, para protestar contra a medida incluída na lei do Orçamento do Estado 2022, que permite a substituição de médicos especialistas em medicina geral e familiar por médicos não especialistas, com o objetivo de resolver a falta de profissionais nos centros de saúde.

Não vai poder protestar presencialmente, "tenho um compromisso inadiável. O casamento da interna que oriento e me merece toda a consideração pela sua dedicação diária", justifica. "Neste processo de formação, os laços profissionais e pessoais estabelecidos entre orientadores e internos marcam a nossa vivência futura". Aliás, "muito do que sou devo à minha orientadora, aos utentes e aos internos que me estimulam diariamente". E Lara Sutil diz ser uma médica de lutas, pelo que considera correto e justo, portanto, de alguma forma, "arranjarei maneira de expressar a minha solidariedade com este protesto, nem que seja através de uma fotografia com um cartaz", ri-se.

A médica fala com o DN por telefone, ao mesmo tempo que coordena a mudança dos serviços da sua unidade para outro edifício. Num primeiro momento conduz, noutro ajuda a carregar caixas e em outro pede um tempo aos senhores da empresa de mudanças para poder falar da "ameaça" que está a atingir a especialidade que escolheu. "Sem formação não há cuidados com qualidade. Não vivemos no passado, os médicos de família deixaram de ser clínicos gerais para serem especialistas em MGF, após fazerem formação específica de quatro anos", sublinha.

Do outro lado do telefone, a voz ecoa com ruído de fundo e explica: "Estamos num processo de mudança da unidade funcional e há que garantir que os cuidados estão a ser prestados aos utentes e que a nova unidade fica preparada para ali sermos colocados em breve".

É médica, mas como coordenadora diz que "a parte da gestão também é muito importante. É um todo, e, às vezes, não é fácil, embora com boa vontade se consiga fazer. Temos é de pensar sempre que é em prol dos utentes e dos profissionais, e mudar para instalações que nos dão mais qualidade na prestação de cuidados é positivo".

Mas é deste espírito que diz depender muito o sucesso de uma unidade funcional. "O sucesso passa sobretudo pelo trabalho de equipa e pelo envolvimento desta nos objetivos comuns. Se todos estivermos embrenhados acabamos por conseguir dar uma resposta facilitadora aos utentes".

É no que acredita, e por isso mesmo é-lhe difícil espartilhar o dia-a-dia de médica com o de gestora. "O meu dia- a-dia de gestora cai em cima da atividade médica. Acaba por ser uma função em simultâneo, porque não se consegue ter o tempo que gostaríamos para o papel de coordenadores. Somos médicos, fazemos consultas de adultos, saúde infantil, planeamento familiar, ou consultas do próprio dia e até de substituição, porque é preciso garantir que na ausência de um médico os utentes deste também têm acesso a cuidados de saúde, e esta gestão, por vezes, é um pouco difícil, porque o mais difícil é mesmo gerir a falta de recursos humanos". Até porque, são estas situações que "revoltam mais os utentes que acham que têm direito a ter um médico de família, e deveriam ter, e não aceitam não o ter".

Por isto mesmo, defende a existência de "uma bolsa de profissionais para os cuidados primários que permitisse colmatar a ausência de um que está de baixa ou de licença de maternidade. Nos professores essa substituição é automática e nos cuidados de saúde também deveria ser, porque o utente não percebe porque não tem um médico".

Na USF que coordena, a médica diz sofrer deste mal, uma situação que a "magoa e revolta", Neste momento, "há 1595 doentes sem médico", a lista de utentes de uma colega que se reformou. Esta indicação "foi dada à tutela. Era uma ausência que estava prevista e, por isso, solicitámos uma vaga no sentido de haver colocação de um profissional que a substituísse, mas não houve abertura de vaga, e tínhamos um interno que concluiu a especialidade neste concurso, com nota para ficar, o que seria vantajoso porque já conhece os procedimentos da unidade, mas não foi", argumenta.

Os médicos da USF Águeda Mais Saúde terão assim que se desdobrar em horas a mais do que as 42 que têm de fazer, pelo menos, por mais seis meses, altura em que será lançado um novo concurso para recém-especialistas ou até que a vaga deixada seja ocupada. Mas, neste momento, a coordenadora da unidade, tem já uma grande preocupação: "No início do próximo ano temos outra colega a reformar-se e outro com pedido de transferência para uma zona mais perto de casa, o que quer dizer que das seis listas de utentes poderei ficar só três com médico".

E dá outro exemplo: "O ACES do Baixo Vouga, antes do concurso para recém-especialistas, já tinha uma carência de 18 médicos, mas só lhe foram atribuídas cinco vagas. Só Águeda tem uma carência de cinco médicos, tem cinco listas de utentes a descoberto, e só lhe foi atribuída uma vaga, que estratégia é esta?. O objetivo é de deslocar essas vagas para outras áreas, como Lisboa e Vale do Tejo, que, de facto, também é uma área carenciada, mas há outras zonas do país carenciadas. O que é que isto provoca? Que os médicos das unidades fiquem sobrecarregados e os utentes revoltados, o que gera um clima mais fácil para o conflito. O utente quer respostas e nós não temos capacidade humana para as dar". Por outro lado, está "a privar-se as pessoas de ficarem nos locais onde são necessárias e onde estão dispostas a ficar e há quem desista e arranje outras alternativas".

Se a tutela ainda não percebeu isto, e que há uma diferença entre médicos especialistas e não especialistas, então a situação do SNS "ainda se agravará mais".

Medida

Ministério da Saúde incluiu uma medida na Lei do Orçamento do Estado para 2022 que permite a substituição de médicos de Medicina Geral e Familiar por médicos não especialistas. O objetivo, e segundo foi argumentado, era dar resposta às necessidades dos utentes nos cuidados primários, de forma a que não houvesse um aumento na afluência aos cuidados hospitalares.

Reação

A Associação Portuguesa dos Médicos de Medicina Geral e Familiar, os sindicatos da classe e a Ordem dos Médicos já criticaram a medida, dizendo que não foram sequer ouvidos e que é " totalmente lesiva dos interesses dos cidadãos e dos doentes". Para todos "a especialidade de MGF é amplamente reconhecida a nível nacional e internacional, e foi a principal alavanca do desenvolvimento dos cuidados de saúde primários e da melhoria significativa dos indicadores de saúde em Portugal".

Especialistas

De acordo com a listagem da Ordem dos Médicos, em 2021 Portugal tinha 8233 especialistas em Medicina Geral e Familiar, mas destes 4439 estão acima dos 60 anos.

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