A série Baby Reindeer, da Netflix, mostra uma obsessão real.
A série Baby Reindeer, da Netflix, mostra uma obsessão real.DR

Stalking: Maioria das vítimas são mulheres e muitas não procuram ajuda

Em Portugal este fenómeno só é crime desde 2015. A APAV volta a apelar para que não se normalizem determinados comportamentos.
Publicado a
Atualizado a

Começa com uma mensagem e acaba por tomar conta da sua vida.” A frase que deu nome à campanha da APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima), em 2016 - um ano depois de ser criminalizado em Portugal - voltou a soar de novo a 18 de abril, dia dedicado à sensibilização para o fenómeno do stalking, consagrado no Código Penal como crime de perseguição.

Só no ano passado chegaram à APAV mais de 200 pedidos de ajuda, e estima-se que o número de vítimas será bem superior, já que a maioria permanece em silêncio.

Emanuela Braga, da direção da APAV, uma das primeiras a estudar o fenómeno em Portugal (fez mestrado em 2010 e integrou um grupo de investigação na Universidade do Minho) conta ao DN que têm chegado cada vez mais pedidos de ajuda por parte de vítimas.

“Houve um aumento significativo logo a seguir à criminalização, que só aconteceu em 2015”. Desde então, esse aumento manteve-se, embora entre os anos de 2022 e 2023 o número seja idêntico. De acordo com os dados disponíveis, no ano passado a APAV recebeu 223 queixas, o que corresponde a 0,7% dos crimes e outras formas de violência que ali chegam.

Na língua portuguesa não há uma palavra que traduza o stalking, e por isso continua a usar-se o termo inglês. Porém, o que os especialistas sabem é que a legislação o identifica como crime de perseguição, além de assédio persistente: um conjunto de comportamentos que ocorrem de forma reiterada e contínua ao longo do tempo. E a verdade é que há um padrão neste tipo de violência: atinge maioritariamente mulheres, e normalmente os agressores são “alguém com quem já mantiveram algum tipo de relação prévia”, explica Emanuela Braga.

Foi o caso de Joana (chamemos-lhe assim), que aos 48 anos se viu obrigada a recomeçar a vida do zero: mudar de casa, de cidade, de profissão. O ex-companheiro não aceitou o fim da relação e moveu-lhe uma perseguição sem limites. Além das mensagens e dos telefonemas, “aparecia na loja de que eu era proprietária, ficava à porta, dentro do carro, com ar ameaçador”.

“Primeiro mudei de localização, depois acabei mesmo por fechar a loja, porque ele estava sempre lá. Mudei de número de telefone, e nem sequer pude avisar os meus amigos. Era como uma sombra, estava sempre lá.”

Joana conta que, numa fase inicial, quando foi à polícia fazer queixa, “não [a] levaram a sério”. E foi essa sensação de insegurança e falta de proteção que a levou a recomeçar tudo, longe, e ainda hoje com reticências em expor o caso.

Depois da violência doméstica

Um ex namorado/companheiro/cônjugue é, na maioria dos casos, quem faz a perseguição. “Contrariamente ao que achávamos há alguns anos, que era feito principalmente por estranhos, hoje sabemos que não é assim. Na grande maioria das vezes a vítima conhece o agressor ou agressora”, acrescenta esta responsável da APAV, atualmente a tutelar o Gabinete de Apoio à Vítima de Ponta Delgada.

Mas por todo o país há um dado comum: uma correspondência entre a violência doméstica e as situações de perseguição, quando após o fim da relação uma das partes não aceita, e inicia uma campanha de assédio contra a vítima. E esse é um fator relevante: “Por vezes existe a ideia de que após a rutura da relação cada um vai à sua vida e a situação fica resolvida. Só que não. Na maioria das vezes é o contrário”, afirma Emanuela Braga. Por outro lado, “com o passar do tempo os comportamentos de perseguição tendem a escalar, não só em termos de frequência como em termos de intensidade.”

Numa fase inicial, o stalking pode ser quase desvalorizado, uma vez que parece agregar um conjunto de comportamentos “aparentemente inofensivos”, até rotineiros. Além do envio de mensagens ou telefonemas, são os presentes que chegam sem aviso, aparecer em locais que a vítima habitualmente frequenta. Não raras vezes, a vítima não identifica de imediato a perseguição, desvalorizando-o. “A mensagem que pretendemos passar é que nunca deve ser desvalorizado. Porque quando se inicia este padrão comportamental, a tendência, com o passar do tempo, é escalar”.

O stalking  é uma forma de violência definida como um conjunto de comportamentos de assédio e ou perseguição praticados, de forma persistente, por uma pessoa contra outra, de forma a provocar-lhe medo ou inquietação, sem que esta os deseje e/ou consinta. Os autores destes comportamentos de assédio podem ou não ser alguém que a vítima conhece, ainda que frequentemente o assédio persistente seja perpetrado por ex-parceiros/as íntimos/as.

A APAV alerta para a natureza aparentemente inofensiva e até lisonjeira que os comportamentos de stalking  podem assumir numa fase inicial. E ao mesmo tempo, a associação procura sensibilizar para a possibilidade de estes comportamentos se agravarem e intensificarem, tornando-se mais intimidatórios, assustadores e perigosos para a vítima. Há uma Linha de Apoio, 116 006 (número gratuito) e uma rede nacional de Gabinetes de Apoio à Vítima prontos a ajudar.

Baby Reindeer. Série mostra uma obsessão real

Richard Gadd é o argumentista e protagonista da série da Netflix Baby Reindeer (estreou-se no dia 11), baseada no caso real do humorista escocês que foi perseguido por uma fã durante alguns anos e cuja obsessão envolveu o envio de 40 mil e-mails, 350 horas de voicemails e 100 páginas de cartas. Nesta série a história é contada pela relação entre Donny Dunn e Martha, com esta a perseguir o barmen que lhe oferece uma bebida.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt