Solidão: a "doença invisível" que afeta cada vez mais idosos
Portugal é o país da União Europeia a envelhecer mais rapidamente. Especialistas alertam para falta de medidas de combate à solidão.
Sentado à secretária, José Martins, de 72 anos, entretém-se a escrever no computador novo que recebeu no natal. Além de se ter inscrito em aulas de informática, faz ginástica, frequenta a Universidade Sénior e ainda devora livros. Quem o vê agora, está longe de imaginar que há apenas dois anos, José não sabia ler nem escrever e vivia isolado em casa. "Deixei de trabalhar por causa de um problema de saúde e isolei-me várias semanas em casa. Não tinha amigos, não tinha ninguém", desabafa."Pensava que já não era útil para nada, que já não tinha nenhum interesse nesta vida".
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Tal como muitos idosos, sem autonomia, José via-se cada vez mais sozinho e sem motivação para se levantar da cama. O grito de socorro veio da parte da filha, que acabou por o convencer a ir a uma consulta de psicologia.
"Ele quando chegou aqui não fazia nada, quase nem sabia falar. Hoje é completamente autónomo em casa: sabe usar o telemóvel, o multibanco, escrever, ler, tudo", explica Diana Tavares, psicóloga e fundadora do projeto Ativo em Casa. "O isolamento é muito prejudicial. Faz com que existam muito mais perdas cognitivas e todo o tipo de doenças".
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Combater a solidão nos idosos é um dos motes deste projeto, composto por uma equipa de psicólogos que acompanha pessoas dos 65 aos 91 anos, em sessões ao domicílio. "Chegam-me muitas pessoas que se sentem sozinhas, principalmente depois da pandemia. Algumas eram completamente autónomas e depois do isolamento deixaram de saber cozinhar para os netos, por exemplo. O trabalho que fazemos aqui é a nível da autonomia, de reaprender e adaptar", explica.
Um dos fatores que torna os idosos particularmente vulneráveis à solidão é a perda da esperança e do propósito de vida, principalmente depois da reforma. "As pessoas têm que se sentir válidas na sociedade. O problema é quando a sociedade bate com a porta na cara destas pessoas. Ser-se velho ainda é muito mal visto", critica a psicóloga. Este é um tabu que José se recusa a aceitar. Desde que começou as consultas nunca mais parou e todos os dias se dedica a aprender algo novo."Nunca é tarde para nada e nós nunca somos velhos", afirma.
Menos crianças, mais idosos
Portugal é o país da União Europeia a envelhecer mais rapidamente, com duas vezes mais idosos do que crianças e jovens. Em 1990, o rácio era de 66 idosos por cada 100 jovens. Hoje, estamos nos 182 por cada 100, de acordo com a PORDATA. Uma tendência que se prevê que continue a aumentar, com os casais a terem cada vez menos filhos. Podemos estar perante uma epidemia da solidão? O que podemos fazer para a evitar?
"Nunca há um único fator que desencadeia a solidão. A solidão é ela própria complexa e resulta de um complexo de fatores", refere Adalberto Dias de Carvalho, diretor do Observatório da Solidão. "Os nossos dados apontam para que exista a possibilidade de solidão em cerca de 5 em cada dez pessoas". Desde fatores socioeconómicos, ao afastamento da família e dos amigos, a perda da mobilidade e de funções cognitivas e o isolamento social, são vários os motivos que tornam os idosos mais suscetíveis à solidão. "E depois também há a solidão social. O que eu vejo é pessoas com 200 euros de reforma que não têm acesso a qualquer tipo de serviço social", explica Diana Tavares, que considera importante começar a pensar num plano de reforma desde cedo. "As pessoas têm de pensar onde vão estar aos 80 anos e como é que se podem organizar, hoje, financeiramente, emocionalmente e socialmente."
O cenário atual de inflação torna difícil fazer estes planos a longo prazo e, mais do que isso, pode vir a piorar os fenómenos de solidão entre as várias faixas etárias. "A inflação vai criar ansiedades, receios, medos e ao mesmo tempo vai privar muitas pessoas do acesso às atividades que geram prazer, como viajar", afirma Adalberto Carvalho.
Precisamos de um Ministério da Solidão?
Países como o Reino Unido e o Japão viram a necessidade de criar um Ministério da Solidão, para lidar com aquele que é considerado um dos maiores problemas da idade moderna. Em Portugal, esta hipótese ainda não está em cima da mesa, mas Adalberto Carvalho defende que deveria ser algo a ser pensado a nível político. "Abordar o problema da solidão implica uma gestão política dos fatores que a podem desencadear e das terapias que a podem condicionar. Isso implica decisões, meios e recursos, que nunca são de uma só especialidade."
A criação de uma estratégia nacional de combate a este flagelo não parece tão descabida se pararmos para analisar os dados do BBC Loneliness Experiment que concluiu, em 2020, que cerca de 30% da humanidade experimenta a solidão, com risco de esta se tornar persistente e se tornar doença.
"Chamemos-lhe Ministério, chamemos-lhe Secretaria de Estado, o que seja. Seria uma instância política, porque o fenómeno da solidão tem efeitos até na própria produtividade, no emprego e carece de um enquadramento de intervenção de ordem política", afirma Adalberto.
Foi exatamente desta falta de estratégias de combate à solidão que nasceu, em 2021, o projeto Pedalar Sem Idade, um movimento sem fins lucrativos, constituído por voluntários que levam seniores e/ou pessoas com mobilidade reduzida em passeios de bicicleta.
António Silva, de 60 anos, é uma das pessoas que participa regularmente nos passeios por Lisboa. "É uma forma de sair à rua, ver o movimento, sentir o vento na cara e o sol. É muito importante a todos os níveis", afirma. O projeto foi criado na Dinamarca e neste momento está presente em território nacional em Lisboa, Cascais, Castro Verde e Guimarães.
"Oferecemos passeios às pessoas, levamo-las a sair de casa, devolvemos-lhe esta possibilidade de voltarem a viver as suas ruas e passarem em sítios que lhes diziam alguma coisa", explica a diretora executiva do projeto, Margarida Quinhones. Os passeios podem ser marcados gratuitamente por qualquer instituição ou particular através do site do projeto ou por chamada telefónica. Só em Lisboa, são feitos 150 passeios regulares por mês.
"Nós oferecemos o nosso tempo para dar toda a atenção à pessoa. Estamos aqui também para ouvi-las e valorizá-las. É muito mais do que um passeio", afirma Margarida. Há voluntários de todas as idades, que se disponibilizam para, pelo menos uma vez por mês, realizarem estes passeios. "O feedback é imediato", conta um dos voluntários. "É uma sensação tão boa saber que fazemos a diferença na vida de alguém. É chegar a casa com um sentimento de dever cumprido..."
António está num lar e participa nos passeios quase desde o início do programa. Apesar de o circuito ser o mesmo, para ele a experiência vale sempre a pena. "Tive muito tempo sem visão por causa das cataratas e cheguei a fazer este passeio sem conseguir ver praticamente nada", conta. "Depois de ser operado recuperei grande parte da visão e hoje dou muito valor a isso. Sempre que fazem os passeios, faço questão de vir". Chegado o fim do trajeto, António já está a pensar no próximo: "Há outro esta semana, mas acho que vou dar a vez a outra pessoa. Na próxima semana há mais."
Supermercado holandês abre "caixa lenta" para combater a solidão
Fora do território nacional as estratégias de combate à solidão também se desdobram em iniciativas inovadoras. Nos Países Baixos, o supermercado Jumbo abriu uma "caixa lenta" onde os clientes se podem sentir à vontade para conversar.
O objetivo é combater a solidão, permitindo que os clientes que se sintam mais sós possam fazer os pagamentos com calma e conversar com os funcionários. A iniciativa começou em 2019, em Vlijmen, mas o sucesso do projeto levou ao plano de abertura de mais 200 espaços iguais a este.
De acordo com a Statistics Netherlands, nos Países Baixos existem cerca de 1,3 milhões de pessoas com mais de 75 anos e 33% dizem sentir-se moderadamente solitários.
Em Portugal ainda nenhuma das cadeias de supermercados avançou com uma iniciativa do género.
Idosos oferecem quarto a estudantes em troca de companhia
Para quem vive sozinho, é uma forma de ter companhia. Para quem estuda e não tem condições de arrendar casa, é uma oportunidade de alojamento. O projeto Aconchego, criado pela Câmara do Porto em parceria com a Federação Académica do Porto em 2004, consiste no alojamento de estudantes na casa de pessoas idosas que se sintam sozinhas. Esta união de gerações permite responder a dois problemas: por um lado, a dificuldade de alojamento de estudantes do ensino superior não residentes na cidade; por outro, o sentimento de solidão ou isolamento das pessoas idosas.
"É um programa que, na sua génese, proporciona um lar seguro - e não apenas um quarto a um estudante -, assim como uma efetiva companhia aos mais velhos", afirma Fernando Paulo, vereador da Coesão Social da Câmara Municipal do Porto. "Juntos, recolhem uma riqueza sem preço: os afetos. Quem estuda, tem casa. Quem tem casa, tem companhia". Desde o início e até ao final do ano letivo anterior, o Programa Aconchego já beneficiou 518 pessoas (259 estudantes e 259 idosos). Neste último trimestre, estão integrados 12 beneficiários (seis estudantes e seis seniores), com nacionalidade portuguesa e brasileira.
A iniciativa destina-se a qualquer pessoa com mais de 60 anos, residente no Porto, que viva só ou com o cônjuge, em situação de solidão e/ou isolamento social, e a estudantes, nacionais ou estrangeiros, que venham estudar para a cidade do Porto e não tenham recursos financeiros para arrendar um espaço.
De acordo com dados recentes, o preço médio de um quarto no Porto é de 324 euros. Estima-se ainda que existam 337 quartos disponíveis, segundo o Observatório de Alojamento Estudantil da start-up Alfredo Real Estate Analytics.
Por outro lado, há cada vez mais idosos a viver sozinhos nas cidades. Foram sinalizados mais de 44 500 idosos que vivem sozinhos e/ou isolados, ou em situação de vulnerabilidade, pela GNR na Operação "Censos Sénior 2022", que decorreu em outubro. No Porto, são mais onze mil do que em 2011.
"Assim, os idosos que partilham a sua casa ganham companhia e veem diminuído o seu sentimento de solidão. Por outro lado, os estudantes recebem alojamento de forma gratuita e beneficiam de uma melhor integração numa nova cidade, inseridos num ambiente familiar", refere Fernando Paulo. O objetivo não é que os mais jovens sejam "cuidadores", mas que pelo menos se comprometam a ser uma companhia e a melhorar a qualidade de vida de quem os acolhe.
O projeto é monitorizado de perto pelo Departamento Municipal de Coesão Social da Câmara Municipal do Porto e pela FAP Social, que verificam o cumprimento das cláusulas. É dividido em quatro que fases, que vai desde o preenchimento da candidatura e entrevista de ambos até ao acompanhamento e análise de resultados. A verdade é que o sucesso do programa está à vista. Na sua maioria, as adesões são renovadas até o estudante terminar o ciclo de estudos e grande parte dos seniores mantém a adesão ao Programa, até se propondo a receber novos estudantes.
A crescente visibilidade da iniciativa também tem levado à replicação da mesma noutros concelhos e cidades do país, tendo sido implementado pela Câmara de Mirandela em 2019.
A nível internacional, também foi recentemente reconhecido no Canadá como "age-friendly housing pratice", pela Organização Mundial de Saúde. O segredo, segundo Fernando Paulo, está "na aproximação de duas gerações tão distantes na idade, mas tão próximas nos sentimentos".
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