Só até setembro houve mais médicos a pedir a reforma do que em 2021. Situação pode agravar em 2023

Este ano, há 606 médicos que já entregaram os papéis para a aposentação. E o bastonário da classe acredita que, no estado atual do SNS, mais venham a fazê-lo, podendo o número chegar a 700 ou até mesmo a 800. Mesmo assim, a sorte é que só cerca de 30% a 40% dos que estão em condições para o fazer é que entram neste processo. Mas se nada for feito, para melhorar as condições globais de trabalho no SNS, a situação dos recursos humanos irá agravar-se ainda mais.

Mais ninguém poderá dizer que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem médicos a mais. Os constrangimentos vividos durante os últimos meses nos serviços de urgências, e não só, em unidades de norte a sul do país, demonstraram que já não é assim. E agora com uma agravante: é que este ano e nos próximos três, para não se ir mais longe, o número de profissionais em condição de pedir a reforma é superior aos que pediram nos últimos três.

Mas há mais. Se a esta situação juntarmos o número de médicos que todos os anos tem saído do sistema público para integrar projetos no setor privado ou até no estrangeiro, tal significa que o país está sem capacidade para repor este capital humano.

O bastonário da Ordem dos Médicos explica: "Se tivermos em conta o número de médicos que está a sair do SNS todos os anos, que estimamos que seja entre os 300 e os 400 - embora o Ministério da Saúde não dê este número oficialmente -, o número dos que vão para a reformar e ainda os médicos especialistas que se formam todos os anos mas que deixam cerca de 40% das vagas do SNS que vão a concurso desertas, significa que neste momento não é só a questão da reposição de profissionais que está em risco, mas também o seu reforço. E isto deve ser uma urgência para a nova equipa da saúde."

Segundo dados disponibilizados ao DN pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), até setembro deste ano 606 médicos tinham entregue os papéis para a reforma, o que quer dizer que até ao final do ano, e como sublinha Miguel Guimarães, "podemos atingir os 700 ou até mesmo os 800", o que é muito mais do que o número dos que se reformaram em 2019, 407, em 2020, 646, e em 2021, 575.

Ao todo, nestes últimos três anos reformaram-se 1628 médicos, e juntando a estes os 606 que entregaram os papéis até setembro, temos um total de 2234 profissionais que deixaram o SNS por esta via. É certo que alguns se mantêm depois a funcionar no SNS, embora noutras condições e muitos deles em horários reduzidos - aliás, segundo os dados da ACSS, em agosto deste ano havia um total de 391 médicos aposentados em funções nos serviços do SNS. Segundo o bastonário dos médicos e o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), este é um dos aspetos que faz com que "a situação não seja ainda mais grave".

Como sublinha Nuno Jacinto, da APMGF, "só este ano, na nossa especialidade, estimava-se que mais de mil colegas atingiriam a situação de poderem pedir a reforma - ou seja, os 66 anos e quatro meses. Se, até agora, só 606 médicos de todas as especialidades é que entregaram os papéis isso quer dizer que são muitos os que estão a adiar essa solução", o que, comenta, até é "positivo, mas daqui a três anos, se nada for feito e quando todos estes médicos atingirem os 70 anos e tiverem de se reformar, o problema será muito mais grave".

Em 2023, mais de 700 podem pedir a reforma

Na resposta dada ao DN, a ACSS assume que "as aposentações efetivas são em número significativamente inferior ao número de médicos em condições de se aposentar, variando a percentagem dos que concretizam a aposentação entre os 30% e os 40% do total dos que estão em condições de a solicitar".

Nos próximos três anos, nomeadamente para 2023, estão em condições de aposentação 716 médicos, para 2024, 620, e para 2025, 656. Em 2022, a medicina geral e familiar, a medicina interna, a saúde pública, a ginecologia/obstetrícia e a psiquiatria foram as especialidades com maior número de aposentações, mas para os próximos anos outras acrescem a estas. Como refere a ACSS, "as especialidades com maior número de especialistas em condições de aposentação são, para o horizonte temporal dos próximos três anos, além da medicina geral e familiar, a medicina interna, a anestesiologia, a cirurgia geral e a pediatria".

30 484 médicos trabalhavam no SNS, em 2021, sendo que, destes, a maioria é especialista e está acima dos 60 anos.

Tanto para Miguel Guimarães como para Nuno Jacinto, "esta é uma das situações que a nova equipa da saúde terá de resolver". Ambos dizem ter "confiança nas pessoas que agora estão à frente do ministério", pois "conhecem bem o SNS e os problemas", mas "ainda não sabemos o que vão fazer", sublinha o bastonário, e acrescenta: "Não podemos ficar à espera que isto agrave de tal forma que tenhamos de ir a correr atrás do prejuízo, porque isso é o que se faz há muito tempo, e o prejuízo é cada vez maior."

Miguel Guimarães, que está prestes a terminar o seu mandato como bastonário, em janeiro de 2023, reforça ainda que "a falta de recursos no SNS é um tema para o qual a ordem vem a alertar há muito tempo e no qual nada mudou desde há 10 anos".

Ministério argumenta com política de reforço

Do lado oficial, a ACSS relembra, em resposta ao DN, que "o Ministério da Saúde tem prosseguido, nos últimos anos, uma política de reforço de recursos humanos no SNS, que se tem refletido no aumento do número de médicos especialistas, com um crescimento na ordem dos 25% desde 2015 até à atualidade", e que esta "trajetória positiva se mantém para 2023, nomeadamente com o novo Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 52/2022, de 4 de agosto, bem como com a proposta de lei do Orçamento do Estado apresentada pelo governo, que, entre outras medidas, mantém o regime especial de contratação de médicos aposentados, conservando as regras em vigor, ou seja, ao valor da respetiva pensão de aposentação são "acrescidos 75% da remuneração correspondente à categoria e, consoante o caso, escalão ou posição remuneratória detida à data da aposentação, assim como o respetivo regime de trabalho [...]".

A questão, como destacam Miguel Guimarães e Nuno Jacinto, é a seguinte: "O número de médicos que se está a contratar e até a formar não será suficiente se nada mudar nas condições globais de trabalho e de salários no SNS."

Aliás, isto mesmo tem vindo a ser reivindicado pelos dois sindicatos da classe, que iniciaram negociações para a revisão destas condições e das carreiras médicas ainda com a anterior tutela, estando nova reunião agendada para 28 de novembro.

Embora não seja matéria da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães admite que será muito difícil mudar as condições que hoje existem no SNS com o Orçamento do Estado para 2023. "Não adianta virem dizer que temos mais 1,2 mil milhões de euros no orçamento da saúde, porque estes são para investimentos e não para o reforço do capital humano. Aquilo que se vê no OE para os recursos são cerca de mais 50 milhões, que, fazendo as contas, apenas correspondem ao aumento que a função pública terá. Portanto, neste orçamento não se vê nada para a melhoria salarial dos médicos nem das várias classes do setor. E o SNS precisa mais do que a reposição dos recursos que se reformam, precisa de dar um salto em frente e ir mais além, e com uma atenção muito especial para as zonas mais carenciadas da periferia e interior, como Bragança, Portalegre e outras, onde já está a ser cada vez mais difícil repor médicos."

Em dezembro de 2021, estavam inscritos na Ordem dos Médicos 59.697 profissionais.

O bastonário reforça que muitos dos médicos, sobretudo de medicina familiar, que estão a reformar-se agora foram os que noutra geração cumpriram o serviço à periferia naquelas regiões e acabaram por ficar. Portanto, "se não houver uma atuação concertada entre ministério e autarquias para melhorar as condições de trabalho dos médicos, com incentivos e outras situações, como acesso fácil à habitação, será difícil substituir os que saem nestas regiões". E, destaca, nem mesmo o aumento de vagas para especialistas, já anunciado pelo Sr. Ministro para 2023, será suficiente".

Mais duas mil vagas para formar médicos não resolve a situação

Manuel Pizarro anunciou no final de outubro que "Portugal vai contar, em 2023, com um total de 2054 vagas para formação médica especializada, o maior mapa de vagas de sempre, representando um crescimento de 115 vagas face a 2022, quando foram abertas 1939".

Um crescimento que, destacou na altura, resulta de "um compromisso do Ministério da Saúde e das instituições parceiras na formação de médicos especialistas para o reforço de recursos humanos no SNS, com impactos diretos no acesso dos cidadãos a cuidados de qualidade e diferenciados". No próximo ano, a especialidade de medicina geral e familiar foi a que comportou maior número de vagas (574), um acréscimo de 53 em relação a 2022, mas destas só 200 são para formar médicos na região de Lisboa e Vale do Tejo, também mais 24 do que no último concurso de acesso ao internato da especialidade.

Mas em relação às vagas para os internos que começarão a sua especialidade a 1 de janeiro de 2023, houve outras especialidades que também registaram um aumento, como anestesiologia, com 85 vagas, mais cinco face a 2022, e ginecologia/obstetrícia com 54, mais seis, o que não era tão elevado desde 2010. Para este concurso inscreveram-se 2343 médicos, dos quais 1819 são candidatos pela primeira vez.

À partida, tais números são positivos, mas o bastonário ressalva que o que é preciso é que "estes não deixem 40% das vagas do concurso para as unidades do SNS desertas, que é o que tem estado a acontecer nos últimos anos", acrescentando: "O problema não é a formação, porque agora saem todos os anos cerca de 1700 a 1800 médicos especialistas, o problema é que quase metade destes nem concorre para o SNS."

"Se amanhã for feita uma revisão da carreira médica que valorize o trabalho das pessoas, que lhes dê condições globais e salários dignos no SNS, se calhar no próximo ano já não ficaremos com 40% das vagas desertas nos cuidados primários e nos hospitais."

Daí que reafirme: "A situação é muito complicada, e não é só a reposição dos médicos que se reformam que está em risco, é o reforçar o capital humano, e temos de fazer mais do que isto", porque "não podemos deixar morrer o serviço público, é absolutamente fundamental que se reforce a sua capacidade de resposta de forma global e com uma atenção especial para as áreas mais carenciadas".

Quando confrontado com a questão de nos próximos três anos haver quase dois mil médicos no SNS que também podem entrar na reforma e o que se pode fazer para travar a falta de recursos humanos, Miguel Guimarães argumenta que não é assim tão difícil. É verdade que se trata de "uma questão estrutural", mas há mudanças que podem ser feitas e que certamente "teriam efeitos no imediato".

"Se amanhã for feita uma revisão da carreira médica que valorize o trabalho das pessoas, que lhes dê condições globais de trabalho e salários dignos no SNS, se calhar no próximo ano já não ficaremos com 40% das vagas desertas nos cuidados primários e nos hospitais. É claro que isto não vai resolver o problema de uma vez, mas pode ter logo um efeito positivo. Quanto mais tempo demorarmos a criar condições que permitam que os médicos fiquem no SNS, em vez de saírem, mais a situação dos recursos humanos se vai agravando."

O número de clínicos que entregou os papéis para a reforma até setembro deste ano já é superior aos que se reformaram em 2021 ou nos dois anos anteriores. Os que estão em situação de se reformarem nos próximos três também são mais do que aqueles que estavam até aqui. A sorte, até agora, é que a maioria dos médicos acaba por trabalhar mais do que o tempo previsto, para além dos 66 anos e quatro meses, mas para reforçar o SNS não é possível continuar a contar-se com esta opção. "É preciso mudar o paradigma das condições de trabalho no serviço público de saúde", reforçam os médicos.

Especialidades com mais carências

Medicina familiar e medicina interna
A estatística da Ordem dos Médicos, em 2021, revelava haver 8233 médicos de família, obviamente nem todos no ativo, já que, destes, 3285 têm mais de 65 anos e 1565 estavam entre os 56 e os 65. Em relação à especialidade de medicina interna a estatística revelava haver 3165 clínicos, sendo que 717 estão acima dos 65 anos e 503 entre os 56 e os 65.

Ginecologia-obstetrícia
Em 2021, havia 1906 ginecologistas-obstetras. Destes, 715 com mais de 65 anos e 503 entre os 56 e os 65.

Anestesiologia
Em 2021, havia 2177 especialistas, mas 590 com mais de 65 anos e 374 entre os 56 e os 65.

Pediatria
No ano passado, existiam 2297 pediatras, mas 700 tinham mais de 65 anos e 587 estavam entre os 56 e os 65.

Cirurgia Geral
Em 2021, havia 1846 cirurgiões, contudo 664 tinham mais de 65 anos e 416 estavam entre os 56 e os 65.

Psiquiatria
Em 2021, existiam 1309 especialistas, 438 com mais de 65 anos e 299 entre os 56 e os 65.

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