SNS. Início de ano pode ser mais calmo nas urgências, mas já há greves marcadas para janeiro

O ano de 2023 pode ter sido um dos piores do SNS. E quem nele trabalha também não vislumbra "luz ao fundo túnel" para 2024. O mais provável é que os protestos das classes profissionais voltem a marcar o seu funcionamento. Os farmacêuticos começam dia 2 de janeiro uma greve sem limite à entrega da medicação em proximidade.
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O Serviço Nacional de Saúde (SNS) atravessa os seus 44 anos, feitos a 15 de setembro de 2023, com uma das maiores crises que já viveu e que alguns, como o bastonário dos médicos, Carlos Cortes, dizem traduzir bem a "insatisfação" e a "desmotivação" de quem nele trabalha. Aos médicos, bastou cumprir a lei e não fazer mais do que as 150 horas extraordinárias a que estão obrigados para provocar o maior constrangimento nos serviços de urgência de hospitais de norte a sul do país, quer fossem periféricos ou centrais. Todas as semanas há notícias de que 30 a 40 destes serviços têm de encerrar portas, ou à noite ou aos fins de semana. E os que mantêm as portas abertas apelam à população só para ali se dirigirem se for mesmo necessário.

A lei, para um sistema de saúde que sobrevive à custa de horas extra dos profissionais, mostrou ser uma das maiores armas de arremesso contra o Governo, contra a tutela e contra a política. Mas às primeiras horas de 2024, as horas extra dos médicos voltam à estaca zero, e os constrangimentos nas urgências devem acalmar. Pelo menos, até completarem as 150 a que estão obrigados.

A questão é que há outras classes profissionais insatisfeitas e capazes de perturbar o funcionamento do SNS. Os farmacêuticos hospitalares, por exemplo, têm greve marcada para 2 de janeiro e o presidente do sindicato que os representa, Henrique Reguengo, garantiu ao DN que esta vai ser cumprida. "Não há qualquer motivo para retirar este pré-aviso de greve. Mantém-se tudo igual desde o dia em que fizemos a nossa primeira greve em 30 anos, em outubro de 2022. Portanto, queremos mostrar a este Governo e ao próximo que não é possível continuar a ignorar uma área que é fulcral para o SNS." Do lado da enfermagem, o Sindicato Independente dos Enfermeiros Unidos também encetou no dia 21 de dezembro uma greve com fim a 2 de janeiro.

O DN ouviu sindicatos de três classes profissionais que, querendo, podem fazer parar o SNS (médicos, enfermeiros e farmacêuticos) e a reação foi a mesma. "A luta pelos direitos vai continuar", disseram-nos. O ano até pode começar mais calmo pelo lado dos médicos, já que estes terão de cumprir 150 horas extraordinárias, através das quais poderão assegurar as urgências, mas, mesmo assim, a presidente da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), Joana Bordalo e Sá, alerta para o que é esperado em 2024: "Da nossa parte, a luta continua. As horas extra voltam à estaca zero, mas o mais provável é que os médicos comecem a colocar recusas para mais horas extra do que as 150 logo em janeiro para entrarem em vigor mal as atinjam, o que, para a generalidade dos médicos, acontece em março ou abril." A dirigente da FNAM considera que o novo ano, só por si, não trará tranquilidade ou soluções ao SNS, que "continua depauperado de médicos", destaca. Mesmo havendo um acordo de aumentos assinados por outra estrutura da classe. Quando questionada pelo DN, a médica foi perentória: "É um mau acordo, insuficiente para melhorar as condições de trabalho no SNS e para fixar médicos." Pelo contrário, "vamos continuar a assistir à saída de mais médicos".

Para o secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), Jorge Roque da Cunha, a estrutura que chegou a acordo com a tutela, após 19 meses de negociação, no que toca a um aumento salarial que vai dos 3% aos 15%, assume que "este acordo é intercalar, mas uma pequena esperança e uma luz ao fundo do túnel para os médicos", sublinhando, no entanto, e para quem vier a seguir, que "é preciso manter como prioridade o investimento na valorização da classe médica".

Por agora, nenhum dos sindicatos médicos tem protestos agendados para 2024, mas, mais uma vez, a presidente da FNAM avisa: "Aos médicos basta cumprir o que está na lei, como as horas extra ou o seu horário de trabalho, para haver constrangimentos no SNS. Se começarmos todos a sair a horas ou a fazer só os atos programados haverá constrangimentos em todos os serviços do SNS ou este pára, porque estamos todos a trabalhar acima dos nossos limites e a fazer mais do que o nosso horário de trabalho e do que os atos programados."

Os constrangimentos nos serviços de urgência começaram no verão de 2022, após ter sido levantado o estado de emergência contra a covid-19, e de muitos médicos começarem a debandar do SNS, ou porque optavam pelo setor privado ou porque queriam sair do país. As negociações com os dois sindicatos da classe iniciaram-se em abril de 2022, com a ministra Marta Temido. Mas tal não impediu que o primeiro verão pós-pandemia fosse dramático. A ministra demitiu-se e, em setembro, tomou posse o seu sucessor, Manuel Pizarro, médico, e em quem a classe depositava "muitas esperanças". Só que este levou também 19 meses a negociar e pouco ou nada conseguiu acordar relativamente ao que para a classe era prioritário e integrava um pacote global (reposição das 35 horas semanais, 30% de aumento salarial e a reposição das 12 urgências).

Por isto mesmo, Joana Bordalo e Sá diz que o esperado para 2024 é o mesmo que vimos acontecer em 2023: "Os médicos mais velhos a sair do SNS e os mais novos nem sequer a querem entrar ou a fixarem-se. Basta vermos que das vagas lançadas para o internato de 2024 quase meio milhar ficaram por preencher." A FNAM vai esperar pelo próximo Executivo e pelo comportamento deste, mas a sua presidente assegura que "a estrutura continuará a apoiar todos os colegas, do ponto de vista sindical e jurídico, que quiserem avançar com escusas para horas extra, porque estão a cumprir a lei e é mais do que legítimo que o façam". Por outro lado, espera também que 2024 e quem venha a seguir traga "bom senso, competência e vontade política para resolver os problemas do SNS, percebendo que para isto é preciso ter médicos." "Se tal não acontecer, cá estaremos para ver novas formas de luta", concluiu ao DN.

O secretário-geral do SIM, e apesar do acordo intercalar alcançado, afirma: "Não estamos parados, vamos começar a enviar o nosso caderno reivindicativo a todos os partidos para que estes conheçam o nosso caderno reivindicativo e para que algumas medidas possam integrar os seus programas eleitorais." No entanto, espera que "o SNS não seja arremesso de arma política partidária".

O ano termina com uma greve decretada pelo Sindicato Independente dos Enfermeiros Unidos, mas para a classe está bem definido que enquanto não houver a reposição da contagem do tempo de serviço e o pagamento dos retroativos a 2018 a todos os enfermeiros a quem foram contabilizados pontos, a "luta continuará, independentemente de quem for Governo", disse ao DN Guadalupe Simões, dirigente do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP). "Uma coisa é certa vamos continuar a lutar pela resolução dos problemas específicos da classe de enfermagem", assumiu. Há muito que os enfermeiros reivindicam estes dois pontos que consideram "injustos", mas querem também que a sua carreira seja valorizada e equiparada à de todos os outros profissionais da área da saúde. "Sendo os enfermeiros licenciados, como qualquer outro grupo profissional do setor da saúde, não faz sentido continuarmos a ser discriminados".

A dirigente do SEP recorda ainda que em relação à enfermagem "há uma carência geral de profissionais no SNS. E o que se exige é que nos planos de desenvolvimento organizacional das novas Unidades Locais de Saúde" a admissão de mais recursos esteja prevista. "E não sabemos se será assim ou não." Para 2024, o SEP espera que "o novo Governo esteja disponível para discutir com os enfermeiros e aproximar posições no sentido de resolver os problemas da classe". Não têm protestos marcados, mas Guadalupe Simões diz que não estão parados . "Vamos intervir junto dos partidos que se vão apresentar a eleições e apresentar-lhes um documento com as nossas principais reivindicações e medidas de defesa do SNS."

Os farmacêuticos são outra classe em luta pelos seus direitos. E não vão esperar sequer que chegue um novo Governo e entram em 2024 com uma greve no dia 2 à medicação de proximidade - ou seja, a medicação que hoje é entregue ao doente em casa ou na farmácia mais próxima vai ter de ser levantada no hospital. Nenhum doente ficará sem medicação, mas vão saber que os farmacêuticos também fazem greves. A primeira ao fim de 30 anos, ocorreu em outubro de 2022, e depois de "alertas sucessivos às várias tutelas para os problemas da classe", refere o presidente do Sindicato Nacional dos Farmacêuticos, Henrique Reguengo. Depois desta voltaram a parar em julho e em setembro de 2023 e, agora, têm pré-aviso para 2 de janeiro. E na opinião de Henrique Reguengo "não há motivos para retirar" este pré-aviso de greve. "Tudo continua igual ao dia em que fizemos greve pela primeira vez." "Aliás", sublinha, "está tudo pior, porque não vimos nenhuma abertura por parte do ministro Manuel Pizarro para negociar com os farmacêuticos, tal como o mostrou com outras classes profissionais, o que é absolutamente inexplicável".

O dirigente do SNF diz mesmo: "Estávamos habituados a ir ao Governo e a ouvir que tínhamos razão, mas que não estávamos nas prioridades. Pelo menos, havia o reconhecimento de problemas a resolver. Com o dr. Pizarro passámos deste paradigma para o de que "não estão mal", o que quer dizer que vamos de mal a pior." Por isso, a greve foi marcada para uma área que é uma das bandeiras de Manuel Pizarro: a dispensa de medicamentos em proximidade: "Os governos têm de perceber que a área farmacêutico é transversal a todo o SNS e que não a podem ignorar mais."

Das reivindicações da classe fazem também parte condições de trabalho, necessidade de fixar profissionais e a valorização da grelha salarial. Como diz Henrique Reguengo, "não há só médicos ou enfermeiros a saírem do SNS. Há também farmacêuticos, porque este não é, efetivamente, um dos locais mais atrativos para um farmacêutico trabalhar". E acrescenta: "Também só se fala da tabela remuneratória dos médicos, mas os farmacêuticos têm uma tabela que não é revista desde 1999. Se formos comparar com as tabelas de outras classes profissionais do setor da saúde, todas as outras, pelo menos, de 2008 até agora, tiveram atualizações, algumas com aumentos substanciais, mas a dos farmacêuticos ficou na mesma. Temos profissionais a receber menos do que os técnicos de diagnóstico e terapêutica que trabalham sob a sua responsabilidade."

O dirigente sindical reforça ao DN: "Não conheço um único farmacêutico a trabalhar no SNS que esteja satisfeito. Neste ano, mais de 10% apresentaram escusa de responsabilidade pelas condições em que trabalham." E deste ministério fica a mágoa de ter à sua frente um médico, "que deveria saber melhor do que outros a importância de uma classe como a dos farmacêuticos, porque não há serviço hospitalar que não precise das nossas funções (farmácia, das análises clínicas ou da genética), e que optou por nem sequer falar connosco", critica o presidente do SNF. "A última reunião marcada com a tutela, a 2 de junho, acabou por não se realizar por impossibilidade do secretário de Estado e até hoje nunca mais fomos chamados para discutir os problemas da classe", remata. Entram em 2024 em contestação, mas consideram essencial que quem vier a seguir tenha consciência de que "é preciso iniciar um diálogo produtivo com os farmacêuticos".

O SNS foi criado pela Lei n.º 56/79 com o objetivo de concretizar o direito universal de proteção na saúde e de prestação de cuidados. Mas a crise em que vive, provocada por falta de profissionais e condições de trabalho, está longe de o deixar cumprir estes objetivos perante todos os que o procuram.

O que pensam os líderes dos dois maiores partidos que irão a eleições sobre a existência do SNS? O novo líder do PS, Pedro Nuno Santos, já reivindicou que este "foi obra dos fundadores do PS" e que "é a nossa maior obra coletiva". Na moção que irá apresentar ao congresso defende ser preciso "consolidar o SNS", já que este é "um dos pilares do Portugal democrático", considerando que "a melhoria progressiva, e significativa, da qualidade de vida dos portugueses nos últimos 50 anos é indissociável da criação de um sistema público de saúde universal e tendencialmente gratuito". Na distinção entre o serviço público e os demais setores da saúde, assume que "o que distingue o SNS dos demais prestadores de saúde é a sua orientação apenas pela melhoria do estado de saúde e o facto de ter na preservação e melhoria dos índices de saúde da população o seu único objetivo". E sobre o trabalho feito nestes oito anos de governação, o PS considera que houve "um novo impulso", destacando que o orçamento aumentou em mais de 5,6 mil milhões e que o número de profissionais também aumentou 25% desde 2015. Hoje são 150 mil. Promete concluir as reformas em curso.

Do lado do PSD, o líder, Luís Montenegro, criticou o Governo pelo estado a que chegou o SNS, acusando-o de "completo erro da definição de políticas na área da saúde" e atribuiu a "responsabilidade máxima" ao primeiro-ministro, António Costa, considerando que o que se vive no serviço público de saúde "já não é só um problema da falta de acesso dos portugueses aos serviços, mas da sua segurança". Na visão de Luís Montenegro é preciso um "pacto Nacional para a Saúde", que envolva Governo, partidos e os setores público, social e privado, para acabar com a "hipocrisia assente em pés de barro" de que o SNS é suficiente". "O setor da saúde precisa de uma diligência forte com uma dimensão estratégica e estrutural", de um sistema de saúde que contemple os três setores."

anamafaldainacio@dn.pt

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