Imigrantes organizaram manifestação "Não nos encostem a parede" pouco menos de um mês após operação.
Imigrantes organizaram manifestação "Não nos encostem a parede" pouco menos de um mês após operação. LEONARDO NEGRÃO

Operação Martim Moniz. Provedoria de Justiça questiona legalidade e risco de discriminação nas revistas da PSP

Ofício enviado à Direção Nacional da polícia pede maior fundamentação e proporcionalidade, após críticas à atuação na Rua do Benformoso em 19 de dezembro de 2024.
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A Provedoria de Justiça revela que a Polícia de Segurança Pública (PSP) não justificou as polémicas revistas realizada na Rua do Bemformoso em dezembro do ano passado, tendo violado as próprias normas internas, classificando tal procedimento como uma "falha crítica" e recomendando a adoção de melhorias no planeamento das suas operações especiais, de modo a garantir maior previsibilidade, racionalidade e proporcionalidade da atuação.

Em comunicado enviado às redações nesta segunda-feira (7), a Provedoria informa que foi enviado um ofício à Direção Nacional da PSP, sete meses após uma sequência de queixas sobre a operação realizada no Martim Moniz, em Lisboa, em dezembro de 2024.

O documento está assinado pelo provedor adjunto Ravi Afonso Pereira, no cargo desde 2022, que está a substituir a antiga provedora Maria Lúcia Amaral, atual ministra da Administração Interna, com a tutela da PSP.

"Nenhuma previsão foi especificamente feita por essa força de segurança quanto à realização de revistas pessoais, respetiva conformidade com a lei ou sequer um juízo de necessidade quanto à aplicação dessa medida no decurso da operação, consignando-se apenas, genericamente, providenciar as medidas de segurança necessárias à execução da operação e dos seus intervenientes. Em conformidade, também é notada a ausência de qualquer menção aos parâmetros de atuação vertidos na NEP acima identificada, tão pouco sendo levado a cabo esforço para contextualizar e fundamentar os procedimentos ali definidos no cenário da operação, tanto no momento da sua preparação, como após a mesma, aquando da elaboração pela PSP do Relatório final, datado de 24 de dezembro de 2024", é escrito no ofício publicado.

Para a Provedoria "este aspeto revela a desconsideração, no momento da planificação e no plano dos procedimentos policiais, não só pela valoração dos pressupostos que permitem a realização de revistas a pessoas -a par com a ponderação dos fatores que contribuem para a avaliação de risco subjacente à operação —, mas também de aspetos práticos da sua concretização, suficientemente circunscrita, como seja quanto ao número de polícias envolvidos, quem fica sujeito à medida, se e quais os meios técnicos a mobilizar".

Conclui então que "não é possível concluir sobre o(s) exato(s) pressuposto(s) que a PSP considerou verificado(s) para a realização de revistas pessoais na operação de 19 de dezembro de 2024, tendo por referente o que a NEP concretiza a esse respeito, ou seja, as próprias normas que essa força de segurança para si mesma corporizou e às quais se autovinculou. Esta é uma falha crítica, porque desvaloriza as garantias adequadas contra a arbitrariedade e o abuso de poder que a existência de regras e procedimentos predefinidos visa justamente acautelar".

Revela ainda que "não existe nenhum elemento na documentação que nos foi remetida, do qual seja possível retirar que aos visados tenha sido comunicado o motivo pelo qual estavam a ser identificados e revistados durante a operação, sendo a NEP muito clara ao dispor que a realização de revistas deve ser precedida de comunicação à pessoa revistada de qual o fundamento legal para a realização da mesma".

Mais: "é pressuposto deste tipo de revista a sua realização em local resguardado, sempre que possível (e desde que garantidas as condições de segurança de quem as realiza), sendo dever dos elementos policiais que as efetuam garantir o pudor e dignidade pessoal dos visados".

Desta forma, completa o provedor-adjunto, "analisados os elementos disponibilizados, outra conclusão não resta senão a de que a operação policial realizada na Rua do Benformoso não viu refletida, no expediente relativo à sua preparação e no tocante às revistas no terreno, qualquer ponderação prévia quanto à conformidade legal das mesmas no quadro da operação, incluindo uma predefinição quanto ao âmbito, métodos e aspetos técnicos da respetiva execução, desconhecendo as razões que motivaram a realização de revistas pessoais, não obstante uma justificação para as mesmas ter sido expressamente solicitada a essa Direção Nacional, este órgão do Estado não está em condições de afirmar que a utilização de revistas pessoais, nos exatos termos em que foram efetuadas, foi, in casu, justificada".

Em conclusão, no âmbito da atuação policial é exigida a interiorização forte de uma cultura de direitos humanos, com especial atenção aos membros mais vulneráveis da comunidade, designadamente pessoas migrantes. Neste domínio, as boas práticas incluem atuação colaborativa, comunicação e escuta efetivas, responsabilidade, abertura e transparência, tratamento do cidadão com respeito e atuação com integridade e empatia. É neste enquadramento que a já referida NEP prevê a proibição de realização de procedimentos de revista tendo por base critérios discriminatórios".

A Provedoria também questiona o facto de a PSP ter chamado a comunicação social.

"Na situação concreta, a PSP procedeu à divulgação da realização da operação junto dos órgãos de comunicação social. Em resposta a este órgão do Estado, V. Exa. esclareceu que tal divulgação ocorreu apenas após o início da operação, tendo sido acauteladas, por um lado, a não exposição dos cidadãos visados e, por outro, a permanência dos jornalistas fora do perímetro de segurança estabelecido. Neste patamar, e tendo em conta a dimensão da operação, sempre seria adequada uma reflexão prévia, de igual modo expressa na sua planificação, quanto às razões que determinama chamada ao local da comunicação social, qual o momento indicado para o fazer e modo de assegurar a reserva e dignidade dos visados".

As recomendações partem da análise dos direitos, liberdades e garantias consagrados na Constituição e nas regras internas da própria PSP. A Provedoria defende que os expedientes preparatórios das operações devem refletir, de forma explícita, a necessidade e os limites das revistas pessoais, definindo previamente o seu âmbito e os procedimentos técnicos a adotar.

A atuação policial na noite de 19 de dezembro foi alvo de críticas públicas, sobretudo por imagens que mostravam dezenas de pessoas encostadas a uma parede e com as mãos no ar, enquanto eram revistadas por agentes. A operação, classificada pela PSP como uma “operação especial de prevenção criminal”, resultou na identificação de 73 pessoas e na detenção de outras duas.

Além disso, foram apreendidos cerca de 100 artigos contrafeitos, mais de quatro mil euros em numerário, documentos suspeitos de ligação a imigração ilegal, um telemóvel furtado e nove armas (duas das quais armas brancas e nenhuma de fogo).

À época, a polícia justificou a operação com a necessidade de aumentar a segurança numa zona da cidade “onde frequentemente se registam ocorrências com armas” e fiscalizar utentes de transportes públicos e estabelecimentos de risco. Participaram vários meios, incluindo Equipas de Intervenção Rápida, investigação criminal, trânsito e fiscalização.

A Provedoria de Justiça reconhece que estas operações têm respaldo legal, mas lembra que a intervenção coerciva do Estado deve ser sempre fundamentada e proporcional, evitando práticas que possam pôr em causa a dignidade dos cidadãos. No ofício enviado à PSP, recomenda que as ordens de serviço passem a explicitar as razões para a realização de revistas e os critérios para a sua execução.

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Em resposta à polémica gerada, a PSP defendeu na ocasião que o contingente mobilizado era “o necessário” para a operação e que a revista a cidadãos e viaturas está prevista em operações desta natureza. Até ao momento, a polícia não comentou as recomendações da Provedoria de Justiça.

A Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) considerou que a operação especial de prevenção criminal da PSP que decorreu no Martim Moniz cumpriu “os preceitos legais, gerais e específicos”.

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