"Servir é um ato nobre. Escolas deviam ter a disciplina da cultura de serviço"
E hoje já sorriu para alguém? "Um dia uma senhora apresentou-se na consulta de Mario Alonso Puig, especialista de cirurgia geral e digestiva. A senhora sofria há três anos de problemas dolorosos no estômago e trazia consigo um volumoso dossiê com radiografias, endoscopia e análises. O médico (espanhol) percebeu que as dores se faziam sentir quando ela estava no trabalho. E passou a receita: "Vou pedir-lhe que durante os próximos 15 dias sorria ao seu chefe." Ela espantou-se: "Impossível. Ninguém consegue sorrir àquele homem." Quinze dias depois quando voltou à consulta a senhora disse que se sentia muito melhor: "Já nem tenho dores." Esta é uma das muitas histórias que Carla Carvalho Dias conta para explicar o quanto vale um sorriso quando se está a servir alguém, seja em que profissão for.
É licenciada em engenharia mecânica no ramo de termodinâmica e fluidos mas anda há 20 anos a promover a cultura do bom serviço em Portugal, com palestras e workshops, porque, salienta, "saber servir é acima de tudo um ato de inteligência e uma experiência que pode trazer elevados benefícios ao país e à própria pessoa".
Carla Dias, de 46 anos, fala de forma emotiva. O seu discurso é vivo, feito de muitos episódios que foi reunindo ao longo da sua carreira de public speaker.
Explica que tem como missão de vida "contribuir para a melhoria da cultura de serviço em Portugal, e - porque não? - no mundo", e foi isso que a levou a fundar a empresa Top Service Academy. "Crescemos com o pensamento que nos foi incutido de que não somos criados de ninguém, que não estamos nesta vida para servir ninguém. A cultura de bom serviço, o Top Service, é uma forma de estar na vida, tem necessariamente de começar internamente, em cada um, e depois traduz-se numa forma de estar em equipa e numa empresa. Um mau serviço leva a uma má reputação da empresa, à perda de clientes, e consequentemente a menos lucro, piores salários, pessoas frustradas e a um mau serviço", afirma Carla Dias, que se especializou em reestruturação e reorganização empresarial, tendo uma certificação internacional em coaching de indivíduos, equipas e organizações.
A transversalidade do conceito e do estilo de Top Service Talk está bem patente pela diversidade de quem a procura: sobretudo empresas privadas, de áreas que vão da indústria automóvel a agências de viagens, imobiliário, hotelaria, construção, telecomunicações, farmácias, veterinários. "Não são ações de motivação, porque não faço milagres... Tento fazer que algumas pessoas tomem consciência de que o caminho que estão a seguir não é o melhor nem para elas nem para o país. Procuro passar a mensagem do que é isto de cultura de serviço", diz, acrescentando que sente que hoje as empresas estão mais sólidas, investem mais no desenvolvimento dos recursos humanos e procuram que as suas equipas sejam "dinâmicas e que, sobretudo, tenham atitude".
Na sua perspetiva, o grande desafio de Portugal passa por uma educação em serviço, que pudesse ajudar a quebrar o paradigma de que "serviço não é subserviência". "Somos muito bons a servir, culturalmente bons anfitriões, mas não percebemos que servir não é só isso. É tudo o que fazemos e é um ato nobre. O país teria muito a ganhar se fosse criada nas escolas, logo nos primeiros anos de ensino, a disciplina de educação em serviço."
Mãe de dois filhos, um de 10 e outro de 14, Carla Dias conta como em casa o conceito já está enraizado: "Um dia destes, num estabelecimento comercial, o mais novo abriu a porta a uma senhora de idade e deixou-a passar. O gesto recebeu total indiferença. E ele comentou: "viste mãe, fui top service, a senhora é que não agradeceu." Isto cultiva-se. Não estou a dizer que as pessoas são mal educadas, só não tiveram essa formação, a de saber servir."
E é também aqui que entra o outro conceito desta especialista na questão motivacional: Smerve (smile and serve - sorria e sirva). "Assumi este manifesto, que considero essencial para que cada um de nós faça a diferença, nas mais variadas ações e formas de atuação, mesmo em casa, com os amigos ou no trabalho."
Se o turismo é uma das áreas que mais tem a ganhar com os "ensinamentos" de Carla Dias, as questões humanitárias não passam ao lado da sua mensagem. "Receber um refugiado com dignidade é acima de tudo dizer-lhe "tens aqui um sítio onde podes trabalhar de forma séria e refazer a vida". Isto também é cultura de serviço."
A terminar a conversa com o DN, impunha-se a questão: Como é que uma engenheira mecânica, especializada em termodinâmica e fluidos, começou a trabalhar na reestruturação de empresas? Carla Carvalho Dias mostra que já está habituada "à pergunta difícil". "Tirei o curso por paixão pela mecânica, ainda hoje tenho fixação por tudo o que são porcas, martelos, motores, aviões... e vejo que a vida toda é termodinâmica e fluidos e as organizações/empresas também. As leis da termodinâmica baseiam-se nos sistemas, no caos, ordem, na desordem, no regime turbulento. Essas leis estão presentes no momento em que existe um conjunto de indivíduos. Afinal, nós somos átomos, somos fluidos."