Sempre a subir até ao firmamento senhor Glaisher
Após 30 anos de apresentações mundo fora, o chinês Zhan Shichai, nascido em 1835 em Cantão, entregou os seus 2,35 metros de altura ao descanso dos areais da britânica região de Bournemouth. O “Gigante Gentil”, assim apelidado, procurava restabelecer-se da tuberculose que lhe fora diagnosticada. Falante de dez línguas, Zhan Shichai morreu em 1893, quatro meses após a sua esposa. Nascido em 1830 sem braços, o flamengo Charles François Felu alcançou considerável sucesso como pintor. Também poeta, Felu fez carreira nas belas-artes a reproduzir com os pés obras de mestres da pintura. O artista faleceu em 1900. Nada em 1835, a inglesa Mary Wheatland ganhou estatuto nacional. Ao aposentar-se aos 74 anos, Mary carregava o título de rainha das instrutoras de natação vitorianas. A “Mulher do Banho de Bognor” resgatara ao mar 30 vidas. Mary morreu aos 88 anos, em 1924. Alice Pleasance Liddell, nascida em 1852, inspiraria uma outra Alice na literatura, a protagonista do livro de 1865 Alice no País das Maravilhas, obra do britânico Lewis Carroll. O mote para o livro nascera de um pedido da jovem Alice, então com dez anos, no embalo de um piquenique. Alice instou o amigo Carroll a inventar um conto. Nasciam para as letras o Gato de Cheshire, o Chapeleiro Louco e a Rainha de Copas.
Zhan Shichai, Charles François Felu, Mary Wheatland, Alice Liddell, assim como o filósofo britânico John Stuart Mill, a atriz inglesa Fanny Josephs, o linguista nigeriano Samuel Ajayi Crowther, entre dezenas de outros notáveis, partilham um espaço físico comum, a sala 22 da londrina National Portrait Gallery. Todos se expuseram à objetiva de um engenho que maravilhava o mundo, a máquina fotográfica. No rol de ilustres que pousa para a eternidade na sala 22, destaca-se uma imagem a sépia que liberta os dois protagonistas dos grilhões do solo e os embrenha nas nuvens. O século XIX assistiu a uma multidão de balões de ar quente rumo aos céus. A ascensão na troposfera propiciou mais do que um novo contexto cénico sobre a Terra, espicaçou a ciência, nomeadamente as investigações atmosféricas.
“Antes da invenção do balão, a atmosfera era como uma lousa em branco sobre a qual eram projetadas fantasias e medos (...) A atmosfera também era considerada uma ´fábrica de morte’ - um lugar onde permaneciam vapores causadores de doenças (...) O sonho de viajar para o céu tornou-se realidade em 1783, com dois irmãos franceses, Joseph-Michel Montgolfier e Jacques-Étienne Montgolfier”, escreve a docente de história Jennifer Tucker no artigo “From Their Balloons, the First Aeronauts Transformed Our View of the World”, publicado sob a égide da Universidade de Wesleyan.
Em 1852, escrevia o jornalista Henry Mayhew na revista The Illustrated London News, a propósito de Londres vista do céu: “pessoas minúsculas parecem-nos alfinetes pretos presos numa almofada (...) enxameiam o estranho e incongruente amontoado de palácios e casas”. Na mesma época, outros cientistas apontavam o olhar em sentido inverso, descolando-o do solo em direção às nuvens. Entre os pioneiros da ciência meteorológica esteve o britânico, nascido em 1809, James Glaisher, também aeronauta e astrónomo. É Glaisher, apoiado por um dos pioneiros do balonismo, Henry Tracey Coxwell, que figura no pequeno cartão de visita de 90 mmpor 62 mm em mostra na National Portrait Gallery. A imagem de 1862 é assinada por outros vanguardistas do século XIX: Henry Negretti e Joseph Zambra, fundadores de uma empresa produtora de instrumentos científicos e óticos, uniram a fotografia ao conceito de expedição fotográfica. No ano de 1863, a Negretti e Zambra, sediada em Londres, encabeçou a primeira viagem aérea sobre Inglaterra com fins fotográficos.
A fotografia histórica com James Glaisher e Henry Tracey Coxwell, no embalo de um cesto de balão, foi captada no estúdio Negretti e Zambra. O momento recriou o feito alcançado a 5 de setembro de 1862. A dupla de balonistas batera nessa data o recorde mundial de altitude, uns honrosos 8.800 metros, embora algumas estimativas apontem para os 10.900 metros acima do nível do mar. Nesse ano, a Associação Britânica para o Avanço da Ciência intrometeu-se na alta atmosfera, à boleia de balão de ar quente. Coxwell construiu e tripulou o Mammoth; a James Glaisher coube levar para os céus o propósito de medir a temperatura e a pressão atmosférica, assim como a composição química do ar. A par, James registou a pulsação humana a diferentes altitudes antes de desmaiar devido à rarefação do ar.
Antes de ascenderem ao panteão, Glaisher e Coxwell subiram os degraus da fama terrena. O meteorologista afirmou-se por mais de 30 anos como superintendente do departamento de matemática e magnetismo do Observatório Real de Greenwich. Foi membro e presidente de ilustres instituições: Sociedade Meteorológica, Sociedade Aeronáutica da Grã-Bretanha, Royal Photographic Society e Royal Meteorological Society. Publicou dezenas de trabalhos de carácter científico e deixou como legado o livro de 1871 Travels in the Air (Viagens no Ar). Henry Tracey Coxwell tornara-se balonista profissional em 1848 com voos de sucesso, entre outras cidades, sobre Antuérpia, Berlim, Praga e Viena. Em 1870, chefiou expedições de cariz militar em balão nos céus de Colónia, no início da Guerra Franco-Prussiana.
Foram de paz as duas horas e meia de ascensão e descida do voo de 5 de setembro de 1862 sobre os campos ingleses em Wolverhampton. Um par de horas com temperaturas a alcançarem os -20 ºC, mas com uma singular perspetiva do mundo abaixo: “Uma inundação de luz solar forte irrompeu sobre nós com um lindo céu azul sem nuvens. Abaixo revelava-se um magnífico mar de nuvens, de superfície variada, com intermináveis colinas, outeiros e cadeias de montanhas, e com muitos tufos brancos”, escreveu Glaisher em Travels in the Air. Das grandes altitudes, o meteorologista trouxe novidades: descobriu que à medida que subiam aumentava a humidade na atmosfera e constatou que o vento sopra a diferentes velocidades em altitudes diversas.
James Glaisher, falecido em 1903, faria mais 21 voos em balão ao longo da sua vida. Em 2019, o cinema prestou-lhe homenagem sob a forma de uma ficção histórica. No filme Os Aeronautas, uma coprodução britânica e americana, protagoniza o ator Eddie Redmayne no papel de Glaisher. Henry Tracey Coxwell foi esquecido, substituído pela heroína Amelia Rennes, encarnada pela atriz Felicity Jones.