Sem-abrigo no Porto. Casos diminuíram, mas os pedidos de apoio multiplicam-se
Omovimento passa despercebido a quem se passeia pelo frenesim noturno da Baixa do Porto. Entre os turistas e transeuntes locais que se cruzam, para cima e para baixo, na Rua Passos Manuel, há, ao início da noite, uma sucessão de rostos anónimos que se desviam pelo beco que leva até à porta da cantina social da Associação Católica Internacional ao Serviço da Juventude Feminina. Longe dos olhares da multidão, ao fundo do beco forma-se a fila de pessoas que esperam por um lugar para se sentarem à mesa e desfrutarem, nalguns casos, da única refeição quente do dia. Notam-se rostos destratados, fragilizados, envelhecidos, sem-abrigo, mas também muitos outros com quem nos poderíamos ter cruzado minutos antes sem desconfiar minimamente do destino. Desde jovens de aspeto cuidado e com emprego ativo a alguns dos imigrantes que se instalaram em condições precárias na cidade nos últimos anos, o perfil da população em risco de exclusão social "está a mudar e a alargar-se cada vez mais para faixas até aqui pouco vistas", diz-nos Ana Salão, da associação CASA (Centro de Apoio ao Sem-Abrigo).
A realidade surpreendeu o Manuel, que esta noite integra a equipa do CASA - cujos voluntários asseguram diariamente os serviços dos jantares oferecidos nos três restaurantes solidários disponibilizados pela autarquia do Porto. Aos 61 anos, funcionário de uma empresa de consultoria, começou esta semana a fazer voluntariado corporativo e, embora estivesse ciente do "aumento de pessoas em situação de dificuldade", o choque direto com esta realidade impacta como "um murro no estômago" para o qual não há preparação.
Entre o que mais impressionou Manuel, realça, estão "as muitas pessoas que trabalham, têm emprego, e vêm cá jantar ou levar para casa". Ao fim de dois dias, ficou convencido: quer ser um voluntário permanente. "Já falei com a Ana e vou começar a vir todas as quartas-feiras." Enquanto o Manuel levanta uma mesa, a Sónia serve mais um tabuleiro. "Percebi que aqui faz sentido eu estar. Precisamos de sair da bolha do dia a dia e ver que há pessoas com problemas bem maiores do que os nossos e às quais podemos ser úteis de alguma forma", diz esta voluntária, técnica de marketing, que vai já "conhecendo alguns utentes e as suas histórias". "Há muitas pessoas aqui que precisam só de uma palavra amiga, de serem ouvidas, para melhorarem o seu dia."
Ana Salão diz que o CASA tem mais de 400 voluntários, 250 deles afetos ao projeto dos restaurantes solidários do Porto. Por estas alturas, a "disponibilidade multiplica-se" e esses números aumentam. Como brinca alguém ao lado, "todos querem ir de alma lavada para a Ceia de Natal". Para Ana, são bem-vindas todas as mãos que vêm por bem. Porque não há mesmo mãos a medir. Todas as noites, são servidas entre 500 e 600 refeições nos três restaurantes solidários, a solução adotada pela autarquia para "dar dignidade às refeições das pessoas em situação de sem-abrigo", deixando para trás a distribuição de comida na rua.
No interior, os voluntários da associação CASA servem as refeições contratadas pela Câmara. E há também equipas do GAS-Porto, Grupo de Ação Social do Porto, que fazem o acompanhamento social aos utentes, trabalhando a sinalização de novos casos e opções de reinserção. "Eu não sou sem-abrigo, mas se venho aqui é porque preciso", esclarece de pronto um homem de meia-idade. São exemplos "cada vez mais frequentes", num país em que, segundo os últimos indicadores do INE, mais de dois milhões de pessoas vivem em risco de pobreza ou de exclusão social.
Na noite seguinte, a Praça da Batalha enche-se com uma ação de rua da Igreja Cristã Casa do Leão. Entre orações, distribuem-se alimentos e mantimentos a dezenas de pessoas que ali acorrem. Em frente, está o Teatro Nacional de São João, em cujas laterais os sem-abrigo são já uma presença habitual. Ali ao lado, no Hospital do Terço, funciona outro dos restaurantes solidários da cidade - o mais antigo, aberto em 2017, e ainda hoje o mais procurado. É à saída, já na rua, que encontramos um par de jovens, imigrantes. Um deles não quer falar, o outro diz chamar-se Abdur. Fazem parte da crescente comunidade do Bangladesh no Porto. Numa mistura arranhada de português e inglês, Abdur diz que está cá há um ano. "Moto Uber", responde-nos sobre a profissão. Onde vive? "Numa casa, com um quarto", com mais "seis pessoas". "É muito difícil ter casa aqui", desabafa.
Alam Kazol, líder da comunidade do Bangladesh no Porto, diz que atualmente há mais de 4000 compatriotas seus a viver na cidade, "mais de metade deles com muitas dificuldades", reconhece. "Há muitos que não conseguem ter emprego, não conseguem ter casa. Hoje pede-se 1000 euros por um T1 no Porto. A maioria das pessoas não consegue pagar isso", lamenta.
Kazol recebe cada vez mais pedidos de ajuda. "Tentamos apoiar da melhor maneira, mas é muito complicado. Ainda ontem fui à câmara tentar arranjar solução para duas pessoas que não têm casa, mas disseram que não têm casa de renda acessível disponível." São tempos bem diferentes daqueles em que chegou cá, "há 31 anos". Quando chegou, também passou por vários trabalhos precários, como acontece hoje com os seus compatriotas. "Trabalhei numa residencial, na restauração, feiras, festas, bares." Mas, na altura, "com 150 euros por mês pagava uma casa", recorda.
Hoje é proprietário de uma loja de comércio e já tem netos portugueses, mas vê como "muito mais difícil" para quem chega agora do Bangladesh a Portugal repetir um percurso assim.
Se parece óbvio que o "número de pessoas a procurar algum tipo de apoio social tem crescido na cidade", como confirma Fernando Paulo, o vereador do Executivo de Rui Moreira com o pelouro da Coesão Social, já as estatísticas oficiais de sem-abrigo no Porto estão estabilizadas. As últimas divulgadas no âmbito da Estratégia Nacional de Integração de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (ENIPSSA), referentes a 2022, mostraram até um decréscimo. No final do ano passado, havia no Porto 647 sem-abrigo, entre pessoas sem casa (476) e sem teto (171), uma diminuição de 83 face ao ano anterior. E este ano, apesar de ainda não haver dados oficiais, o vereador garante que "não há tendência para crescer".
Fernando Paulo atribui esses resultados à estratégia local coordenada pela autarquia, em conjunto com mais de 65 entidades parceiras, no âmbito do NPISA - Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo. Um "trabalho em rede que permite atenuar e prevenir algumas situações de exclusão e pobreza", diz. E que foi reforçado em abril passado com a transferência para a autarquia de competências na área social, no âmbito da descentralização, permitindo a "gestão mais cuidada e próxima" dos processos de Rendimento Social de Inserção (RSI) e "o Serviço de Atendimento e Acompanhamento Social (SAAS)", por exemplo.
A crescente procura de apoios tem as causas identificadas um pouco por todo o país, mas com especial incidência nos principais centros urbanos, como Lisboa e Porto: "O aumento do custo de vida, a dificuldade de acesso a habitação e uma pressão crescente pelo aumento da imigração", resume o vereador. O que requer uma cada vez maior agilidade na resposta social.
Fernando Paulo sublinha um indicador muito significativo: "Um acréscimo substancial na procura das refeições escolares, pela ausência de recursos das famílias."
Nesta altura, revela, são distribuídas diariamente "cerca de 12 mil refeições escolares" e as cantinas das escolas funcionam durante todo o ano, inclusive nas férias escolares (exceto fins de semana). Para além disso, enumera, são servidas mais de duas mil refeições diárias nas cantinas e refeitórios sociais, distribuídos nove mil cabazes alimentares para famílias, apoiados 1500 agregados no âmbito do programa de apoio ao arrendamento, mais de 3000 famílias são seguidas pelo SAAS, há 7000 processos ativos de RSI e mais de 500 camas disponibilizadas ou comparticipadas nas diversas modalidades de alojamento.
Nas ruas do Porto, sem teto, estão maioritariamente homens, entre os 45 e os 64 anos, com problemas de álcool, drogas ou saúde mental - 435 dos 647 sem-abrigo referenciados na cidade no final de 2022 "consumiam álcool ou substâncias psicoativas ilícitas", diz o vereador portuense.
José Vieira encaixa nesse perfil-tipo. Quem passa na zona ocidental da cidade está habituado a vê-lo a pedir nuns semáforos entre a Galiza e o Campo Alegre, ao cimo da Rua D. Pedro V. Já anda por lá "há uns 15 anos", diz, quando nos recebe, à noite, no exterior da tenda onde dorme, junto a uma conhecida fonte resguardada por uma abóbada, uns bons metros abaixo do nível da rua e longe da vista de quem passa. Esta é uma paragem frequente nas rondas diárias da equipa de rua da autarquia, que acompanhamos nesta noite. O José conta-nos um pouco da sua história. A fala arrastada e difusa dificulta a comunicação, mas percebe-se que nasceu em Marco de Canaveses, mas foi viver para Santa Maria da Feira em miúdo, que foi padeiro até aos 20 anos, que se chateou com o patrão, com a ex-companheira, de quem diz ter um filho, e que se mudou para as ruas do Porto quando morreu a mãe. Os consumos de drogas terão começado cedo: "Uns charritos aos 18 anos, depois dos 20 comecei a consumir mais."
Susana Martinho, psicóloga que lidera a equipa multidisciplinar de rua na qual também se integram um enfermeiro e um educador de pares, refere que o trabalho efetuado com o José já vem desde 2019. Conseguiram inscrevê-lo como beneficiário do RSI e integrá-lo na rede de cuidados de saúde, acompanham-no a consultas de Oftalmologia e Medicina Dentária, mas, diz, o José continua "a recusar uma solução de alojamento social". "Tem aqui a sua rede de contactos, dá-se bem com as pessoas da vizinhança e fica perto dos locais onde vai abastecer-se para consumo", explica. Confrontado com o tema, admite: "Um quartinho? Se fosse aqui perto gostava. Para longe não quero".
Susana está preocupada com marcas de uma agressão e lembra-o que o vêm buscar na manhã seguinte para uma consulta, às 8.15. A hora desagrada-lhe, é a altura de maior movimento em frente às escolas da zona, que têm o último dia de aulas do período. "Os pais já prometeram que me davam alguma coisa amanhã. Não pode ser mais tarde?", questiona o José, que se despede de nós com uma oferta. "Não querem uma fatia de bolo-rei? Ofereceram-me um, mas eu não consigo comer tudo."
A resistência a sair da rua é um dos maiores obstáculos com que se depara a equipa de apoio de rua na abordagem aos sem teto. Uma resistência que aumenta à medida que aumenta também o tempo na rua. No antigo Hospital Joaquim Urbano, na zona oriental, funciona o Centro de Alojamento Temporário (CATJU) gerido pela autarquia para acolhimento de pessoas sem-abrigo. Este é um dos espaços onde são alojadas pessoas que as equipas conseguem tirar da rua, o único gerido pela autarquia.
É lá que encontramos Augusto Pinto, de jornal de baixo do braço, um hábito que cultiva "desde miúdo, quando lia o Joaquim Letria no Tal & Qual". Andou muitos anos na pesca da palmeta, no Atlântico Norte, emigrou, viveu em Paris, onde trabalhou 12 anos no Metro e "ia muito ao Bataclan", a sala de espetáculos que foi palco de um atentado terrorista em 2015. "Olhe, foi lá que vi, uma vez, um espetáculo daquela miúda que morreu há poucos dias, a Sara [Tavares]", assegura.
Toxicodependente com 60 anos e uma Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica, resolveu em 2019 que "queria morrer em Portugal". Viveu em quartos, onde pagou "200 euros por condições piores do que a rua", como atestam as fotos que guarda no telemóvel, e acabou mesmo a viver nas ruas passado um tempo, até ser encaminhado para o CATJU pelas técnicas de ação social.
Falamos com Augusto num corredor de acesso ao refeitório, de onde sai em passo acelerado a Pedrinha (é assim que quer ser identificada). "Consumo há 37 anos, estive presa quatro vezes, tenho 2 filhos e 3 netos", apressa-se a apresentar-se, entre um passo de dança improvisado, convidando-nos a ver o quarto que partilha com mais outras três utentes do centro. Na parede por trás da sua cama, um cachecol do FC Porto estendido; na mesinha de cabeceira, um peluche e um livro infantil recordam-na dos netos, a quem diz que "está em viagem", repetindo a tática que usava com os filhos para explicar a ausência do pai, sempre que ouviam um avião.
Nas oficinas de manualidades, encontramos Joaquim Dantas - "o Dantas", aqui no CATJU, onde está desde 2019. Passa boa parte do tempo no atelier a fazer restauros em folha de ouro. É, garantem, uma das poucas pessoas que conserva este saber, depois de ter trabalhado mais de 20 anos no restauro de arte sacra. Mostra-nos, com orgulho, uma mesa e um banco que foram as suas últimas "obras de arte", enaltecem as técnicas Alice Tavares e Ana Amaral.
Toxicodependente com 61 anos, viveu "muitos anos na rua" depois de os pais terem morrido, conta. "Vivia de estacionar carros por aí, mas nunca roubei e nunca fui preso", garante. Agora é aqui, entre as folhas de ouro e o material que vai encontrando na rua para restaurar, que se sente "bem". "Na rua passei muito, levei muita porrada. Viver na rua é para os valentes", diz.
Numa box ao lado, dois cães ladram à nossa passagem. Uma das valências do CATJU é precisamente acolher animais, "elementos afetivos muito importantes para muitos dos sem-abrigo que vivem na rua. Sem os animais, muitos não aceitariam vir", assinala Joana Pardalejo, chefe de unidade do gabinete de coesão do CATJU, que lembra o caso de um utente que "dormiu na box com os cães nas primeiras noites por não querer separar-se deles".
Joana reforça o diagnóstico mais comum a esta população: "Dependências, de álcool ou drogas, e problemas de saúde mental." E lamenta a falta de respostas para dar seguimento à maioria destes casos, o que faz com que o centro, que devia ser temporário, se transforme muitas vezes em solução de longa duração. "O tempo médio de permanência recomendado nestes centros é de três a seis meses. Mas temos aqui pessoas há cinco anos, porque não têm mais para onde ir. Não os vamos por na rua outra vez."
Entre as entidades que integram a rede de apoio aos sem-abrigo na cidade estão os Albergues Noturnos do Porto, associação fundada já com este propósito ainda no tempo da monarquia, em 1884, no reinado de D. Luís. "A missão, infelizmente, continua a ser a mesma", diz, Filipe Costa Lima, arquiteto que há seis anos preside à direção dos Albergues Noturnos. "Infelizmente, porque o problema não desapareceu", reforça. Também aqui sentem a pressão a aumentar na procura de respostas sociais para a população em necessidade, num fenómeno "cada vez mais complexo" que não pode ser resumido "às estatísticas oficiais".
Os Albergues Noturno dispõem de dois abrigos temporários, um na sede, junto à Praça da República, com lotação para 75 camas (60 para homens e 15 para mulheres), e outro em Campanhã, com 22 camas, este só para homens - de longe, o género mais representado entre os sem-abrigo. "E estamos sempre cheios", refere.
O objetivo de erradicar o fenómeno de pessoas a viver na rua, como verbalizou o presidente Marcelo Rebelo de Sousa, parece uma utopia distante, mas Filipe Costa Lima agradece esse momento. "Foi importante, porque chamou a atenção para o fenómeno e sei que teve grande repercussão no esforço que ministérios, entidades e autarquias têm feito para melhorar as respostas sociais. Sem isso estaríamos hoje bem pior, acredito".
O vereador da Coesão Social na CM Porto, Fernando Paulo, diz ao DN que só falta a resposta do Governo para abrir, no Joaquim Urbano, uma estrutura residencial de baixo limiar, no próximo ano. A estrutura terá capacidade para albergar cinco pessoas de centros de acolhimento à espera de um lar, o que permitirá uma maior "rotatividade" no centro de acolhimento temporário. Ainda assim, sabe que é uma medida insuficiente para a dimensão do problema.
"A integração destas pessoas não pode ser resolvida apenas com respostas sociais", diz. "Isso é só um penso rápido. Esconde a ferida, mas não a resolve." Fernando Paulo reclama uma ação "mais ampla, preventiva, em rede, a nível nacional", que permita resolver os principais problemas de exclusão social: emprego digno, habitação e saúde mental.
Pede, por exemplo, "um aumento de vagas nas estruturas de cuidados continuados de saúde mental, um fenómeno muito premente entre a população sem-abrigo, para que muitos desses utentes não fiquem a ocupar vagas em estruturas de acolhimento temporário que não são adequadas para esse tipo de resposta."
Faltam também, aponta, "estruturas residenciais com equipas específicas para a população toxicodependente". Além de "mais camas em estruturas residenciais para pessoas idosas", os lares onde as vagas escasseiam e a resposta demora.
A "demora na legalização de imigrantes" é outro problema que "coloca sérios obstáculos à integração e apoio a dar a essas pessoas". "A política de imigração tem de ser acompanhada de políticas de apoio e integração dessas pessoas. Caso contrário, como assistimos, amontoam-se problemas e entope-se a capacidade de resposta", refere.
E, claro, a "falta de respostas na habitação", que impede a agilização de muitas outras respostas. "É preciso um esforço escalado a nível nacional para resolver a questão da habitação", diz, apontando o Porto como um bom exemplo. "Temos na cidade 13% de oferta pública de habitação. A média nacional ronda os 2%. Se fosse próxima da que existe no Porto já resolveria muitos problemas."