Seca e onda de calor potenciam risco de fogo
A partir desta terça-feira o país entra em Alerta Vermelho. O Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) decidiu ativar o aviso - o mais elevado da escala - para vários distritos, a maioria no interior, em função da onda de calor esperada para os próximos dias, que deverá prolongar-se pelo menos até ao fim de semana. A decisão, tomada ao final do dia de ontem, apenas acompanhou todas aquelas que o governo já tomara durante o fim de semana - a declaração do Estado de Contingência -, com tom de preocupação. E antes mesmo de ser anunciada a ativação do Plano de Contingência, o Presidente da República deu o mote: são os fogos que preocupam tudo e todos, especialmente a Região Centro, onde durante o fim de semana já deflagraram alguns, com destaque para os concelhos de Ourém e Ansião.
António Bento Gonçalves anda há vários anos a alertar para a frequência cada vez maior com que situações destas vão acontecer. "Isto não me surpreende a mim, nem a quem estude minimamente estas situações", afirma ao DN o diretor do Departamento de Geografia da Universidade do Minho, que integra um curso de Proteção Civil e Gestão do Território. "Com esta desregulação climática, estamos a assistir a estes eventos extremos cada vez mais frequentes e com uma intensidade e capacidade destrutiva muito superior. Por isso, quando se conjugam fatores como os que estamos a assistir - temperaturas superiores acima dos 35º, humidades relativas baixas, em que o país vive uma seca hidrológica já há algumas semanas (e nalguns casos seca agrícola) -, não pode haver surpresas", considera o investigador.
Bento Gonçalves junta ainda um outro fator a esta "tempestade perfeita", que "não surpreende, mas entristece": "Como temos também esta grande lacuna em termos de cultura de segurança e de autoproteção, qualquer falha pode, infelizmente, dar situações como aquelas a que já estamos a assistir há três dias na Região Centro."
Apesar de residir no Minho, o professor, também presidente da Associação Portuguesa de Geógrafos, é natural de Pampilhosa da Serra, na Região Centro, aquela que, por estes dias, mais preocupa os bombeiros e a Proteção Civil. Percorre com frequência os caminhos que o fogo de 2017 destruiu. "Se, em termos de combate e socorro, estamos melhor preparados, fez-se um esforço nesse sentido, em tudo o que nos podia permitir que [esse combate] fosse mais aligeirado e não fosse necessário gastar tanto dinheiro e tantos recursos, ativar o mecanismo europeu de Proteção Civil - ou seja, investir antes -, aí tem-se falhado largamente. Não se tem investigado na coesão territorial, nem na gestão florestal. Quem percorre a Região Centro percebe perfeitamente que já temos condições para se repetir o que aconteceu em 2017, em termos de fogo", afirma António Bento Gonçalves, que sublinha ainda um outro aspeto: acelerar o processo de cadastro florestal. "É muito importante, para sabermos o que é que pertence a quem, para se poder gerir e até valorizar os proprietários florestais em vez de os estigmatizar. Enquanto não se fizer isso não avançamos. Depois há ainda outro problema, que é continuarmos a apostar na penalização de quem não faz, em vez de se apostar no incentivo e no apoio a quem a faz. Enquanto não virmos os proprietários florestais como prestadores de serviços e sempre como absentistas, não avançamos para a educação florestal e vamos continuar a viver estas situações".
Helena Freitas alerta há muitos anos para a gestão dos recursos naturais e do território, "mas a verdade é que temos sido muito perdulários e muito pouco conscientes do que é a realidade. Vamos ter episódios de calor cada vez mais frequentes, temos uma floresta muito frágil e muito suscetível - porque para além da alteração do regime hídrico, condiciona muito a resposta das árvores ", sublinha a professora catedrática na área da Biodiversidade e Ecologia no Departamento de Ciências da Vida da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra.
Consegue ligar num triângulo a composição florestal desorganizada (com número crescente de espécies invasoras, que não estão preparadas para responder de forma resiliente ao fogo), a questão da água (que considera dramática) e o ordenamento. "Para além disto parece que estamos numa guerra com a floresta: antigamente tínhamos bom tempo e ficávamos contentes, íamos para a praia. Agora quando temos bom tempo ficamos apreensivos, porque vamos ter fogos. Parece que andamos aqui num campo de batalha. Sobretudo nos setores rurais, associamos logo o bom tempo à emergência do risco de fogo. Isto é dramático, porque nos desliga cada vez mais dos territórios e dos bens que precisamos, dos nossos recursos", sublinha Helena Freitas.
Já António Bento Gonçalves lembra que "ondas de calor sempre existiram", mas o território era outro. "Ainda ontem, por mero acaso, vi um jornal de 1944, em que em Coimbra estiveram 45,6 graus e com situações calamitosas. Isso sempre aconteceu e continuará a acontecer. Agora, a frequência com que vai acontecer é que é muito superior. Arriscamo-nos a ser todos os anos, sem exceção", conclui.
Perante o cenário traçado, o primeiro-ministro - que ontem visitou diversas estruturas da Proteção Civil pelo país - considera que ao cidadão resta ser previdente. "Só não há incêndios se a mãozinha humana não provocar incêndios. Portanto, aquilo que temos de fazer é mesmo evitar o incêndio. Cada um de nós tem de ter o cuidado necessário, como tivemos na pandemia, temos de ter agora para não provocar os incêndios que depois atingem todos", disse, em declarações à Lusa, enquanto considerava que o país está hoje "mais preparado para combater incêndios" do que estava em 2017.
António Nunes, presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, garantiu ao DN que, nos próximos dias, "os bombeiros estão preparados para responder", até porque perante a declaração do Estado de Calamidade, é possível mais disponibilidade entre aqueles que são voluntários.
De resto, "do ponto de vista de bombeiros e viaturas de combate a incêndios, a situação está na sua máxima disponibilidade. O que precisamos é que haja uma coordenação muito boa para que os meios sejam aplicados no estritamente necessário para resolver todas as situações", afirma António Nunes, frisando que, "a ser verdade o que nos apontam para os próximos dias, não podemos desperdiçar meios. Porque eles não são ilimitados".