"Se pudesse, tirava-lhe isso... mas não posso"

Em 2008, a repórter Céu Neves saiu para a rua vestida com uma burka. Aqui fica a reportagem publicada nas páginas do DN. Como seria hoje?

Na Pele de... uma muçulmana de 'burka'. Uma religião que, supostamente, abracei pela via da união com um paquistanês e cuja prática decidi levar ao extremo ao usar uma 'burka'. Algo nunca visto em Portugal. Poucos ficaram indiferentes à minha passagem, embora muitos o tenham disfarçado. Tolerância, mas também comentários críticos, nomeadamente que o Governo não deveria permitir trajes tão marcadamente religiosos.

"Anda assim vestida... porquê?" É a minha religião, respondo. " E qual é?". Muçulmana. "A que é que isso a leva?" A uma vida melhor. "Porquê, se é portuguesa?" Casei com um paquistanês. "Esse sempre foi o mal das mulheres. Ir na conversa dos homens!", comenta a mulher para a amiga. Há muito que ultrapassou os 50 anos e não consegue perceber porque é que alguém tem que andar coberto da cabeça aos pés. E, ainda menos, que o faça por causa de um homem, mesmo que o amor seja a justificação.

O episódio passa-se em Viana do Castelo, onde acabo de ser impedida de entrar no Museu do Ouro/Ourivesaria Freitas com a desculpa de que a porta não abre. A atitude é aprovada pelas duas mulheres. "Claro, eles não podem deixar entrar as pessoas com a cara tapada. O que é que ela quer?" Ela, sou eu. Uma mulher coberta com uma burka e que nem os olhos permite que os outros vejam. Em contrapartida, eu posso fitar o olhar de quem me observava através de uma venda em renda. Uma rede que alguém comenta para o Paulo Spranger, o fotógrafo que me acompanha ao longe: "Cuidado com as fotos, olhe que vê-se tudo. É pior do que a malha da sardinha!"

O comentário das duas mulheres permite-me meter conversa. É que as pessoas, mesmo aquelas que ficam mais incrédulas à minha passagem, não me abordam directamente, preferindo fazer comentários para os acompanhantes, às vezes até, para o ar. Apenas um homem, no Porto, me pergunta: "Estás com frio?"

São as mulheres que reagem de forma mais sentida, talvez mais cúmplice, mesmo quando expressam revolta. Parece-me. Como aquela com quem me cruzo numa carruagem do metro, em S. Sebastião da Pedreira, Lisboa, que lança: "Se pudesse tirava-lhe isso, mas não posso!" Ou outra, em Viana do Castelo, que comenta: "Aquela ainda está pior do que eu!" Ou uma outra que se prontifica a explicar como devo validar o bilhete de metro na estação de Campanhã, no Porto, sem eu nada pedir.

E a senhora que está sentada à minha frente no Alfa Pendular que me leva de Lisboa ao Porto, muito naturalmente, conta-me os desaires do dia e a sua história. Foi operada às cataratas em Lisboa. Correu mal e falaram-lhe num oftalmologista excepcional em Coimbra, que a tem seguido nos últimos tempos. Quando se prepara para comer um queque, pergunta: "É servida?", Respondo e sorrio. Esqueço-me completamente que não poderá perceber a minha expressão.

Ourivesarias

O Museu do Ouro tem um papel na porta fechada por cima da campainha: "Os clientes ficaram muito traumatizados no último assalto [em Setembro]". Toco à campainha, mas não consigo entrar. Nem mesmo depois de observar que há clientes no interior da ourivesaria. "Entraram pelas traseiras, mas diga lá o que quer que eu posso explicar aqui fora", responde. E explica.

Não me ver a cara é o que mais incomoda as pessoas. É a justificação para não ser atendida nos ourives de Viana do Castelo. "Não atendo pessoas de cara tapada, o meu colega pode atender se quiser", dizem-me na Ourivesaria Venâncio. Sou atendida pelo colega, não sem que antes tenha o cuidado de fechar a porta do armazém.

A funcionária da Ourivesaria Pires mal ensaia uma explicação sobre as arrecadas (brincos) de Viana e logo intervém a patroa. "É melhor sair. Não atendemos pessoas com a cara tapada. Não sei se a senhora tem aí uma pistola. Tem de compreender, este é um negócio de muito dinheiro." De nada vale retorquir, inclusive dizer que me pode revistar. Os clientes intervêm para concordar, tal como nas outras ourivesarias. "É proibido andar com a cara tapada. Ainda se arrisca a que os polícias venham ter consigo. Ali em cima olharam muito para si. Não devia andar assim", aconselha uma velhinha.

Quis testar se a recusa se alarga a todo o comércio de Viana do Castelo. Na residencial Viana do Mar dizem-me que não têm quartos disponíveis, nem sabem quando vão ter. De z minutos depois, o Paulo Spranger faz a mesma pergunta e a disponibilidade é total. O resto corre de forma normal. Vendem-me comprimidos na farmácia, mostram--me os trajes e as socas nas loja de artesanato. Atendem-me na esplanada da Praça da República, se bem que depois de uma recusa. "Quem vai atender a mesa 15? Eu não !", diz uma empregada, algo arisca. Bebo uma água e tomo notas (facto que as pessoas não podem ver). Ouço comentários, incluindo os de uma mesa com rapazes, um dos quais tem vários piercings e tatuagens. É impossível não ouvir: "É homem ou mulher? É homem, não vês? Que língua é que fala?"

É em Viana do Castelo que um operário atira de um andaime: "Olha, o Saddam!" E um grupo de jovens trauteia: "Alá! Alá! Alá!"

Centro da Mouraria

As reacções à minha passagem são as mais diversas. Calculo que poucos terão ficado indiferentes. Alguns sítios, até me surpreendem. O que não é de admirar, quando se parte com alguma expectativa em relação aos efeitos da multiculturalidade em Portugal, sobretudo em Lisboa. É o caso do Centro Comercial da Mouraria, no Martim Moniz, um espaço de cruzamento de línguas, culturas e religiões e que se renova consoante os fluxos imigratórios do País. Agora, as lojas são exploradas por oriundos da Ásia, sobretudo chineses e indianos. Também haverá naturais do Bangladesh e do Paquistão. Já os clientes são de muitas outras origens.

Risos, gargalhadas e comentários em voz alta. Uma comerciante chinesa que foge de mim. Clientes de etnia cigana, uma das quais coberta de luto da cabeça aos pés, que dizem que os estou a perseguir. "Que horror! Olha para ela! Ela? Não sabes se é homem ou mulher! É mulher, não vês os pés!"

Áreas comerciais

Uma das situações mais hilariantes, confesso, passou-se num loja da Zara. Entro e logo os olhares se voltam na minha direcção, uma reacção a que começo estar habituada. Pego num vestido com motivos étnicos suficientemente comprido e decente. Como ninguém me pergunta o que pretendo, dirijo-me a um empregado que dobra as t-shirts de uma mesa feita expositor. À medida que me aproximo, afasta-se disfarçadamente. Sigo-o. Damos duas voltas. À terceira, o rapaz dirige-se a outra mesa e sussurra para a colega. Passo a seguir dois empregados, até que a rapariga grita: "Sr. Fernando, está aqui uma senhora atrás de mim!" É o segurança do piso a quem explico: pretendo ver se têm umas calças de malha. Ele passa a palavra, sorrindo: "A senhora só quer ser atendida." A jovem pergunta-me o que quero, denunciando nervosismo, e sai por uma porta. Não é ela quem me traz a peça de roupa. Já na secção de lingerie do El Corte Inglês, a funcionária, muito naturalmente, mostra os artigos.

Bancos

Abrir uma conta é um processo aparentemente simples para o cliente-tipo dos bancos. As diferenças é que são mais difíceis de enquadrar no sistema. Por exemplo, alguém que não tem um contrato de trabalho e residência fixa em Portugal e, ainda, por cima se cobre com uma burka. Na Caixa Geral dos Depósitos, em Lisboa, a funcionária explica e dá-me um papel com a lista de documentos que preciso de apresentar. E sublinha: "Tem de trazer o BI e tem que destapar a cara. Sabe que as pessoas não podem entrar aqui com a cara tapada, nem sequer com um boné. Não o exigimos à senhora porque é a sua religião", justifica, garantindo-me que posso ser identificada numa sala e por uma mulher.

Com os funcionários da mesma instituição bancária, mas no Porto, a reacção é diferente. Mal se apercebem da minha presença, passam a palavra para estarem atentos à movimentação. Sobretudo o sr. Paulo que não tira os olhos de mim. O que ele não sabe é que estou a fazer o mesmo. Tenho a senha B, informações, que raramente sai, o que me obriga a permanecer mais tempo nas instalações do que queria. E que faz aumentar o nervosismo dos bancários. Até que uma senhora com uma mala, e que eu pensei tratar-se de uma cliente, me explica que é funcionária e pergunta em inglês: "O que é que a senhora pretende? Ser atendida respondo. "E porque é que não foi?" Nunca mais chamam o meu número. "Não há problema, a minha colega atende-a já", continua em inglês, apesar de eu dizer que era portuguesa. A dita colega explica-me o que é preciso para abrir uma conta e frisa: "Temos que a identificar." E disponibiliza-se para ser a própria a fazê-lo, o que me leva a perguntar-lhe o nome. Responde e pergunta: " E a senhora como é que se chama?" Fátima (escolhi este nome por ser o da filha de Maomé). "E pode mostrar-me os seus papéis?" Recuso fazê-lo, justificando que não a vejo a exigir o mesmo aos outros clientes. É o único sítio onde me pedem os documentos.

Loja do Cidadão

Um Bilhete de Identidade não pode ter uma foto de alguém com a cara totalmente tapada. Parece óbvio, mas mesmo assim só à terceira pergunta e já no guichet do Registo Civil é que me dizem preto no branco que não é possível. Isto depois de uma utente me interpelar porque não estar na fila correcta e a quem justifico: só preciso de saber se posso tirar um BI com a burka. Ela diz logo: "É claro que não pode. A lei portuguesa não permite que as pessoas andem mascaradas, não sabe disso?" Argumento: mas não estou mascarada. "Está bem, é verdade, e ainda por cima não é portuguesa. Mas acho que mesmo assim não pode."

Espaços públicos

No Aeroporto da Portela, em Lisboa, as pessoas reagem o mais naturalmente possível à minha presença, embora assumindo as atitudes idênticas às dos utentes do metro, do comboio e até dos peões. As pessoas levam automaticamente a mão à bagagem e à mala, não se sentam no mesmo sítio que eu e, quando já lá estão, aproveitam a primeira oportunidade para se levantar e afastar-se. Na rua, às vezes, passam para o outro lado do passeio. E quando os sigo não param de olhar para trás. Quem está no interior das lojas vem ver o que se passa. Um corredor de mesas no El Corte Inglês fica vazio enquanto almoço. À frente, uma mulher, observa para um grupo de jovens: "Já viram quem está na mesa atrás? Pelas unhas pintadas, deve ser paquistanesa. Andam todas tapadas, mas estão pintadas e cobertas de jóias por baixo." E vai tecendo considerações sobre esta Europa, "muito liberal".

Nos táxis, confirmo uma suspeita: estão habituados a ver de tudo. Transportam-me com a maior das naturalidades. E até penso que motorista com quem viajo do aeroporto para o centro da cidade terá sido dos poucas pessoas a duvidar das minhas motivações religiosas. Outro taxista acha por bem explicar-me a mecânica do concurso da Rádio Renascença que está a ouvir. Isto enquanto eu me desembaraço das minhas vestes de muçulmana. À saída diz: "Se quiser concorrer, envia uma msn e depois diz a palavra-chave!"

Artigo publicado originalmente em 2008 e de acordo com a antiga grafia

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