"Se nada se fizer, daqui a cinco anos as faculdades estão na situação em que o SNS está agora"

Helena Canhão assumiu a presidência do Conselho das Escolas Médicas Portuguesas em janeiro deste ano para um mandato até final de 2024. E diz ter várias preocupações, uma delas o subfinanciamento das faculdades de medicina, que pode degradar a qualidade do ensino e começar a desviar docentes para as privadas, sobretudo os que recebem 100 a 200 euros ou que trabalham voluntariamente.

Helena Canhão é muito clara quando diz que um Curso de Medicina não é igual a qualquer outro, sobretudo porque é ministrado de forma bastante diferente. Tem características muito próprias, uma delas o ter de ser lecionado na maior parte do tempo em unidades de saúde, hospitalares e de cuidados primários, centros de saúde. Tem características que, talvez, a própria tutela não entenda. Daí que uma das primeiras prioridades da nova presidente do Conselho de Escolas Médicas Portuguesas (CEMP), cargo assumido em janeiro por um período de dois anos, seja a de explicar a quem de direito como é que o ensino da Medicina é feito e o que é necessário para o melhorar. Helena Canhão, que é também diretora da Nova Medical School, Universidade Nova de Lisboa, assume que uma das principais preocupações do CEMP é a perda de qualidade na formação médica. Isto porque, diz, "não podemos esquecer que estamos a formar as pessoas que no futuro vão tratar de nós". E defende mudanças, uma delas a internacionalização. Ou seja, que as faculdades públicas de Medicina possam receber alunos estrangeiros, já que esta pode ser a via para mais receitas e para mais inovação. A questão que agora se coloca é o que querem os decisores políticos para o ensino público da Medicina?

Assumiu a presidência do Conselho das Escolas Médicas Portuguesas (CEMP) recentemente. Qual é a sua principal preocupação e qual vai ser a sua prioridade?

Primeiro tenho de explicar que o Conselho das Escolas Médicas Portuguesas representa as várias faculdades públicas de Medicina do país e que as preocupações são comuns a todos os diretores, mas a nossa principal preocupação é a qualidade do ensino médico em Portugal. Como vamos formar os estudantes que vêm dos liceus com 18 anos, a maior parte deles bons alunos, mas apenas com a preparação do Secundário? A nossa missão é pegar neles e dar-lhes, durante os seis anos, a melhor formação, com a melhor qualidade possível a nível técnico, humano e de relação, e prepará-los de forma a que depois se possam ir atualizando ao longo de toda a vida.

E a prioridade em que vão trabalhar nos próximos tempos?

A nossa missão é formar com qualidade e temos de ter instrumentos para que tal seja possível. Portanto, uma das nossas primeiras prioridades é trabalhar com a tutela do Ensino Superior para que esta perceba o que é uma Faculdade de Medicina pública e como formamos os nossos estudantes durante os seis anos. Recentemente tivemos uma reunião com a sr.ª ministra e com o sr. secretário de Estado em que estivemos a explicar que o ensino da Medicina é diferente de qualquer outro curso. Começa logo pelo facto de nos outros cursos os alunos serem ensinados, a maior parte do tempo, no edifício da faculdade - no Curso de Medicina isso não acontece. O aluno tem esse tipo de formação nos dois primeiros anos, mas nos quatro anos seguintes a formação já é dada em ambiente hospitalar ou nos centros de saúde, o que faz com que, obviamente, a forma como funciona o SNS também influencie a forma como damos aulas. Por exemplo, num outro curso as turmas são de 20, 30 ou 40 alunos, em Medicina, quando passamos a ensinar nas enfermaria, só podemos ter dois a três alunos por docente. A logística é muito diferente e é preciso que haja uma melhor comunicação entre os ministérios do Ensino Superior e da Saúde para melhorar o nosso ensino. Portanto, a nossa prioridade vai ser fazer com que as duas tutelas percebam o que é preciso para termos um ensino de Medicina com qualidade.

O que pretendem? Que a tutela olhe para o Curso de Medicina de forma diferente da que olha para qualquer outro curso?

Essa é uma parte muito importante. Um Curso de Medicina exige muita tecnologia, usamos muitos simuladores. O aluno tem de começar por palpar o fígado ou o baço num boneco, tem de ouvir primeiro sons cardíacos num simulador, para perceber o que é um sopro cardíaco e o que não é. Os nossos alunos começam a ter aulas em simuladores logo no 2.º ano, com o desenvolvimento tecnológico que existe hoje não faz sentido que vão para uma enfermaria no 3.º ou no 4.º ano sem nunca terem feito auscultação em simuladores. Mas há outras coisas. Por exemplo, o lado da comunicação: quando fiz o meu curso ninguém me ensinou como comunicar uma má notícia à família. Hoje não faz sentido acabar o curso sem se ter aprendido técnicas de comunicação. É um erro enorme. Estamos a fazer isso com atores, que falam com os alunos e lhes dão as técnicas de como se devem comportar.

"O valor da propina é de 697 euros por ano durante os seis anos e o financiamento do Estado por cada aluno é de cerca de cinco a seis mil euros, mas o verdadeiro custo de cada aluno é de 16 mil euros por ano, o que significa que as faculdades têm um défice de cerca de 10 mil euros por cada aluno ao ano."

O que quer dizer, concretamente?

Que houve uma mudança no ensino e, se as faculdades mantiverem um financiamento muito baixo, não conseguirão ter os instrumentos necessários e isso irá dificultar o desenvolvimento e a modernização que queremos para o ensino.

O subfinanciamento das escolas médicas não permite melhorar a qualidade do ensino?

Há um défice muito grande entre o custo de um aluno de medicina e o que o Estado financia. O valor da propina é de 697 euros por ano durante os seis anos e o financiamento do Estado por cada aluno é de cerca de cinco a seis mil euros, mas o verdadeiro custo de cada aluno é de 16 mil euros por ano, o que significa que as faculdades têm um défice de cerca de 10 mil euros por cada aluno ao ano. As faculdades estão muito sobrecarregadas e têm de encontrar receitas próprias e outra forma de poder contrabalançar este subfinanciamento, porque quantos mais alunos temos maior será o défice. Neste momento, temos poucas ferramentas para aumentar as receitas: não podemos ter um valor diferente de propina, não podemos diminuir ou aumentar as vagas, porque estas são definidas pelo ministério, e também não podemos ter alunos internacionais, que teriam uma propina mais elevada e seria uma forma de contrabalançar os custos.

O Ministério do Ensino Superior não tem noção destes custos?

Não tem muita, muita noção disto. Por exemplo, não é só o custo dos alunos. Temos docentes que dão aulas sem receber, são médicos que estão nos hospitais, que recebem alunos, mas que não têm um ordenado. Outros estão dedicados à docência só a 5% ou a 10% e recebem um valor de 100 a 200 euros por mês. E o que está a acontecer é que há uns anos era mais fácil conseguirmos ter médicos a dar aulas, porque os profissionais consideravam que fazia parte da sua missão, e hoje já não é assim. Os médicos tinham mais disponibilidade, não havia tanta pressão no SNS e até os próprios doentes tinham mais disponibilidade para contribuírem para o ensino. Tudo isto está a dificultar o ensino da Medicina. Todos os anos precisamos de renovar entre 100 a 200 docentes que desistem de dar aulas e temos de ir à procura de outros.

Isso quer dizer que o estado atual do SNS está a prejudicar a formação dos novos médicos?

A rutura no SNS acaba por se repercutir na formação pré-graduada e pós-graduada. É para isto que temos tentado alertar as tutelas. O esforço já é muito grande no SNS e isso já passa para as Faculdades de Medicina. Se não percebermos que a situação se está a degradar, se nada fizermos, daqui a cinco anos as Faculdades de Medicina estão na situação em que está agora o SNS, o que é preocupante, pois é a formação das pessoas que nos vão tratar que está em causa.

"A relação entre os ministérios do Ensino Superior e da Saúde é muito importante, porque o que queremos todos, como população, é formar bons médicos e profissionais de Saúde, que fiquem em Portugal e que contribuam para nos tratar e cuidar."

O que espera dos decisores políticos, que mensagem lhes deixava?

Diria que a relação entre os ministérios do Ensino Superior e da Saúde é muito importante, porque o que queremos todos, como população, é formar bons médicos e profissionais de Saúde, que fiquem em Portugal e que contribuam para nos tratar e cuidar. Temos uma missão, mas não serve de nada formarmos médicos se depois estes não são retidos no país. A questão dos Cursos de Medicina tem de ser vista em conjunto com o SNS. As faculdades precisam que o governo perceba que o Curso de Medicina tem de ter um financiamento que suprima o défice de 10 mil euros por aluno todos os anos e precisam que as carreiras dos docentes no SNS também sejam reconhecidas, para que estes continuem a querer ensinar. E, por outro lado, é preciso que o próprio SNS ofereça condições. É preciso melhorar o sistema como um todo, só assim tudo melhora: o ensino, a formação e os cuidados de saúde aos doentes.

Falou nos alunos internacionais. Há muitos a querem vir fazer o curso em Portugal?

Temos um ensino muito prático. Daí estarmos a sofrer as consequências do que se passa no SNS. Ao contrário de outros países da Europa, os alunos começam a ter o contacto com os serviços de saúde muito cedo, o que torna o nosso ensino muito apelativo. Temos alunos de países europeus que reconhecem o nosso ensino, mas temos muitos outros alunos de países como Brasil e dos PALOP, com enorme interesse em fazer o curso em Portugal. Até porque, um diploma do nosso país permite a abertura para o mercado médico europeu. Claro que o que se pretende, não é que os alunos estrangeiros tirem o lugar aos alunos portugueses, mas a propina de um estudante internacional, que pode ir até aos 20 mil euros, ajudaria na formação de quatro a cinco portugueses. A internacionalização das escolas médicas ajudaria o Estado, as famílias e estimularia a trazer um conhecimento inovador.

O que é preciso fazer para a internacionalização acontecer?

É preciso mudar a legislação. Há algumas restrições para as Faculdades de Medicina públicas, uma delas é a exclusão de alunos internacionais. É proibido por lei.

Tem a ver com o facto de as aulas serem em inglês, por exemplo?

O facto de as aulas terem de ser em inglês foi o argumento usado durante algum tempo. Como os doentes são portugueses, tinha de se falar português. Mas há dois motivos para que este não seja um argumento sólido: um deles é que esta proibição não atinge as novas Faculdades de Medicina privadas, às quais é permitido terem alunos internacionais. E os alunos destas faculdades também vão ter aulas nos hospitais públicos. Portanto, já não pode existir esse motivo. Além de que poderíamos fazer o que se faz na Europa do Norte ou no Leste. Os alunos que frequentam um Curso de Medicina podem ter os dois primeiros anos em inglês, mas depois têm de aprender a língua.

"Não compreendemos que possa haver Faculdades de Medicina que, por serem privadas, podem ter alunos internacionais e as públicas não."

Neste momento, Portugal tem já um Curso de Medicina privado, o da Universidade Católica de Lisboa, e outro vai começar na Universidade Fernando Pessoa, no Porto. O CEMP foi ouvido nestas situações?

Até agora não fomos ouvidos, mas a Agência de Acreditação para Cursos no Ensino Superior já nos disse que representantes do CEMP estarão presentes, no futuro, nas comissões de avaliação para outras situações. A nossa posição em relação a qualquer curso é a de que tem de ter qualidade e tem de ser avaliado, porque o que queremos é que os médicos sejam formados com qualidade. Por exemplo, os Cursos de Medicina das escolas públicas vão todos ser avaliados este ano por comissões independentes. Depois, defendemos que sejam dadas a todas as instituições as mesmas ferramentas. Não compreendemos que possa haver Faculdades de Medicina que, por serem privadas, podem ter alunos internacionais e as públicas não. Obviamente que as propinas de uma faculdade privada são mais altas, e a propina de uma pública tem de ser baixa, estamos a fazer um serviço que é social e de proteção à população, essa é a missão de uma escola pública, mas não podemos deixar que o subfinanciamento torne o nosso ensino de pior qualidade.

Por fim, o que diria a um estudante de Medicina ou a um que pretenda ingressar no curso?

Que a Medicina é uma profissão de responsabilidade, de trabalho em equipa e de grande humildade. Precisamos todos uns dos outros. Não sabemos tudo, estamos sempre a aprender e que é preciso termos capacidade para ouvir o outro. Por isso, digo, se não conseguirmos ter um rácio entre professores com disponibilidade e alunos, que permita ensinar, que o ouvir os outros e o comunicar são das grandes mais-valias para uma boa formação médica, estamos a falhar. Digo muitas vezes que o melhor aluno de Medicina não é necessariamente o melhor médico, porque para se ser médico é preciso também ter empatia e capacidade de trabalho em equipa, de ouvir os outros e o doente. Se não tivermos bons professores isso é algo que vai marcar as gerações seguintes.

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