Todos os anos o país forma cerca de 500 novos especialistas na área da Medicina Geral e Familiar. Este ano não foi diferente. E os novos especialistas podem, até esta sexta-feira, dia 30, candidatar-se a uma das 585 vagas lançadas para unidades do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Todos os anos, em dois momentos diferentes — primeira e segunda época de fim das especialidades (fevereiro/março e setembro/outubro) —, surge a esperança de muitas destas vagas serem preenchidas, mas a verdade é que, nos últimos anos, uma boa parte tem ficado deserta. Basta referir que no último concurso para recém-especialistas desta área, lançado em dezembro de 2024, mais de 70% das 225 vagas ficaram por preencher, tendo as unidades de saúde de optar por contratação à tarefa para suprir algumas falhas. O presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), Nuno Jacinto, assume ao DN que “seria ótimo que todas as vagas fossem preenchidas, isso significaria que, em média, cerca de um milhão de utentes, dos 1,5 milhões que não têm médico de família, passariam a ter”, mas avisa: “Não vão ser.”Em primeiro lugar, porque não há especialistas suficientes, em segundo porque “houve um retrocesso no método do concurso". "Voltámos a ter vagas distribuídas por regiões, em vez de serem todas as que existem a nível nacional”, explica. Ou seja, este ano, a região que reúne a esmagadora maioria das vagas é a de Lisboa e Vale do Tejo, depois o Algarve, mas há vagas nas regiões Norte, Centro e Alentejo que "também fazem falta" e que não foram lançadas, o que quer dizer que “se está a fazer, à partida, uma restrição artificial”, defende o dirigente da APMGF.Na sua opinião, “mais uma vez, não abrimos todas as vagas disponíveis no território. Ora, isto quer dizer que este concurso não corresponde às necessidades totais do país”. .Número de utentes com médico de família aumentou em 2024 e chega aos 85%. O médico reconhece que a especialidade de Medicina Geral e Familiar necessitaria de mais 700 a 1200 médicos para preencher todas as necessidades em termos de utentes inscritos no SNS, mas não existem tantos especialistas no mercado. E, ainda por cima, “os critérios de seleção — que não percebemos muito bem como foram definidos — já estão a limitar as escolhas dos médicos. Muito provavelmente vamos ter vagas vazias, porque alguns colegas, que poderiam concorrer às que não foram lançadas, irão optar por não se fixar no serviço público”, afirma ao DN.Nuno Jacinto faz questão de reforçar que "a distribuição de vagas por região não faz sentido. É estar-se a limitar artificialmente as vagas, sobretudo numa altura em que temos tanta necessidade de médicos. É estar-se a criar problemas na cobertura quase perfeita de médicos noutras regiões, nomeadamente na do Norte, onde começam a faltar médicos nalgumas zonas”.De acordo com o Despacho 5868-A/2025, de 23 de maio, o maior número de vagas está, de facto, na Região Sul do país. Mas se tal acontece também é porque “cerca de 30% da população não tem médico”, admite Nuno Jacinto, embora especifique que “não é com esta distribuição de vagas que os profissionais que se formaram no Norte, no Alentejo ou no Centro, muitos deles já com a sua vida organizada, vão aceitar deslocarem-se para a região da Grande Lisboa. Ainda mais quando alguns deles têm vagas na sua região de origem que não foram lançadas”.À pergunta se existem muitos casos destes, Nuno Jacinto afirma não ser isto que importa. "Até podem ser dois, 20 ou 50 casos. O que importa é que, assim, nunca saberemos o que aconteceria se estas vagas tivessem sido lançadas. Os médicos concorreriam e optariam por ficar no SNS? Se calhar sim, desta forma não sabemos. E não tenhamos ilusões: os médicos não aceitam deslocar-se tão facilmente”. O médico defende ainda que, neste momento, "em vez de estarmos preocupados com a percentagem de vagas que se vai conseguir preencher no concurso, deveríamos estar preocupados com o número de médicos que conseguiremos captar para o SNS. Quantos mais fossem, melhor”. Mudança no método do concurso pode deixar vagas por preencherO presidente da APMGF faz o balanço dos últimos anos e sublinha que o que foi alcançado em 2023 acabou por ser destruído no ano passado e sobretudo este ano. “Demorámos tantos anos para se conseguir que os concursos fossem lançados a nível nacional, aconteceu em 2023, agora estamos outra vez a regredir na metodologia e a insistir em modelos que já demonstraram que não funcionam”, defende.Na sua opinião, esta decisão é apenas “política”, significando que, “claramente, não se ouve quem está no terreno, porque não é assim que as coisas funcionam”, sustentando ainda: “Não é por se oferecer mais vagas num lado e fechar noutros que as pessoas vão mudar. Isso aconteceria se os médicos só trabalhassem no SNS e se só tivessem esta alternativa. Aí, sim, poder-se-ia tentar mexê-los, como peças de xadrez, e por mais injusto que isso fosse. Mas a realidade não é essa, quer queiramos ou não. Os médicos têm outras alternativas, podendo deixar o SNS.”Segundo explica ao DN, em 2024 houve duas versões de concursos para colocação de novos especialistas no SNS. “Na primeira época (para os médicos que terminaram a especialidade no início do ano), as vagas foram todas a concurso, mas estas foram lançadas em concursos realizados por cada Unidade Local de Saúde, o que quer dizer que houve 39 concursos. E também não correu bem. Na segunda época (final do ano), o concurso já se aproximou mais deste modelo, número de vagas determinado pela tutela, embora o concurso tenha sido centralizado pela ACSS (entidade que gere esta matéria) e com critérios nacionais. Todas as vagas foram a concurso. E é assim que deverá ser.”O médico sublinha que, há anos, que se perde tempo, “não só com a morosidade dos concursos”, que levam meses a ser lançados e depois mais meses até se saber os resultados, em vez de se definirem “critérios simples, como colocar todas as vagas a concurso”.Este ano, segundo Nuno Jacinto, a morosidade nem sequer foi tão grave como a de anos anteriores. “A 24 de abril já tínhamos a homologação das notas, estando o processo concluído para avançar, e já estava publicado o mapa de vagas do ministério, que entretanto foi agora republicado e corrigido com pequenos acertos. E isto foi um aspeto positivo, mas depois desmotivamos os médicos com os critérios de seleção”. E alerta: “Temos de fazer melhor, porque, se nada for feito, andaremos a lamentar, de ano para ano, os médicos que optam por sair do SNS.”O concurso para novos especialistas da área dos Cuidados Primários foi o primeiro a ser lançado este ano e integra, na totalidade, 642 vagas, 585 para Medicina Geral e Familiar (MGF), 57 para Saúde Pública (SP), mais vagas do que o último curso para as mesmas áreas publicado no final de 2024, em que foram lançadas 225 para MGF e 15 para SP. As restantes especialidades ainda aguardam o lançamento de concursos, cujo prazo ainda não foi sequer anunciado. Ordem e sindicatos da classe já alertaram par as consequências que esta morosidade pode ter nos profissionais: “Optam por sair do SNS”, conclui o presidente da APMGF. RETRATOUtentesEm março de 2025, e segundo os dados do Portal do SNS, havia 1.593.802 de pessoas sem médico de família, mais 36.000 utentes do que no final de 2024. No entanto, e como foi salvaguardado na altura da publicação destes dados, o número de inscritos no SNS também aumentou. Ou seja, em fevereiro estavam registados 10.528.851 de utentes, mais 121.076 se compararmos com igual período de 2024. Motivos Para dar um médico a cada utente inscrito no SNS, deveria haver mais 700 a 1200 médicos de família. Mas isso não tem sido possível. A falta de atratividade do SNS, as aposentações e as saídas para o setor privado ou para o estrangeiro são alguns dos motivos apresentados pela própria classe.