"Se ele tivesse usado uma arma em vez de fogo, podia ser mais uma mulher assassinada"
O desconfinamento levou a que mais vítimas apresentassem queixa. Sem uma resposta rápida são alvos fáceis dos agressores. Ficam na residência e em perigo de vida ou escondem-se numa casa-abrigo. O número de mulheres assassinadas voltou subir.
As mulheres assassinadas pelos companheiros voltaram a aproximar-se dos números de antes da pandemia. São 22 já este ano, mais 57 % que em 2021. O desconfinamento levou a que mais vítimas de violência doméstica apresentassem queixa, mas sem uma resposta rápida das autoridades ficam mais vulneráveis aos agressores, explicam os técnicos. Mantêm-se na residência onde vivem, ou viviam, com o agressor, pondo a vida em perigo ou escondem-se numa casa de abrigo, deixando tudo para trás.
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São as vítimas da forma mais grave de violência. E, este ano, também se regista um aumento das denúncias junto da PSP e GNR, segundo as estatísticas contabilizadas para o Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres, que se assinala esta sexta-feira.
As dezenas de mulheres assassinadas em Portugal - 31 em 2019, antes da pandemia - não surpreendem Jéssica, 29 anos, enfermeira, vítima de violência doméstica. "Há muitas mortes porque, infelizmente, não acontece nada aos agressores quando fazemos queixa. Fiz a queixa há dois anos e, até hoje, não fui presente a tribunal, apenas prestei declarações para memória futura. Ele continua a fazer a vida dele, eu é que tive de vir para uma casa-abrigo, deixar a minha casa, o bairro, o trabalho, a família. A PSP pediu um mandado de detenção do agressor, a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) pediu um mandado de detenção, nunca houve uma resposta do tribunal, nada aconteceu. Incendiou-me a casa, se tivesse usado uma arma em vez de fogo, podia ter sido mais uma mulher assassinada", frisa. Está há três meses numa casa da APAV, a quatro horas de onde residia.
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A UMAR (União das Mulheres Alternativa e Resposta) faz a contabilidade das vítimas mortais, através do Observatório das Mulheres Assassinadas e com base nas notícias da imprensa. Entre 1 de janeiro e 15 de novembro deste ano, registou 22 femicídios e 33 tentativas de assassinato. São consideradas mortes intencionais no âmbito da violência doméstica contra as mulheres.
22 femicídios e 33 tentativas
Ana Marciano, jurista da UMAR, nunca esperou que os 14 femicídios do ano passado correspondessem a uma tendência de diminuição destas mortes. "A fase pandémica criou-nos uma incógnita sobre os dados. Nós, que trabalhamos no terreno, sabíamos ser difícil a violência desaparecer de um momento para o outro, não desapareceu, só não foi revelada. As pessoas estão a desconfinar e a denunciar novamente, encontram as mesmas dificuldades no sistema, as mesmas falhas na resposta e, existe este resultado a nível dos femicídios, o que é representativo das dificuldades do sistema".
A associação promove hoje a 11.ª Marcha Contra a Violência Doméstica e de Género, com início às 19:30 na Praça dos Poveiros, no Porto. É o início de uma campanha internacional, iniciada em 1991, e que termina a 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos, em mais de 140 países. Conta com o apoio da ONU e realiza-se no âmbito dos "16 Dias de Ativismo contra a Violência de Género".
Deixar tudo para trás
O dia em que o ex-companheiro de Jéssica pôs fogo à casa, foi quando ela percebeu que não podia continuar a pôr em perigo a sua vida e a dos dois filhos: "Foi muito difícil por tudo o que deixei para trás, mas o mais importante é a segurança dos meus filhos. Não podia permitir que vivessem nesse clima de medo, de perigo." Estavam os três em casa quando o agressor pôs gasolina nas escadas do prédio e as chamas irromperam por ali acima até atingir o andar onde viviam. Foi o pânico.
Aconteceu ao fim de dois anos de violência física, verbal e psicológica. Começaram quando ela pôs o companheiro fora de casa, depois de quase cinco de vida em comum. Conhecera-o pela Internet, estava ele detido por vários delitos entre os quais roubos. Quando saiu da prisão foi viver para sua casa, tiveram dois filhos, um casal. "Excelente marido e excelente pai", diz.
13 285 queixas na PSP
O comportamento dele começou a mudar, qualquer coisa era motivo para discussão, desaparecia de casa sem justificação. Jéssica suspeitou que consumisse drogas. Comprovou que usava cocaína, MD e haxixe, também álcool. A profissão de enfermeira, e experiência de vida, disse-lhe que era o momento de pôr um fim na relação, mas com a esperança que ele deixasse de consumir para reaver a família. Não aconteceu. Piorou.
"Até hoje não consegui perceber se quando me agredia e maltratava estava com excesso ou falta de droga. Fui espancada, agredida com os meus filhos nos braços, cheguei a ser esfaqueada. Antes de ter posto fogo à casa, partiu os vidros quando não lhe abri a porta, também atirou pedras aos outros apartamentos e carros dos vizinhos. Estou com uma depressão, emagreci 20 quilos. Ele não foi responsabilizado", protesta Jéssica.
Gostaria que o sistema judicial fosse rápido, que após a denúncia rapidamente o agressor fosse afastado, que se detivesse quem agride as mulheres e os filhos - os seus estão marcados psicologicamente - que fossem condenados. Recorda: "Quando entrei para esta casa-abrigo, a técnica que me recebeu disse que trabalha aqui há 19 anos e só conhece o caso de um homem que foi condenado. E entraram aqui muitas mulheres, estão sempre a chegar com as suas crianças." A habitação alberga 20 mulheres ao mesmo tempo e os seus filhos.
Não está numa casa-abrigo por falta de meios, ganhava bem como enfermeira, está de baixa psiquiátrica. Tem casa e carro, financeiramente não depende de ninguém. "Estou aqui exclusivamente porque o meu agressor anda à solta".
Explica que foi "muito bem recebida", que tem todos os apoios médicos, psicólogos e advogados, mas que se sente limitada por não poder sair quando quer. Apenas sai para levar os filhos à escola, além de uma hora de manhã e outra à tarde. As regras são rígidas, há o perigo de o agressor a encontrar. Pela mesma razão, não pode estar em contacto com a família. "Vem o Natal, uma festa familiar, não vamos ter Natal", entristece-se Jéssica.
Os filhos estão sempre a perguntar quando voltam para casa. Mas não há perspetivas de que tal aconteça. Os técnicos não aconselham o regresso à zona de residência, logo não poderá exercer enfermagem nos mesmos sítios. "Vou ter que começar tudo do zero, sinto-me com força para isso. Mas a vítima é sempre vítima, é quem te de alterar tudo".
Falhas do sistema
As reclamações da vítima Jéssica são idênticas às da advogada da UMAR. Ana Marciano considera que falta formação especializada aos profissionais que estão na linha da frente, que "frequentemente não fazem as detenções em flagrante delito, nem fora de flagrante delito. Significa que, em termos práticos, é mais fácil retirar a vítima de casa e colocá-la numa casa de emergência do que deter e retirar o agressor da residência".
Outra falha grande é não haver uma exploração criteriosa do local do crime. "Não é feita uma identificação correta do que se passou, não se faz a exploração dos meios de prova existentes, muitas vezes, o polícia nem sequer entra nas residências para ver se há registos hemáticos, objetos partidos, se as vítimas têm outros meios de prova, sejam documentais, fotografias, até registos clínicos, tudo isso é importante para um processo de violência doméstica".
11 176 queixas na GNR
Um terceiro problema do sistema, na opinião da jurista, é ónus da prova depender da mulher. "A vítima já sofre muito para conseguir chegar até à denúncia e o que se espera do sistema é que lhe dê uma resposta imediata, só que a resposta não chega, nem imediata, nem nas 72 horas seguintes nem posteriormente", acusa Ana Marciano.
Críticas que não significam que não se tenha avançado, mas há muito mais para caminhar. "Precisamos de uniformização de procedimentos e de trabalhar em rede uns com os outros, de contrário vai ser muito difícil obtermos melhores resultados. Existe uma grande disparidade de comarcas para comarcas", diz Ana Marciano.
Queixas das vítimas
Os dados preliminares das polícias indicam uma subida no número de denúncias. Entre 1 de janeiro e 31 de outubro, a PSP registou 13 285 processos pelo crime de violência doméstica. Este valor representa um aumento de 6,3% comparado com a média dos cinco anos anteriores.
O tipo de violência doméstica mais denunciado é a psicológica, seguido da física. Oitenta por cento das vítimas são mulheres. As polícias detiveram 802 pessoas pelo crime de violência doméstica, o que que representa um aumento de 35% da média dos cinco anos anteriores. Os detidos são posteriormente presentes a um juiz, que raramente confirma essa detenção.
A GNR registou 11 176 queixas até 30 de setembro, 1241 por dia, mais duzentas do que em 2021. Nesse ano, receberam 12 755, o que dá 987 por mês. Detiveram 1 167 este ano e 1722 detenções em 2021.
O ano passado, a APAV registou 9 275 vítimas de violência doméstica em 2021. Destas, 82,3% são mulheres. As faixas etárias mais representativas situam-se entre os 26 e os 55 anos de idade (45,1%). Em 55,3 % dos casos, a vítima tinha uma relação intimidade autor do crime.
ceuneves@dn.pt
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