Hilário Castro, da Associação de Comerciantes do Bairro Alto, mostra uma das artérias principais do bairro, deserta, durante o dia.
Hilário Castro, da Associação de Comerciantes do Bairro Alto, mostra uma das artérias principais do bairro, deserta, durante o dia.Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

Saída de empresas deixa Bairro Alto deserto de dia. À noite enche com bebidas baratas

Durante décadas o Bairro Alto foi conhecido por ser o "bairro dos jornais". Em fevereiro saiu o último, A Bola, e com esta mudança são menos cerca de 150 pessoas a frequentar as ruas e o comércio local. Além disso há cada vez menos moradores. Para comparar o movimento, o DN esteve lá ao meio-dia e à meia-noite.
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“Durante o dia temos um bairro completamente morto.” É com desânimo que Hilário Castro, presidente da Associação de Comerciantes do Bairro Alto (ACBA) vê, atualmente, a situação daquela zona da cidade.

"Já não é de agora, é de há uns anos para cá, porque as empresas foram-se deslocalizando e os jornais saíram do Bairro Alto, que era conhecido, precisamente, por ser o bairro dos jornais. Tudo acontecia aqui. O Bairro Alto vivia 24 horas por dia e com outro ambiente, sem conflitos”, prossegue Hilário Castro, que é também proprietário de alguns estabelecimentos no bairro.

Hilário Castro lamenta a saída do último jornal do Bairro Alto, no final de fevereiro. “A Bola foi o último jornal a abandonar o bairro, e a última grande empresa instalada no bairro a sair. Era uma empresa que dava trabalho a 150 pessoas. Esta saída tem um reflexo natural no comércio. É um problema”, desabafa o presidente da ACBA.

Na travessa da Queimada, onde antes era a sede do jornal desportivo, ainda se vislumbra a chapa de metal na porta, com o título. Quase em frente fica o restaurante Alfaia, propriedade de Hilário Castro. A clientela do jornal acabou, ficou outra, mas não o suficiente para encher o restaurante à hora do almoço, como o DN pode testemunhar.

“Os nossos clientes diurnos são pessoas que trabalham na provedoria da Santa Casa e na administração da CP. De resto, o Alfaia, que é uma casa histórica da cidade de Lisboa, tem 30 funcionários e trabalhamos muito com grupos, também. Mas, com a saída das empresas do Bairro Alto, os sobreviventes são muito poucos, sobretudo os que estão abertos aos almoços, porque deixou de haver viabilidade económica para servir almoços”.

Eugénio Fidalgo, proprietário do restaurante Fidalgo e do bar Matilde desistiu de servir almoços. “Há dois anos tive problemas com o pessoal e deixei de ter a equipa que tinha, porque já ninguém quer fazer dois turnos. Tive de optar só por um turno e o mais vantajoso é o da noite”, explica o empresário. 

Eugénio Fidalgo também dá conta de que a saída dos jornais, e outras empresas, do interior do Bairro Alto levou-lhe muitos clientes. “Ultimamente já tínhamos menos clientela. Os que ainda cá trabalham são poucos e, ou trazem a marmita, ou andam a saltar de restaurante em restaurante, à procura do mais barato. Não conseguimos fidelizar a clientela”.

O dono do restaurante Fidalgo aponta ainda outro motivo para a desertificação diurna do bairro. “Não tenho nada contra os paquistaneses nem os indianos, mas tudo o que abre agora que fosse de cozinha portuguesa passa a ser propriedade de estrangeiros, que não têm conhecimentos da nossa cozinha. Sucede que as coisas não têm qualidade e isso faz com que o Bairro Alto acabe. Isso afasta as pessoas daqui, não há atrativos para vir ao Bairro Alto”. E compara: “Antigamente havia uma oferta diversificada de uma série de restaurantes; hoje em dia há menos e com menos qualidade.”

Hilário Castro, da ACBA, afirma mesmo que o Bairro Alto, durante o dia, “não tem atração nenhuma que faça os turistas aqui entrar. Há muito pouco comércio e o que há enveredou pelo horário noturno. É raro, antes das três da tarde, a loja que está aberta”. 

O presidente da ACBA acrescenta: “O que é que faz isto ter vida e criar interesse? À noite, a iluminação dos próprios estabelecimentos cria aqui uma vida que motiva as pessoas a virem. De dia nada acontece: não há eventos, não há iniciativas”, lamenta.

Eugénio Fidalgo garante que, para que o Bairro Alto possa voltar a ter vida durante o dia, e também à noite,  “cada um tem de fazer a sua parte. Eu tento fazer a minha, mantendo os pratos que sirvo autênticos, tendo uma boa garrafeira e um bom serviço”. 

Mesmo à noite, Eugénio Fidalgo queixa-se do fraco negócio do bar de que também é proprietário, o Matilde. “O bar, à noite, também não funciona bem porque temos produtos de qualidade, que são mais caros, e estamos minados com bares, à volta, a vender baldes de sete decilitros e meio por cinco euros. O produto é mau mas a malta nova quer gastar cinco euros e ficar bêbeda”.

Também na vida noturna, Eugénio Fidalgo, 65 anos, que nasceu e cresceu no Bairro Alto, onde ainda mora, nota diferenças. “As saídas noturnas antes eram sociais. Hoje em dia a malta sai para se enfrascar. É quase obrigatório. Eu ouço conversas, como ouvi aqui há uns dias um rapaz a dizer: ‘Tive de beber uma litrosa [garrafa de litro de cerveja] antes de entrar para a discoteca!’. Depois, na discoteca não consomem, ou fazem só o consumo mínimo, porque lá dentro é mais caro”.

No sítio onde hoje tem instalado o bar teve, outrora, uma pastelaria. “Funcionava quando havia os estudantes do Conservatório, que vinham aqui almoçar ou petiscar qualquer coisa. Isso acabou e eu optei por fechar a pastelaria e abrir como bar. Para que é que ia ter aqui a pastelaria? Só para ter meia dúzia de idosos a falar mal uns dos outros?”

Quem se mantém fiel ao seu café é Maria Gabriela Vaz, 66 anos, proprietária do Porta Azul, ao cimo da rua da Atalaia. “Trabalho durante o dia e à noite, o meu alvará dá para café/pastelaria mas também serve para abrir à noite, porque tenho bebidas. Antigamente tinha um licenciamento entre as 06:00 e as 04:00. Depois houve muitas queixas no Bairro Alto e ficou estabelecido que as casas, no Bairro Alto, durante a semana, só podiam estar abertas até às 02:00 e, aos fins de semana, até às 03:00. Foi com esse horário que fiquei. Mas o meu café,  se não é o único, é dos poucos que ainda aqui existem”.

O DN visita o Porta Azul ao meio-dia. Há três idosos à conversa dentro do café. “A minha clientela durante o dia é, sobretudo, pessoas aqui do bairro”. Também Maria Gabriela sofreu com a deslocalização dos jornais e outras empresas do bairro. “Antigamente havia aí os jornais... Vendia bolos, fazia arroz doce, bacalhau frito, panados. Agora deixei, porque tudo saiu aqui do bairro e as pessoas não querem isso. Durante o dia estamos aqui entretidos com os vizinhos, vendemos café, sandes, tostas. À noite, isto funciona melhor”, garante.

Só que, apesar de o período noturno ser melhor para o negócio, nem tudo é positivo. “À noite temos grupos de clientes que já vêm aqui há muitos anos e são conhecidos. Mas o bairro mudou muito”. E comenta a insegurança que vai sentindo e que a leva a fechar cedo. “Chega a uma certa hora que vem todo o tipo de gente. As bebedeiras sempre lidámos com elas; o problema é que há bandos que vêm de outros bairros e essa gente é muito perigosa. Não queremos chatices”. 

Por isso, e apesar de estar a escassos metros da esquadra da PSP do Bairro Alto, durante a semana fecha por volta das onze da noite. Só ao fim de semana estica o horário até às duas da manhã. “Não vamos correr riscos, está fora de questão. Por isso, evitamos problemas. Temos a esquadra mesmo aqui ao lado mas eles [polícias] também não podem chegar a todo o lado”.

Eugénio Fidalgo, que trabalha no extremo oposto do bairro, no início da rua da Barroca, também fala em insegurança. “O que eu tenho saudades é de as pessoas andarem tranquilamente na rua. Não é que haja muita criminalidade no Bairro Alto, mas, impunemente, vê-se em todas as esquinas indivíduos a vender droga. Se há solução não sei, porque não sou polícia, mas noto falta de policiamento nestes casos. Nos outros, a polícia municipal passa, com uma lista de estabelecimentos, e vai controlar”.

A Câmara Municipal de Lisboa (CML) nota: “Quanto à segurança noturna, a polícia municipal de Lisboa constitui apenas um fator complementar da força de segurança territorialmente competente, que é a PSP”. E, em resposta ao DN, acresce: “Não obstante, temos vindo a reforçar a função de visibilidade preventiva e interventiva nas zonas noturnas da cidade, que visa reprimir comportamentos ilícitos por parte dos estabelecimentos e dos seus utentes.”

Maria Gabriela, por sua vez, é, também, moradora do Bairro Alto. E recorda outros tempos, quando havia vida de dia e de noite. “Antigamente, estavam cá os jornais, havia muitos moradores, era um bairro diferente. Tinha muito mais vida. Ao domingo, quando as pessoas estavam de folga, as ruas estavam cheias durante o dia; agora estão desertas”.

Noutros tempos havia, também, segundo esta comerciante e moradora, muito mais comércio e serviços. “Tínhamos farmácias, mercearias, lugares de hortaliças, tínhamos tudo aqui. Agora não temos nada”. Do mesmo se queixa Eugénio Fidalgo. “No nosso bairro havia tudo. Precisávamos de um serralheiro; havia um serralheiro. Precisávamos de um canalizador ou de um carpinteiro, também havia. Hoje não há rigorosamente nada. Já nem farmácia cá temos. Havia uma mística diferente e era uma vivência mais saudável. Hoje temos vizinhos diferentes todos os dias, a bronzearem-se à janela”, diz, referindo-se aos turistas que ocupam agora as casas de alojamento local, outrora morada de gente do bairro. 

Maria Gabriela Vaz aponta o dedo aos Governos. “Para isto voltar a ter vida durante o dia a primeira coisa a fazer era mudar a lei dos arrendamentos. Isto porquê? Para as pessoas não chegarem ao fim de um ano ou dois e terem de sair das suas casas”, opina.

"Não teve qualquer cabimento a Lei Cristas, em que certas pessoas de idade não se defenderam e saíram das suas casas. Eu até concordo que as rendas eram baratas mas os senhorios também não investiam nas casas”, prossegue a comerciante e moradora. “Agora, era voltar a mudar a lei do arrendamento para chamar mais moradores para o bairro. Se houvesse mais moradores poderiam abrir mais comércios, mercearias, lojas, tudo isso”.

Maria Gabriela Vaz é, neste momento, a única portuguesa a habitar no seu prédio. Tudo o mais são turistas, que estão de passagem por Lisboa. “Tenho saudades da vizinhança. Tenho saudades de podermos falar todos português”.

Para devolver a vida diurna ao Bairro Alto, Hilário Castro, presidente da ACBA, defende: “Há muito tempo que lutamos por uma revitalização do bairro, por melhores condições, possibilidade de esplanadas, ruas condicionadas ao trânsito”. E explica mesmo que existe um Plano de Requalificação do Bairro Alto

A CML dá conta da fase em que está o plano. “A CML já se comprometeu para com a junta de freguesia da Misericórdia e para com os residentes e comerciantes do Bairro Alto que irá requalificar o mesmo”.

Trata-se, no dizer da autarquia, de uma “grande obra, que tem como objetivo requalificar o espaço público para usufruto de moradores, comerciantes e visitantes, e para melhor integração na malha urbana envolvente, beneficiando da relação com a cidade”. 

Ao todo, serão requalificados 34 arruamentos. Dada a dimensão do  plano, a autarquia revela ao DN: “Na medida em que esta é uma obra grande e que não se conseguirá alcançar no curto prazo, a CML irá realizar um projeto piloto na travessa da Queimada, como antecipação do que irá acontecer em todo o Bairro Alto. O projeto de execução da Travessa da Queimada encontra-se em adaptação conforme os pareceres dos diversos serviços, sendo que se estima que a entrega do mesmo seja até ao final do ano e a execução decorra em 2025”.

No entender de Hilário Castro, presidente da ACBA, “o que podemos e devemos fazer é esta requalificação, que é obrigatória, mas também arranjar solução para os problemas com que nos deparamos diariamente”.

E dá um exemplo concreto: “Tudo isto está feito para complicar a vida a quem quer investir. Qualquer comerciante que queira investir, que queira criar condições no seu estabelecimento, depara-se com limitações e proibições de todo o género. Se eu tiver um espaço e quiser criar condições para armazenamento e vestiários, não posso anexar dois prédios. Também não posso utilizar as frações ao nível do primeiro piso, porque lá vem a questão que o Bairro Alto está classificado. Temos que criar condições para que venham investidores que aportem interesse ao tecido comercial do bairro, não queremos mais botecos nem lojas de souvenirs.”

 A CML explica: “O Bairro Alto está classificado como Conjunto de Interesse Público desde 2010. Isto implica que, para além da CML, também a tutela do Património Cultural se pronuncia, com caráter vinculativo, acerca das alterações ao edificado incluído neste conjunto classificado”.

O Bairro Alto está, ainda, incluído no Plano de Urbanização do Núcleo Histórico do Bairro Alto e Bica, que foi republicado em 2014 e que teve, segundo a autarquia, “como principais preocupações  a preservação patrimonial, a reabilitação urbana dos bairros e o reequilibro de usos”.

É aqui que entra a questão de não puderem ser usadas frações anexas ou dos pisos superiores. “No que concerne à alteração e ampliação de estabelecimentos existentes, estes apenas são permitidos no piso térreo caso exista, ou seja assegurada, entrada independente da do uso habitacional e eventualmente, nos pisos imediatamente confinantes, cave e sobreloja, nas casas em que não existam condições mínimas de habitabilidade e desde que tenham acesso independente ou através das frações com o mesmo uso, ficando ainda a mudança de uso condicionada à possibilidade de integração arquitetónica da entrada independente , caso esta não exista”, explica ao DN a autarquia. 

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