"Sabia que aí vinha. Faltava a data"

"Sabia que aí vinha. Faltava a data"

Marcelo Nuno Duarte Rebelo de Sousa tinha 26 anos em 1974.
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Filho de Baltazar Rebelo de Sousa, um dos políticos mais destacados do antigo regime - era ministro do Ultramar a 25 de abril de 1974 -, cresceu destinado a ser um dos herdeiros do regime. Mas o hiperativo e brilhante aluno, licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa com a classificação de 19 valores, era mais do que isso. Envolvido desde cedo no movimento associativo, funda, em 1970, com o padre franciscano Vítor Melícias, o Grupo da Luz, destinado a promover a intervenção dos católicos na vida social, económica e política. No mesmo ano, aproxima-se da SEDES (Associação para o Desenvolvimento Económico e Social) e funda a Ad¬ Hoc - Análise e Promoção de Desenvolvimento Cultural, uma associação de jovens, vetada pouco depois pela PIDE. Ligado ao semanário Expresso desde a sua fundação, foi redator, editor de Política e Sociedade, subdiretor e diretor daquele semanário. Nascido em Lisboa a 12 de dezembro de 1948, tem dois filhos e quatro netos. Foi eleito Presidente da República em 24 de janeiro de 2016.

"Os meses e as semanas anteriores ao 25 de Abril foram um tropel premonitório do que aí vinha. E sabia que aí vinha. Faltava a data certa.

Na Faculdade, era a efervescência estudantil. Com os gorilas (agentes policiais especiais) a controlarem espaços e gentes. Não evitando a agitação e até o incêndio do automóvel do diretor.

No Grupo da Luz - acolhido por Vítor Melícias - era patente que a hora se avizinhava e como que sentíamos que nos iríamos dividir, chegados os partidos. António Guterres para o Partido Socialista - que António Reis não o deixaria escapar - e eu para o partido a nascer.

Até lá, animando a SEDES, em Lisboa e fora de Lisboa, como naquela sessão em Leiria, com Francisco Sá Carneiro, Rui Vilar e José Carlos Megre, descrita em relatório da PIDE-DGS - mais tarde descoberto na Torre do Tombo -, em que o agente falava do filho subversivo de ‘Sua Excelência o Senhor Ministro’ (sic), que já previa movimento militar.

No Expresso era a loucura. António de Spínola entregava o seu livro a Francisco Pinto Balsemão. E, depois, a mim e Augusto de Carvalho. A Censura / Exame Prévio impusera a prova de página, quase tornando impossível a saída do jornal ao sábado. Prova de página era censura de textos, fotos, títulos, anúncios e páginas já montadas, tudo liquidando num ápice. Mais meio ano e seria a inviabilidade editorial e financeira.

Na Comissão Nacional do Ambiente, o fechamento era total.

Na Inspeção-Geral das Finanças, o talento era entrar mudo e sair calado.

Encontros fervilhavam. Por toda a parte. Com amigos militares e civis. Onde? Tascas ignotas. E, pelo meio, o Concerto no Coliseu dos Recreios. Com as canções da resistência, que seriam as canções de Abril.

E até, a 16 de Abril, o jantar no Faia - pelos anos de meu Pai - Lucília do Carmo e Carlos do Carmo cantaram. Uma foto regista o caso - nós, filhos, de frente, pais de costas. Ideia do meu Pai. ‘Nós já somos passado. Vocês são futuro’ - insistiu. Ou o milagre de aguentar a família na véspera de se separar, até fisicamente, durante quase 20 anos.

A 21, Alvalade, para ver o Sporting-Benfica. E a última ovação-ilusão para Marcelo Caetano. Vi e pensei como era, e é, efémera a glória do mundo.

Na altura, já sabia que tudo estava iminente. Só faltavam poucos dias. O resto foram as conversas de 23 e 24.

O jantar em casa de amigos, a 24, a pretexto de ver, na televisão, uma eliminatória europeia.

E voltar para o Expresso  e discutir com os coronéis. Piores do que nunca. E refazer o jornal. Já o sinal de E Depois do Adeus  fora dado. Seguido, mais tarde, por Grândola, Vila Morena.

Permaneci na Rua Duque de Palmela até às quatro e tal da madrugada. Ao sair, cruzei-me com a segunda coluna do Rádio Clube Português e decidi ir tomar um duche a casa. Acordar as pessoas certas e contar-lhes o que começara.

Regressei ao Expresso, para aí viver o 25 - com saídas às ruas -, recebendo políticos famosos no futuro a saberem novidades, tentando dissuadir outros de ainda agirem como se não tivesse começado o amanhã.

Em contacto com o Jorge Galamba Marques, numa cabine telefónica, no Carmo, servindo de jornalista André Gonçalves Pereira, reescrevendo tudo, acompanhando os passos dos Capitães e esperando o avanço da Junta de Salvação Nacional. E sabendo, desde manhãzinha, que a ditadura cairia e alguns, poucos, não acreditavam.

Às tantas desse dia infindável, o jornal estava a ganhar corpo como o primeiro em liberdade, eu podia gozar com amigos e companheiros a noite lisboeta - chuviscante, mas deliciosa - e, à saída, ainda não refeito da surpresa, o Ruca, estafeta juvenil que levava as provas para a censura, repetia a dúvida da manhã: ‘Então e as provas para o Bairro Alto?’ Como quem diz, para os Coronéis, para a Censura. ‘Ruca, não há e não haverá mais provas de Censura.’ E ele a ver-se desempregado. Antes de levar a sério que o 25 de Abril estava para ficar. E ele não perderia a sua motoreta. Ou seja, o seu emprego.”

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