Rui Nabeiro. "Não me recordo sequer de ter tido Natal"
Empresário admirado no país e homem amado na terra que o viu nascer, Rui Nabeiro, o fundador dos cafés Delta que morreu no domingo, aos 91 anos, vai hoje a enterrar no cemitério de Campo Maior. Neste dia, o DN recupera uma entrevista de vida ao comendador, conduzida pelo jornalista Luís Osório, há cinco anos, no âmbito da iniciativa "30 portugueses, 1 país", do grupo hoteleiro Porto Bay, de que o Dinheiro Vivo foi parceiro, e que resultou num livro.
Nasceu em 1931. Do zero construiu um verdadeiro império. E uma marca, a Delta, que perdurará por muitas gerações. E mais mérito tem por tê-lo feito a partir do Alentejo, de Campo Maior, lugar que antes dele era tão miserável como todas as vilas vizinhas. Diz-se que nunca despediu ninguém e que não existe uma única pessoa a quem falte emprego na sua terra.
Relacionados
Conversámos no dia 30 de outubro de 2018.
Senhor Comendador, valeu a pena ter vivido?
Bastante, sou uma pessoa muito feliz, gosto de viver, o mundo tem-me sorrido e as pessoas também me sorriem. Por vezes não lhe respondo com um sorriso na boca, mas respondo-lhes sempre com um sorriso nos olhos. Não há dúvida nenhuma de que o tempo passou, tenho 87 anos... são muitos... comecei muito cedo a trabalhar, ainda em criança, e não soube verdadeiramente o que foi a infância, mas a Providência deu-me tudo, deu-me os amigos, deu-me o trabalho, deu-me o ser conhecido, deu-me a saudade de querer voltar atrás para reforçar mais a minha posição, essa é a realidade.
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
Disse "a Providência deu-me essa possibilidade", mas foi a Providência ou alguma coisa que tem em si próprio?
Devemos sempre pensar que não estamos sozinhos, pode ser uma ideia divina, pura sorte ou o que somos, não sei. Sempre fui muito próximo das pessoas, sempre soube para onde ir. E não esqueço que apenas tenho a 4ª classe.
Mas a 4.ª classe bem tirada.
Bem tirada e bem trabalhada, agradeço aos meus pais que eram extraordinários, um pai e uma mãe analfabetos, mas inteligentes. E agradeço aos professores que gostavam de quem estava disponível e eu estava sempre disponível, a minha mãezinha dizia sempre aos que lhe pediam qualquer coisa: "Eu logo falo com o meu Rui". E era verdade, queria sempre falar comigo, mesmo em miúdo. Eu resolvia o que havia para resolver. A escola foi decisiva, até porque fiz a 4ª classe com a minha mulher como colega.
A sério? E já gostava dela?
Já estava debaixo de olho, palavra de honra. Foi aí que começámos a olhar um para o outro. E nunca mais o fogo se apagou, uma grande companheira.
Tão bonito o que disse. O seu pai morreu muito cedo, esse certamente foi um dos motivos para ter assumido a chefia dos assuntos de família.
Morreu-nos muito cedo. E sim, foi o principal motivo para ter sido chamado à responsabilidade.
Muitas vezes a vida é paradoxal e aquilo que nos acontece de mal torna-nos naquilo que acabamos por ser. Se ele não tivesse partido...
Não posso afirmá-lo em consciência, mas o meu pai exaltava bastante o meu jeito para a liderança, pensava que eu era naturalmente líder. O meu tio, um homem de negócios, puxou-me também para trabalhar com ele. Eram irmãos muito diferentes, o meu pai era mais velho do que o irmão e levara a vida como motorista de um médico lavrador. O meu tio não, o meu tio queria vencer.
Como o jovem sobrinho.
Sim, eu também queria vencer. Mas sou uma pessoa orgulhosa do pai que teve. Porém, no campo da indústria e dos negócios, da invenção e da imaginação, o meu tio Joaquim dos Santos foi um mentor.
Se recuarmos à sua juventude é impossível esquecer de onde era. Ainda há uns dias falava com Carlos Moedas sobre a ausência de líderes alentejanos e o Alentejo do seu tempo era certamente ainda mais complicado.
É que o alentejano só começou a aparecer há uns anos, andávamos muito devagar. Se calhar beneficiei de ser neto de um beirão de Viseu. Adoro o Alentejo e considero-me alentejano, mas não estou a brincar. O patrão do meu pai, o tal médico, tinha um filho doente, uma doença psiquiátrica profunda, e sabe quem era a única pessoa que o conseguia dominar?
O senhor?
Eu não, o meu pai. Foi um verdadeiro escravo daquela família.
Tomava conta dele?
Tomava conta dele. Depois fartava-se e saía, mas acabava sempre por voltar por amizade e por pena do rapaz. Para aí à sexta vez saiu mesmo e foi trabalhar com o irmão, o tio de que lhe falei...
Nessa altura já trabalhava com o seu tio ou foi antes?
Já trabalhava com o meu tio, sim. Tínhamos uma empresa.
Comendador já é um nome próprio. Toda a gente o trata assim.
Isto acontece, o que posso fazer?
Faço questão de o chamar assim. Há muitos comendadores que são uma verdadeira encomenda.
Está bem. Eu e os nomes. O meu foi logo muito controverso.
Porquê?
Eu sou Manuel Rui, mas o Rui teve sempre mais força por causa de uma madrinha. Agora apareceu-me este terceiro nome, Comendador... não fui eu que o criei, fique aqui bem claro.
Tenho curiosidade por aquela passagem pela Câmara de Campo Maior.
Em 1963 fui Presidente da Câmara, o primeiro do povo a ser eleito em Campo Maior.
Mas ficou muito pouco tempo.
Por pouco tempo, sim. Comecei como vereador, depois ocupei a vice-presidência e a seguir a presidência. Fizemos as festas de Campo Maior e consegui que um amigo me trouxesse a Lisboa para ser recebido por Marcello Caetano. Queria convidá-lo para ir às festas de Campo Maior. O Governador Civil ficou muito ofendido e assim que pôde empurrou-me de lá para fora, achou uma falta de respeito a minha iniciativa. Fiquei apenas uns meses, entre fevereiro e setembro. Não havia nada a fazer, agarrei na malinha e vim-me embora.
Mas incompatibilizou ou não com todo o executivo da câmara?
Nada, de maneira nenhuma. O que aconteceu tinha a ver a ver com outra coisa, era um círculo fechado. E eu tentei abrir e não fui bem-sucedido. Estava tudo feito com o governador, o chefe de secretaria, o tesoureiro e os fiscais. E não se pode esquecer que eu próprio fora convidado pelo governador, tentou fazer-me acreditar que eu era uma pessoa com futuro. Só que depois deu-me cabo do trabalho. Ainda bem, foi da maneira que fiquei mais livre.
Pôde começar a construir aquilo que é hoje o seu império. É possível construir um império sendo boa pessoa?
Acho sinceramente que sim, é melhor ser-se boa pessoa do que má pessoa, mas eu distribuo e recebo, também trabalho para ganhar o meu, mas o meu trabalho é semear, colher e distribuir. O que me tem acontecido é realmente estar bem com todos os meus colaboradores, porque quando lancei a Delta, em 1961, não larguei o trabalho que tinha e ainda hoje é a primeira casa a que eu volto todos os dias...
Ainda hoje?
Volto sempre à empresa Camelo, a minha primeira, uma marca linda. Mas atenção, não dei estes passos sozinho, foi sempre a trabalhar com outras pessoas, gente que trabalhou comigo, com amigos. E no início não foi fácil, o mercado estava tomado pela Grande Lisboa, pelo Grande Porto e por uma outra Casa da província. A venda era difícil...
Houve tempos em que não vendeu?
Vendi sempre, mas tinha que fazer aquilo que os outros não eram capazes de fazer. Vendia lentamente, assim com o passo alentejano.
Fazia-se de morto.
Já percebi que o terei de contratar.
E eles acreditavam que era lento.
Alguns recebiam informações fidedignas, atenção porque fulano vai caminhando. Só que eles respondiam "vai devagar, os alentejanos andam muito devagar".
E às tantas.
A pouco e pouco, sem darem por isso, dominei o mercado. Uma encomenda aqui, outra ali. Assim que comecei a vender arranjei logo um vendedor e pu-lo dentro da carrinha para ajudar a vender, a dar crédito, a distribuir meios e a assistir tecnicamente. Sim, quando pensaram que aquilo estava parado, não estava, caminhava.
E caminhava rapidamente.
Nunca pensei ficar parado no nosso país, todo o café vinha de Angola, mas quem intermediava era Lisboa. Peguei em mim e comecei a fabricar o produto em Angola.
Desvalorizaram a sua experiência de contrabandista em criança.
Pois foi. A especialidade do café que vendíamos, a grande invenção do tio, resultou de ter ido a Espanha conhecer e aprender um pouco daquilo que lá se fazia. Passámos a trazer o café verde vindo de Angola e começámos aqui a torrá-lo. Criou a sua marca assim, marca que depois reforcei, mesmo a seguir à morte dele. Essa é a versão do contrabandista, do guarda-fiscal e do guarda civil, eles precisavam de se governar e eu também precisava de me governar, de maneira que não havia mal nenhum. Havia momentos em que o país precisava que o café saísse de Portugal para se fazerem divisas e a peseta era uma divisa, pelo que o próprio Banco de Portugal nos autorizou a ter uma conta em pesetas, o que supostamente era impossível, mas autorizou porque era necessário e os espanhóis quando precisavam de não gastar dinheiro também facilitavam a saída do café. Todos facilitavam.
Fechavam os olhos.
É.
Ainda se lembra dos gritos das pessoas que eram apanhadas e recambiadas para Espanha na Guerra Civil?
Lembro e até já fiz um teatro disso.
Um teatro?
Eu era um dos atores, era o que ia pedir à guarda-fiscal e à guarda civil para soltarem o preso, recordo-me bem. As pessoas eram apanhadas e metidas na cadeia e depois, de noite, vinha um camião levá-las para a Praça de Touros. Mais tarde levavam-nas para outros caminhos. Claro que me lembro dos gritos.
Isso é uma coisa que marca certamente uma criança.
Muito, os gritos em qualquer momento voltam a ouvir-se, não tenha dúvida.
A sua consciência empresarial e política cresce aí? Afirmou sempre de uma maneira muito clara que é socialista.
Sou.
É um dos pouquíssimos empresários de sucesso que se assume de esquerda, que se assume com uma consciência social forte, isso nasce aí?
Nasce da revolta que sentia em casa, da revolta de meu pai. As pessoas naquela região sentiam que não existia futuro para os filhos, os alentejanos sentiam-no na pele. Nasceu dessa circunstância, claro. Seria sempre socialista... nem que fosse pelo meu pai.
Ajudou algum comunista a passar a fronteira?
Não sei se ajudei a passar comunistas, mas certamente ajudei a passar muitos emigrantes. O meu tio vivia na fronteira e conseguimos passaportes para muitos emigrantes irem para a França e para a Bélgica, fi-lo e fiquei de consciência tranquila. Os homens, no fundo, só queriam ir à procura de melhores dias.
Juram-me que nunca despediu ninguém. É um mito?
Tenho essa fama, mas terei despedido alguém. Um ou outro de que gostava menos, muito pouco, quase nada. É difícil comigo. Sou um conciliador, gosto de juntar pessoas e de as tornar amigas. Quem nasce numa terra com tantas carências se tiver bom senso consegue fazer muita coisa, consegue servir bem as pessoas. Com certeza que, ao longo da vida, despedi pessoas, mas houve sempre uma razão muito forte e dei sempre exemplos para que não acontecesse outra vez.
Mas nunca despediu ninguém para faturar mais.
Isso não, isso de maneira nenhuma! Quando eles não faturam, faturo eu. Se as vendas caem, quando acontece, sou eu que visito os clientes. O que faço sempre que posso.
O senhor comendador é o dono da bola, mas depois deixa todos jogarem. Mas quando tem de ir buscar outra vez a bola não hesita.
É a história da minha vida. Na minha casa só sabemos sorrir. Eu sorrio para a minha mulher e ela sorri-me. Agora já estamos os dois sozinhos, sempre são 65 anos de casados. Tenho uma camarada muito capaz.
Muita paz e deixe-me acrescentar, muito fogo.
Fogo haverá, um homem que não sente fogo está acabado.
O segundo mito, que me juram ser verdade, é uma história de poupança. No princípio da semana põe no bolso direito uma soma de dinheiro e não gasta durante a semana mais do que aquilo que tem no bolso. Hoje é terça-feira, posso perguntar quanto dinheiro tem no bolso?
Tenho uns 300 euros, mas apenas porque estou e vou ficar em Lisboa. Hoje o almoço estava pago, ontem o jantar estava pago. Não o gastarei de certeza. Tenho as notas no bolso, mas tudo o que é moeda guardo numa latinha e, ao fim de uns três meses, abro-a e levo o dinheiro para o «Tempo para Dar», uma associação que temos ligada ao «Coração Delta». Eu não gasto dinheiro, a mulher dá-me de comer, depois chega qualquer amigo e quer logo pagar tudo, tenho essa vantagem.
Isto é o problema de ser rico, acabam por lhe pagar as coisas todas, a mim ninguém me paga nada.
Fico sempre ofendido com a palavra rico. Tenho é muito valor, tenho muitos sacos de café, tenho muitos clientes, temos muitas casas e armazéns espalhados por aí, temos quase 3400 trabalhadores, essa é a minha maior riqueza, eles a trabalhar para mim e eu trabalhar para eles, é extraordinário. Eu realmente tenho uma vidinha boa, mas o dinheirinho é da empresa, as nossas casinhas e os nossos armazéns não são do António, do Manuel nem do Joaquim, são da empresa.
De alguma maneira preocupa-o o facto dos seus filhos e dos seus netos não seguirem aquilo que são os seus dogmas?
Para já o condutor do barco ainda está aqui e eles têm um respeito grande pelo avô e desejam fazer igual ao que eu faço. Já tenho uns netos com formação académica, juntam a isso a experiência do trabalho e da nossa cultura, vão fazer bem. Todos querem estar à altura e ser um exemplo. Se acontecesse o contrário teria pena, eu não sou eterno. Mas não o sendo quero viver muito mais anos.
E é homem para vir cá várias vezes em espírito.
Andar por aí a vaguear? Não sei, logo se verá, talvez apareça.
Cá estaremos para ver. Teoricamente deveria sentir-se mais próximo de Cavaco Silva, um homem que se fez a si próprio, mas Mário Soares sempre foi o seu político de eleição.
Sou do PS. Soares é vida, Cavaco não. Eu sou político de vida, tenho o meu percurso, a minha vereda como se diz lá no Alentejo, mas todos os políticos do país são meus amigos, mesmo o próprio Cavaco Silva.
Mas era certamente mais divertido almoçar com Mário Soares.
Sem comparação. Ele dava sempre as suas piadas e era um homem com um à vontade diferente, mas quem escreve como o senhor é que poderá saber isso bem.
Eu não sei nada. É verdade que organizou um encontro entre Soares e Felipe González em Campo Maior?
Logo depois do 25 de Abril. Fez-se um encontro para Soares dar apoio ao PSOE. O jantar foi feito em Campo Maior numa cooperativa da qual eu era presidente, a Cooperativa Progresso Campo-maiorense. Depois seguimos para Espanha. Mas ainda conto um episódio mais bonito.
Por favor.
Quando íamos a passar a fronteira alguns contrabandistas infiltraram-se na caravana e os tipos da alfândega começaram a fazer parar a comitiva. Mário Soares sai do carro e eu faço-o também e peço-lhe para me deixar resolver o problema. Fui falar com os homens e pedi para deixar passar, afinal estavam ali pessoas realmente muito importantes.
Não me diga que os contrabandistas levavam café.
Claro que levavam café! Iam muitos sacos lá misturados. Nessa mesma noite, eram duas e tal da manhã, batem à porta e era a esposa do responsável da Alfândega de Elvas. Estava preocupada pela possibilidade de o marido ser chamado a Lisboa por ter tentado obstruir a caravana. Sosseguei-a. "Deixe lá, vá dormir, já passou".
António Costa tem alguma coisa de Soares?
Não sou capaz de apreciar, mas para mim são pessoas distintas.
Gosta de Marcelo Rebelo de Sousa?
É uma pessoa extraordinária. E andamos a competir os dois para saber quem tira mais selfies, é que a brincar a brincar já fiz hoje duzentas e tal fotografias.
Só hoje?
Hoje sou capaz de ter ganho a Marcelo, mas a média anda ali muito equilibrada de certeza absoluta. É todos os dias de manhã à noite, o Presidente da República por vezes não sai, mas eu saio todos os dias, devo levar vantagem na ocupação do espaço.
Há alguma família em Campo Maior que não tenha tido ajuda sua em algum momento?
Não conheço nenhuma que não tenha, é verdade.
Qual foi a última vez que lhe pediram emprego?
Ainda hoje de manhã, às 7.30, já tinha duas pessoas à porta do escritório. É assim todos os dias, amanhã estará lá gente à porta à espera que eu saia. Mas temos todas as pessoas de Campo Maior a trabalhar, temos uma ou outra que é menos gostosa do trabalho, mas a minha terra não tem desemprego. Temos também uma fábrica francesa que emprega umas centenas de pessoas, a relação entre nós é maravilhosa.
Quando não consegue dar emprego consegue mandá-los para outro lado.
Não, eu sempre vou dando emprego, vou sempre dando esperança e quando a pessoa dá esperança depois compromete-se, às vezes isto também é duro.
Em quantos países está a Delta?
Faturamos razoavelmente em vinte ou trinta países. Já estamos na Austrália e no Canadá, nesses países temos um vendedor que lá vai, nos Estados Unidos também estamos a vender razoavelmente bem, Espanha e a França também não lhe ficam atrás, Angola tem uma produção curiosa, o problema é fazer chegar o dinheiro.
Acredito que seja homem para ir a Angola e resolver o problema.
Agora vai o meu filho, eu já queria entrar um bocadinho no descanso, mas não quero descanso total porque a pessoa parando cansa-se. Até que a Providência de Deus me dê condições para trabalhar e saúde, não paro. E telefono sempre aos nossos clientes quando fazem anos, pego no telefone e vale sempre a pena, quando nos aproximamos vale sempre a pena.
Trabalhará até o último dia.
Para a frente é o caminho.
Tem medo de partir? Receio desse momento?
Não sabemos quando vamos nem para aonde vamos, é o que eu vejo, vou a muitos funerais, a pessoa tem que estar preparada para tudo. Eu queria era ter esta saúde até ao último dia.
Mas acredita em Deus?
Acredito, mas não vou à Igreja, não é por ser contra a Igreja, até sou amigo do padre.
Tem ainda muitos projetos?
Não me faltam, sonho permanentemente.
Continua a ver as cotações da bolsa?
Estão na minha ferramentazinha do telefone.
Sabe ao minuto se está a perder ou a ganhar dinheiro?
Eu preciso é de saber quanto é que entra em compra, quanto é que entra no mercado e para saber isso tudo faço a minha estatística. Tenho lá a minha moça que vai fazendo o gráfico.
Tem uma rapariga que lhe faz a estatística?
Não tenho uma, tenho quatro ou cinco, uma só não chegava.
Lembra-se da sua professora primária?
Lembro-me bem, tive dois professores, uma professora e um professor, a Dona Elvira Ferreira e o Joaquim António de Oliveira.
Ficaram contentes, assistiram à sua epopeia?
Não, faleceram cedo, eram muito meus amigos. Quando saíam ficava eu sempre a guardar a escola, tive logo essa primazia ou esse condão.
Tem saudades dos Natais quando não tinha nada?
Não me recordo sequer de ter tido Natal. Recordo uma madrinha de batizado que me começou por levar um brinquedo e depois me passou a oferecer uma nota de vinte escudos muito embrulhadinha. São saudades que ficam num homem e que jamais poderei esquecer. O meu pai tinha uma carta de motorista, mas nunca conseguiu ter um carrinho seu, isso é que me toca cá dentro.
Duas perguntas para acabar.
Eu posso continuar até amanhã.
A primeira faço recorrentemente aos meus convidados. Gostava que me recordasse a sua mãe, que me oferecesse uma memória dela ou que me dissesse o que lhe apeteceria dizer-lhe se a reencontrasse?
Agradecia-lhe do fundo do coração ter vindo a este mundo, agradecia-lhe por me ter feito um homem. Era cem por cento analfabeta, mas tinha uma inteligência grande. E sofreu muito, Luís. Os meus irmãos morreram demasiado cedo, dos cinco fiquei apenas eu. Se fechar os olhos oiço-a: "Digo ao meu Rui, o meu Rui é capaz de fazer".
Como é que ela se chamava?
Maria de Jesus.
Vamos imaginar que sou uma espécie de génio da lâmpada.
O dos três desejos?
Quero perguntar-lhe quantos mais anos quer viver?
Não quero muitos, aí uma dúzia chega, mas mesmo a sério quero que a minha vida chegue até aos 95 ou 96 anos.
Já agora...
Já agora aos 100, também é verdade. Nestas coisas é melhor não pedir demasiado, até aos 95 não me parece que seja pedir muito.
Irá viver até aos 100.
Muito obrigado.
DESTAQUES