Roque da Cunha.“Será muitíssimo difícil dar um médico a cada utente e diminuir listas de espera até fim de 2025”
Global Imagens Reinaldo Rodrigues

Roque da Cunha.“Será muitíssimo difícil dar um médico a cada utente e diminuir listas de espera até fim de 2025”

Licenciou-se em Medicina, foi fundador do SIM, em 1979, e deputado à Assembleia da República pelo PSD, de 1987 a 1999. Só depois fez a especialidade e comeou a exercer no Centro de Saúde de Camarate. Mas foi durante os 12 anos como secretário-geral do SIM que se tornou conhecido. Hoje passa a pasta a Nuno Rodrigues.
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Jorge Paulo Roque da Cunha nasceu em Angola a 4 de maio de 1960, mas aos 15 anos veio viver para Portugal. Licenciou-se em Medicina na faculdade da Universidade de Lisboa e foi aqui que começou o seu trabalho no associativismo, integrando listas para a associação académica e depois, em 1979, como um dos sócios fundadores do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), do qual acabou por ser secretário-geral nos últimos 12 anos.

Mas na década dos anos 1980 entrou na política à séria, tornando-se deputado pelo PSD nas V, VI e VII legislaturas da Assembleia da República, mais um ciclo de 12 anos na vida. Aliás, confessa, “é um prazo mais que suficiente para se deixar uma marca de liderança”. Só depois da política fez o internato de Medicina Geral e Familiar e iniciou carreira no Centro de Saúde de Camarate, onde entrou por concurso público e ainda se mantém. “Tenho uma excelente equipa que muito me ajudou a equilibrar o trabalho de médico e de sindicalista ao mesmo tempo”, desabafa. Hoje, com 64 anos e dez meses, diz que deixa a direção do SIM de “consciência tranquila” por tudo “ter feito pelos médicos e pelo SNS”, e com “uma herança melhor do que a recebeu”, “um sindicato mais sustentado e estruturado”, mas esse “também é o papel de um secretário-geral”.

Ao longo dos anos conheceu vários ministros, elegendo Leonor Beleza e Correia de Campos como os mais críticos, porque, mesmo com Paulo Macedo e agora com Manuel Pizarro, apesar das dificuldades, “foi possível chegar-se a acordos”. De Marta Temido diz não perceber a sua “incapacidade para o diálogo com os médicos” e a sua “atitude mais agressiva”. E, por isso mesmo, alerta: “O próximo ministro deve ter um perfil de grande competência técnica mas também política, para poder influenciar o ministro das Finanças e o próprio primeiro-ministro”.

Mas, apesar da sua ligação anterior ao PSD, sublinha que “o governo que for empossado não terá vida fácil com a Saúde”, considerando que será muito difícil cumprir-se o que Luís Montenegro prometeu, um programa de emergência com aplicação até ao final de 2025”.

Hoje passa o testemunho ao seu vice-presidente, Nuno Rodrigues, médico de Saúde Pública, que encabeça a lista única às eleições do Congresso Nacional, para o triénio 2024-2027, mas não deixará de ser  “um cidadão preocupado” com a Saúde e um médico, que se reformará dentro de um ano e pouco. E sem regresso ao SNS, porque senão seria controverso “dizermos que o ser médico é uma profissão de grande desgaste”.

Esteve 12 anos à frente do SIM. Esta saída é pelo cansaço das lides sindicais ou tem novos projetos?
Não saio pelo cansaço, pelo contrário, saio altamente motivado e de consciência tranquila por ter feito tudo para defender os médicos e o Serviço Nacional de Saúde (SNS), mas entendi que 12 anos à frente de qualquer organização é tempo mais que suficiente para deixar uma marca a liderar. Há uma tendência para se perpetuar este tipo de lugares com a qual não concordo. Tive uma equipa extraordinária e agora é o momento de dar o lugar a nova gente. Quanto aos projetos para o futuro, irei continuar no meu centro de saúde e naturalmente disponível para, em termos cívicos e pessoais, continuar a contribuir para melhorar o SNS.
Sai tranquilo com os acordos que fez e com as formas de luta que decretou ou, olhando para trás, considera que poderia ter feito de outra maneira ou ter ido mais longe?
Devo dizer que saio deixando aos meus sucessores uma herança melhor do que aquela que recebi, mas é este o papel de qualquer dirigente. Mas saio com a consciência perfeitamente tranquila porque, em 12 anos, assinei 32 acordos com os governos da República de diferentes matrizes políticas, com os dois governos regionais da Madeira e dos Açores, com instituições, como a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, com as quatro Parcerias Público Privadas (PPP), com o Instituto de Medicina Legal e ainda um acordo para os médicos civis nos hospitais militares. Naturalmente que em todos os processos de negociação nunca atingimos a perfeição. Não há acordos ideais, há acordos possíveis, mas depois de um acordo assinado muitas matérias continuam a ser trabalhadas e a partir daqui há uma cultura de compromisso que  tem vindo a ser concretizada.

“Não há acordos ideais, há acordos possíveis. E depois de um acordo assinado muitas matérias deverão continuar a ser trabalhadas, mas há uma cultura de compromisso que até agora tem vindo a ser concretizada.”

 
Andou 19 meses a negociar com dois ministros do PS, pensou-se que com Manuel Pizarro, por ser médico, seria mais fácil do que com Marta Temido. O que falhou?
O que falhou foi o que, desde logo, vem de trás, que é o subfinanciamento do SNS. Depois, eram conhecidas todas as dificuldades do SNS em relação ao número de profissionais e, aqui, houve uma incapacidade total da tutela, particularmente da dr.ª Marta Temido, para perceber que era fundamental aproveitar toda a nossa disponibilidade para ultrapassar os problemas existentes. E isto criou logo uma grande dificuldade na negociação. Recordo que quando foi assinado o protocolo negocial (abril de 2022, com Marta Temido), foram precisas sete horas de reunião para a tutela aceitar colocar no documento a questão da grelha salarial e aqui percebeu-se logo que iria ser muito difícil. Em relação a Manuel Pizarro teria sido muito melhor que o acordo intercalar tivesse sido um acordo global, mas a demissão do primeiro-ministro e o facto de o Governo ter entrado em gestão também não ajudou.
Mas esse falhanço terá sido só responsabilidade dos ministros, e agora no final de Manuel Pizarro, ou estes não tiveram o apoio  do colega das Finanças nem do próprio primeiro-ministro?
A incompreensão do primeiro-ministro e do ministro das Finanças para os problemas do SNS, já que estavam cegos pelas luzes da União Europeia em relação às contas certas, fez com que não se investisse na Saúde. O SIM é totalmente a favor da sustentabilidade do país - desde a fundação que nunca gastámos mais do que o que cobramos em quotas. Mas, no caso do SNS, o facto de não ter havido o investimento necessário nos últimos anos fez com que se tivesse chegado a uma situação muito complicada em relação à falta profissionais e condições de trabalho e de instalações, etc. E isto gerou uma grande carga de trabalho sobre os médicos que iam ficando no SNS, uma grande insatisfação e maior atração pelo sector privado, quer pelos salários quer pelas condições de trabalho. Penso que ao Governo terá falhado a perceção que o SNS estava mesmo em grandes dificuldades. Portanto, a responsabilidade é do Governo, mas Manuel Pizarro também não terá conseguido influenciar os seus colegas de forma a colocar em prática muitas das coisas que, inclusivamente, pré-acordou connosco.

“Houve uma incapacidade total da tutela, particularmente de Marta Temido, para perceber que era fundamental aproveitar toda a nossa disponibilidade para ultrapassar os problemas existentes”.


O SNS iniciou em janeiro uma nova fase de reorganização. Parar pode ser um problema?
Esse é um ponto de grande preocupação. Temos uma Direção Executiva do SNS com estatutos aprovados há relativamente pouco tempo e com poderes que, por vezes, não estão perfeitamente definidos. E, ao mesmo tempo, criaram-se de supetão, sem grande preparação e organização, umas dezenas de Unidades Locais de Saúde (ULS), extinguindo-se as ARS e dando poderes  a outros organismos -  Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) e Direção-Geral da Saúde (DGS). Nesta perturbação legislativa há muitas matérias que necessitam de regulamentação e faço um alerta: é preciso que estas não se tornem  num dos principais travões a qualquer tipo de reforma, através dos poderes dados às estruturas intermédias. No que toca a recursos humanos, por exemplo, têm muitas vezes uma total incapacidade para aplicar o que está expresso na lei e criam dificuldades aos profissionais. É muito importante que o próximo governo olhe com atenção para esta matéria porque, muitas vezes, estas estruturas criam mais problemas do que resolvem.
Se fosse  chamado a participar no Governo teria uma solução para o que o preocupa?
Essa é uma questão que nem se coloca em termos teóricos. Tenho experiência técnica e política de vários anos no Parlamento e no associativismo, que me tornam conhecedor dos muitos problemas que afetam o SNS. Estarei disponível para poder contribuir para a sua melhoria, como o SIM tem feito sempre, de forma construtiva, mas em termos governamentais a  questão não se coloca. Sobre soluções, penso que o primeiro-ministro indigitado já terá ideia do que pretende para os vários setores.

Que perfil deve ter o futuro ministro da Saúde?
Deve ter um perfil de competência técnica, mas também capacidade política para influenciar o primeiro-ministro e o ministro das Finanças quando for necessário. Em relação ao setor, tem de ter capacidade de diálogo, ouvir as pessoas, e de decisão. Não pode ter a ideia que sozinho irá conseguir encontrar soluções miraculosas. Isto será fundamental para o SNS neste momento de grande dificuldade e de instabilidade política, tendo em conta a composição do Parlamento.
Mas isso era o que diziam ser o perfil de Manuel Pizarro...
Manuel Pizarro tem estas características, mas se tivesse tido mais capacidade de influência junto do primeiro-ministro e do ministro das Finanças poderia ter feito melhor. Depois, aconteceu a demissão abrupta de António Costa. Mas devo dizer que ficaram aspetos positivos da nossa relação institucional, por vezes muito dura.
Nestes 12 anos, lidou com quatro ministros: Paulo Macedo (PSD), Adalberto Campos Fernandes, Marta Temido e Manuel Pizarro (PS). Qual foi o mais difícil?
Nunca é bom comparar antigos ministros, mas posso dizer que com Paulo Macedo não foi fácil, porque ele teve de lidar com uma circunstância muito difícil,  a imposição da troika pelo governo de José Sócrates, mas a verdade é que apesar das dificuldades que se viviam foi possível chegar a acordo para um novo regime das 40 horas. A relação foi de respeito. Depois veio Adalberto Campos Fernandes, político experimentado, com uma atitude sempre cordial, mas que na prática mostrou uma grande incapacidade de atuar junto do ministro das Finanças, Mário Centeno, para conseguir evitar as cativações de verbas. Com Marta Temido nunca houve diálogo, nunca nos recebeu e não percebemos a relação menos cordial e até bastante agressiva. Manuel Pizarro teve uma atitude totalmente diferente desta, mas não foi suficiente para se  ultrapassar os problemas que o meu sucessor, Nuno Rodrigues, terá de lidar a partir de agora.

“Não há alternativa mais consistente que o SNS para dar resposta aos portugueses”


Trabalha há mais de 20 anos no SNS. Como descreve a sua evolução?
Descrevo desde logo com uma certeza: não há alternativa mais consistente para dar resposta às necessidades dos portugueses do que o fortalecimento do SNS. Naturalmente que se poderá e se deverá, de forma negociada e sustentada, recorrer ao apoio dos setores privado e social para melhorar as respostas, porque o que aconteceu com as PPP foi algo incompreensível. Mas não será compreensível que, por desespero, o SNS fique refém destes setores para ultrapassar os seus problemas a curto prazo. Respondendo concretamente à pergunta: é inadmissível e em nada orgulha o SNS que haja 1,6 milhões de utentes sem médico de família, listas de espera para cirurgia e consultas como as que temos. Mas, ao mesmo tempo, verifica-se que não há alternativa melhor. Portanto, a prioridade deve ser investir no SNS.
E no sindicalismo, o que é preciso fazer para atrair as novas gerações?
Acho que esse problema é da sociedade portuguesa e não só da classe médica, mas relativamente ao sindicalismo médico o facto de os vários governos, sempre que se chega a um acordo, depois de o sindicato ter despendido muito tempo, recursos e paciência, aprovarem portarias de extensão para que este seja aplicado a todos os profissionais, sindicalizados ou não, faz com que haja muitos colegas que considerem não necessitar do sindicato. Aliás, viu-se em relação a este último acordo que, apesar da grande contestação que mereceu por parte da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), a drª Joana Bordalo e Sá não se opôs a que fosse aplicado aos seus associados. Portanto, compete-nos a nós, SIM, criar formas de atração para novos associados. Mas devo dizer que cerca de 35% dos novos associados dos últimos anos são jovens, o que nos dá alguma esperança a favor do sindicalismo.

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