Numa altura em que todos os dias há notícias sobre os constrangimentos no Serviço Nacional de Saúde (SNS), em que os médicos se queixam de excesso de horas de trabalho e da valorização salarial, o que pensam os estudantes de Medicina? A realidade preocupa-vos? É difícil não pensar no que está a acontecer. A formação médica, tanto a pré-graduada como a pós-graduada, acontece na grande maioria das vezes no SNS e se somos deparados com situações que refletem o défice de recursos humanos, que acaba por ser o principal problema no serviço público, isso afeta a nossa formação. Juridicamente é obrigatório que a nossa formação seja tutorada, supervisionada, porque não temos autonomia, por médicos especialistas e se não os conseguem reter no serviço público é complicado e pode comprometer a nossa formação. Portanto, tem de haver capacidade de retenção de especialistas no SNS. Por outro lado, e como estudantes, temos vindo a defender que tem de haver uma grande coordenação entre o que é o ensino da Medicina - ou seja, a atividade pedagógica - e a atividade clínica, entre as escolas médicas e os hospitais universitários. O DN noticiou recentemente que os alunos do sexto ano de um hospital universitário, Santa Maria, estariam a ser sobrecarregados nas horas de estágio. Vocês têm conhecimento destas situações? É uma situação transversal a outros hospitais? Compromete a formação? Não temos queixas de sobrecarga de trabalho. Existe, sim, um incumprimento no número de horas de estágios no caso dos alunos do sexto [ano], mas a verdade é que já existe há algum tempo. As queixas que temos mais são sobre esta descoordenação entre a atividade pedagógica e a clínica. E este vai ser um dos nossos focos de trabalho para o próximo ano letivo, para percebermos exatamente como é que se pode resolver a questão. Mas há incumprimento sistemático? Achamos que não há um incumprimento sistemático no número de horas de estágio no sexto ano, que acaba por ser o ano que tem mais contacto com os doentes. Não há propriamente sobrecarga de trabalho porque não temos autonomia, isso passa-se mais com os internos que têm horários de muitas horas, além do que é suposto. Mas isto tem tudo a ver com uma questão de matemática. No ano passado, ficaram por preencher no concurso para as especialidades médicas cerca de 400 vagas. Em Medicina Interna havia 248 vagas, 144 ficaram por preencher e há serviços que estão mais deficitários em recursos do que outros. E quem está nestes serviços acaba por ter mais trabalho, e isso acaba por ter reflexo na formação. No início do ano, os internos ligados ao Sindicato Independente dos Médicos lançaram um estudo para perceber objetivamente e ao nível do país quais eram as dificuldades dos médicos internos e a verdade é que concluíram que existe mesmo excesso de trabalho, trabalho por turnos, privação do sono o que faz com que tenha reflexos no bem estar físico e psicológico dos médicos. Esta sobrecarga de trabalho nos médicos internos preocupa-vos também? A associação a que preside vai fazer alguma coisa no sentido de alertar para a situação? A nós preocupa-nos muito porque é o nosso próximo passo. Vamos ser internos de uma especialidade. Há muitos anos que vimos a falar da necessidade do planeamento dos recursos humanos. Em julho reunimos com a secretária de Estado e apelámos para que o Ministério da Saúde trabalhe numa estratégia de planeamento de recursos humanos. Em setembro vamos reunir também e vamos voltar a fazê-lo, porque enquanto não tivermos um planeamento a curto, médio e longo prazo - e com a possibilidade de se saber quantos médicos temos e quantos vamos ter e que medidas é que precisamos para os fixar -, não sabemos com o que se pode contar. Mas vamos refletir e debater mais internamente uma outra questão que consideramos importante e que envolve os hospitais universitários e a possibilidade de estes, do ponto de vista de medidas de política de saúde, poderem ser um modelo de fixação de profissionais de saúde. Porquê? Por a falta de médicos nos hospitais universitários estar a comprometer a vossa formação? Sim. A verdade é que tanto o ensino médico como o da enfermagem têm uma forma de trabalhar e de aprender que implica a tutoria de um especialista. Se tivéssemos um tutor para três estudantes seria melhor do que ter um tutor para 15 estudantes. É o que acontecesse agora? Sim. Em algumas faculdades mais do que noutras, mas é. A ANEM está a atualizar estes dados, e esperamos tê-los prontos em setembro. Há faculdades em que este número é superior e outras que não, depende se têm menos docentes e menos especialistas a realizar formação. A menor fixação de médicos no SNS implica também menor capacidade de docência e menor capacidade formativa. Por outro lado, se tivermos um aumento no número de estudantes também teremos um agravamento destes rácios. Tudo isto está diretamente relacionado com a formação. Se tivermos um tutor que tem X número de doentes e que está só a formar três alunos, estes vão ter maior capacidade para adquirir competências técnicas, o que é bom para os estudantes e é bom para os próprios doentes, quanto melhor formação tivermos melhor trataremos os doentes. Mas o que defendem é que os hospitais universitários possam ter um estatuto e um plano de fixação de médicos diferente dos outros para que a formação não seja comprometida, é isso? Têm de ter um estatuto diferente. Por outro lado, e quando se tomam medidas de política de saúde, estas deveriam ter como base as particularidades do local de ensino. O ensino tem atividades pedagógicas, éticas e clínicas, que precisam de ser garantidas para que a formação seja feita da melhor forma, com sustentabilidade e qualidade. Este é um benefício para os doentes e para o SNS. Fazem falta mais dois cursos de Medicina? Na globalidade não. O problema do SNS é a fixação de médicos. A abertura de um curso de medicina implica que este seja uniformizado com os outros, implica recursos, nomeadamente de médicos nos hospitais para dar formação. Este ano, um grupo de trabalho independente que avaliou as necessidades formativas referiu que estas poderiam ser resolvidas pelo aumento de algumas vagas por ano nos cursos que já existem, que isto seria suficiente. O trabalho que tem sido feito pelas faculdades tem sido nesse sentido, mais vagas de forma a que a qualidade formativa permaneça. A verdade é que se formarmos sem capacidade de fixação de talento poderemos estar a formar médicos para exportar ou para fora do SNS, e não dar resposta ao que são as necessidades das populações. Os estudantes de Medicina continuam a identificar muitas vantagens em estar no SNS a questão é que é preciso apostar na sua melhoria. Para os alunos de Medicina o que é importante mudar no SNS? Além das melhorias que poderemos ter na capacidade de garantir uma boa formação complementar, há a progressividade - é uma palavra importante, nomeadamente no que toca à integração do interno na carreira médica -, horários mais adequados e flexíveis, a própria melhoria das instalações das unidades, dos equipamentos médicos e a própria remuneração base, que é um ponto que tem de ser valorizado. Enquanto estudantes já pensam no que vão fazer, que especialidade e se emigram ou não? Pensamos e discutimos. Mas enquanto geração valorizamos mais outras coisas no próprio SNS. Valorizamos o acesso a outro tipo de formação e a interligação da vida pessoal com o trabalho, e isto acaba por condicionar as escolhas seguintes, como a da especialidade. Pensamos muito em ficar no SNS, mas queremos muito que haja uma melhoria nas condições de trabalho para que a motivação se mantenha no internato. A questão da emigração estará sempre presente para fazermos estágios e formação, em termos globais será um benefício direto para o país. Estamos fora durante uns anos, mas queremos ter motivação para voltar. E acho que é por aí que temos de caminhar. Quando se fala na questão de falta de recursos há sempre quem defenda que após a formação os médicos deveriam ficar no SNS durante uns anos. Isto é uma solução para o SNS justa para os médicos? Os contribuintes contribuem na generalidade para o Ensino Superior, não é só para a Medicina. E a verdade é que quando terminamos o curso ainda fazemos um internato geral e depois mais o internato da especialidade que dura entre mais quatro a seis anos. Os médicos internos já contribuem com o seu trabalho para o SNS, fazem 40 horas de serviço e às vezes muito mais. Portanto, durante estes anos já existe uma contribuição no serviço público. Não achamos que seja uma medida que responda aos problemas do SNS, o que é preciso fazer é melhorar as condições de trabalho para nos darem alguma esperança no futuro.