Revalorizar os profissionais de saúde
Não é possível humanizar a medicina, que lida tão diretamente com a vida e a saúde de pessoas, sem humanizar o médico, o que pressupõe uma visão integradora para além da doença. Foi com esta apresentação que teve início mais um ciclo de Almoços-Tertúlia Medicina e Humanismo, uma iniciativa de Luís Machado, com consultoria científica de Luís Nave.
A primeira conversa informal decorreu ontem, n"As Velhas, em Lisboa, e teve dois intervenientes de peso: Ana Jorge, atual presidente da Cruz Vermelha Portuguesa e antiga ministra da Saúde, e Germano de Sousa, administrador e fundador do Grupo Germano de Sousa.
Numa conversa informal, mas esclarecedora, falou-se da importância da medicina e de os médicos olharem para o pacientes não como doente, mas sim como uma pessoa com uma doença. Pode parecer estranho, mas trata-se de não desumanizar uma profissão que trata de pessoas. "A valorização da pessoa humana deverá estar sempre presente quando se fala de uma atividade que implica tratar do doente", afirmou Ana Jorge, que exemplificou com os serviços de atendimento às crianças. "Temos primeiro de pensar na pessoa e só depois na doença." A opinião é subscrita por Germano de Sousa, que é um crente da definição clássica do Humanismo: o Homem é o princípio, o meio e o fim de todas as coisas. O especialista lembra que o médico tem de convencer o paciente de que a prescrição que lhe está a passar é a mais adequada para o seu problema. É onde entra a chamada "empatia", o dar esperança ao doente.
E essa é uma das atuais falhas da formação: a parte relacional. Porque o médico não tem apenas de tratar das necessidades de saúde do seu paciente. Há também que tratar das necessidades emotivas e espirituais. Apesar de a tecnologia ter trazido enormes avanços no campo da medicina e ser uma ferramenta valiosa para os médicos, na opinião de Germano de Sousa, hoje começa a haver demasiado apoio tecnológico. Quer isto dizer que se começa a estar demasiado dependente do que se vê no computador e a perder o contacto humano. O olhar o paciente nos olhos, concorda Ana Jorge. Aquilo que se chama de medicina defensiva, onde o médico efetua n exames por forma a proteger-se de possíveis incidentes, é hoje o comum. A isto junta-se, refere Ana Jorge, "o Dr. Google".
Se é certo que hoje em dia as pessoas têm acesso a muito mais informação, isso não significa que tenham discernimento ou sabedoria para poderem interpretar o que estão a ler, vinca. Quanto a isso, a médica acrescenta que cabe ao clínico explicar a patologia e a medicação ao paciente, esclarecendo-o.
Para os dois intervenientes, se a pandemia trouxe ao de cima a importância da existência de um profissional de saúde, mas também mostrou algumas das suas fragilidades. Ana Jorge lembra que, na primeira fase da pandemia, foram os sistemas primários, nomeadamente a saúde pública, que asseguraram as medidas de controlo e evitaram que a situação se descontrolasse. Durante muito tempo a saúde pública, a par da saúde mental e da oral foram os parentes pobres do Serviço Nacional de Saúde. Algo que não pode continuar, porque tudo começa nos cuidados primários.
Por outro lado há que incentivar e valorizar os profissionais de saúde. Algo que, segundo a médica, não acontece nalgumas instituições. Porque, na maioria das vezes, as chefias não têm um contacto com os profissionais que estão na linha da frente e por isso não têm noção do que enfrentam.
A formação portuguesa é boa e é reconhecida lá fora. Esta é a opinião partilhada por ambos os intervenientes, que igualmente concordam que encurtar o tempo de internato no pós-licenciatura foi um erro crasso. O objetivo foi estandardizar a formação em Portugal com o que se fazia nos outros países, por forma a permitir que os profissionais portugueses estivessem em igualdade de condições caso quisessem optar por uma carreira internacional. Acontece que é precisamente esse tempo de internato que efetivamente "faz um médico". Porque aplica a teoria à prática. É onde trabalha com os doentes.
Sobre isso Germano de Sousa diz que se está a desvalorizar os internatos pela pressão de ter médicos no ativo. Ao que Ana Jorge acrescenta que não houve o cuidado de acautelar a renovação dos médicos de saúde dos cuidados primários. Como resultado, à medida que a geração anterior se reforma, há cada vez mais portugueses sem médico de família.
Apostar numa formação mais "humana" ou que dê mais atenção ao ser humano, voltar a valorizar os profissionais junto da sociedade e dos seus pares e investir nos cuidados primários são "urgências" para a saúde portuguesa que se quer sã.