Maria Conceição Sobral, com a filha, Sónia, e o neto, Leonardo. A família regressou de Angola.
Maria Conceição Sobral, com a filha, Sónia, e o neto, Leonardo. A família regressou de Angola.Gerardo Santos

Retornados: “Chamavam-me preta e diziam-me ‘vai para a tua terra’

Muitas pessoas que vieram para Portugal, das ex colónias, nem sequer conheciam o país. De um momento para o outro viram-se sem nada de seu e tiveram de recomeçar do zero. Os filhos enfrentaram o preconceito nas escolas; os netos já só sabem o que lhes contam.
Publicado a
Atualizado a

Há 50 anos, mais concretamente a 27 de julho de 1974, o general António de Spínola surgia nos ecrãs da RTP a anunciar o direito à independência dos povos das colónias.  “É chegado o momento de reconhecer às populações dos nossos territórios ultramarinos o direito de tomarem em suas mãos os próprios destinos”, afirmava, dando início, também, ao processo de descolonização, que movimentou cerca de meio milhão de portugueses, muitos deles já nascidos em África, mas que vieram para Portugal. São os “retornados” apesar de muitos nem sequer nunca terem posto, até então, o pé em Portugal, na época do colonialismo designada por Metrópole.

É o caso de Filipe e Juventina Silva, de 80 e 76 anos, bem como da filha, Paula, de 54. “Nós somos mesmo naturais de Angola. A minha bisavó era da Calheta e foi na primeira colónia de madeirenses para o Lubango”, começa por contar o octogenário. “Lá crescemos, lá vivemos, e quando se deu o 25 de Abril fomos apanhados já casados e com três filhos. Era a nossa terra, nunca tínhamos vindo à metrópole”, desvenda.

A família acabou por só sair de Angola em 1975, primeiro para um campo de refugiados, na África do Sul. “Queríamos ficar e teimamos em ficar. Mas corríamos o risco de perder gente na família. Porque a cidade era invadida por um grupo político, a UNITA. Depois vinha a FNLA, depois o MPLA, e era uma mortandade”, recordam, dando conta da situação em que Angola entrou, com vários grupos independentistas a debaterem-se pelo poder no país que haveria de se tornar independente no dia 11 de novembro de 1975. “Mais tarde, fomos evacuados da África do Sul para Portugal e chegámos a Lisboa em março de 1976, felizmente todos juntos”, recorda Juventina.

A família recém-chegada viu-se completamente sozinha em Portugal. “Não tínhamos cá ninguém mas havia o IARN (Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais), que prestava apoio aos refugiados, estavam no aeroporto, que foi onde fizemos o nosso primeiro registo”, revela Filipe Silva.

Do aeroporto foram enviados, de camioneta, para Monção, no Minho. Ficaram hospedados numa pensão e nada tinham de seu, que não “algumas roupas e documentos”. Outros familiares foram chegando a Portugal, também vindos de África. “Estivemos uns meses em Monção mas chegámos à conclusão que lá não íamos conseguir emprego e viemos para Lisboa, onde já estavam outros familiares em pensões, também apoiados pelo IARN”.

Passou um ano até a família ter uma casa. “Eram casas arrendadas pelo IARN. Mais tarde, fomos morar para casa de familiares e, entretanto, arranjei emprego numa fábrica, na Azambuja”, relata Filipe Silva, que em África tinha sido professor e chefe de posto administrativo. “Quando fui à entrevista disseram-me que não me iria adaptar, mas tive de me adaptar. Tinha a minha família para sustentar”, realça o idoso.

Passados 50 anos ainda sente mágoa. “Destruíram a minha infância. Toda a gente tem uma terra, os sítios onde brincou quando era miúdo”. Chora, à medida que recorda os tempos de África. “Por mais anos que passem eu digo sempre que roubaram a minha infância. Não consigo ir àquele riozinho onde brincava, não consigo ver os passarinhos de que tanto gostava. Tudo isso morreu”.

Filipe e Juventina Silva com a filha, Paula, e a neta, Marta Costa
Carlos Pimentel/Global Imagens

A família nunca mais voltou a África. “Depois, toda a nossa vida foi feita aqui, em Portugal”, diz.

A filha, Paula Silva, aterrou em Lisboa com seis anos. “O que me marcou mesmo é algumas memórias de que em África tínhamos tudo. Um baú de brinquedos para a minha irmã, outro para mim. Um casa grande, com empregada para a minha irmã e empregada para mim, cozinheira. E, de repente, vimo-nos sem nada”.

Na escola, a adaptação foi difícil. “Como a minha filha era retornada a professora entendeu que  devia ficar na última fila, apesar de ser uma ótima aluna”, lembra Juventina Silva. “Houve uma altura em que não queríamos dizer que éramos retornados, porque o retornado era uma espécie à parte, indesejada”.

A neta de Filipe e Juventina, Marta Costa, nasceu em Portugal e nunca teve qualquer contacto com África. “Sempre me foram passadas boas memórias”, afirma a jovem, de 27 anos. “Os meus avós tornaram-se pessoas de sucesso em África e depois tiveram de dar um passo atrás, quando chegaram a Portugal, em 1976”.


“Tínhamos uma vida boa”

Maria Conceição Sobral, 77 anos, também saiu de Angola para Portugal. No seu caso foi um regresso, dado que só tinha ido para Angola já jovem adulta. “Fui em 1970, depois de o meu marido, que era piloto-aviador e farmacêutico, me ter vindo pedir em casamento, a Lisboa”, recorda. “Em 1971 nasceu a minha filha e, em 1976, vim-me embora com ela, mas o meu marido ainda continuou lá mais algum tempo, até 1979”. “Tínhamos uma vida boa e viajávamos muito entre Angola e Portugal. Por exemplo, quando a minha filha fez um ano viemos a Portugal mostrá-la”.

Maria da Conceição e Vasco Sobral, já falecido, moravam num grande edifício do bairro Prenda, em Luanda. “A nossa casa era um duplex. Tinha imensas coisas que não eram comuns em Portugal, como máquina de lavar roupa”. Tal como Juventina, também Maria Conceição tinha empregada, apesar de não trabalhar. “Dedicava-me muito à costura e foi, também, quando estudei arte”, conta a septuagenária, que exibe orgulhosa objetos em porcelana pintados, por si, bem como quadros e retratos.

Daqueles tempos recorda a violência da guerra civil. “Para irmos para os quartos, subíamos a escada de gatas e com tudo às escuras. Uma vez houve uma vizinha que foi à janela espreitar e um tiro passou e raspou-lhe o pescoço, cravou-se no teto”.

À medida que os portugueses foram abandonando o prédio “as casas foram invadidas. Havia um senhor sozinho, na primeira galeria e nós. De resto, não havia mais brancos”. Ainda assim, não foi o medo a fazê-la vir para Portugal mas sim a escassez de alimentos, mesmo havendo dinheiro para comprar. “Um dia a minha filha pediu um bife com batatas fritas e um ovo a cavalo, ao pai, e nós não tínhamos para lhe dar”, lembra Maria Conceição.

A filha, Sónia, 54 anos, tem más memórias dos primeiros tempos em Portugal. “Eu preferia passar fome e passar pela guerra, lá, do que estar aqui. Sofri de bullying como ninguém pode imaginar”, começa por dizer Sónia. “Chamavam-me preta e diziam-me ‘vai para a tua terra’. Nós éramos os pretos, os retornados. Foi horrível”, relata. “Depois, a minha mãe cortava-me o cabelo  no barbeiro, ficava espetado, e eu era muito feia, muito cabeçuda, tudo servia para gozarem comigo”. E prossegue: “Marcou-me muito. Diziam-me muitas vezes ‘vai-te embora para a tua terra, não és daqui’”.  

Só o passar dos anos o estigma se foi relativizando. “À medida que fui crescendo foi-se diluindo a história do retornado. Hoje em dia, Portugal é um país onde vamos para a rua e o que não falta são raças estranhas, tudo se tornou mais natural”
Esta família também não voltou a Angola. “Não me sinto preparada para ver tudo destruído”, desabafa Sónia Sobral.

O filho, Leonardo, é luso-francês e por isso não estranha a mistura de culturas. “Na minha escola há franceses, há portugueses e há outros alunos como eu. Tudo é natural”. Não sente vínculo com Angola mas achou “curioso fazer um trabalho para a escola com as histórias da minha avó”. 

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt