Regenerar tecidos humanos também exige criatividade

Nascida no Minho há 35 anos Renata Gomes é uma referência na Regeneração Cardiovascular. A viver no Reino Unido veio a Lisboa fazer umas doações ao Museu da Farmácia.
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Em janeiro deste ano, quando tomou a primeira dose da vacina AstraZeneca, a cientista luso-britânica Renata Gomes comoveu-se. De repente, sentiu que fazia parte da História da Ciência, tal como outros, muito antes de nós, no momento em que receberam as primeiras injeções de penicilina ou os primeiros órgãos humanos transplantados. "Achamos sempre que a História é algo que aconteceu aos nossos antepassados, mas, na verdade, com esta pandemia estamos todos a viver um momento único na História da Ciência e creio que, de uma forma geral, tomámos essa consciência."

Aos 35 anos, Renata Gomes, nascida na aldeia de Pousa, Barcelos, mas desde pequena no Reino Unido, tem um currículo académico e científico impressionante: Licenciada em Medicina Forense e Ciências Médico Forenses pela Universidade de Bradford, fez o mestrado em Medicina e Bioquímica Cardiovascular na Universidade de Londres e o doutoramento internacional em Regeneração Cardiovascular e Nanotecnologia, pelas Universidades de Oxford (Reino Unido), Coimbra e Kuopio (Finlândia). Nesse âmbito, foi premiada, em 2012, com um Silver Certificate (certificado de prata) dos prémios Science, Engineering and Technology (Ciência, Engenharia e Tecnologia), atribuídos pelo Parlamento britânico. Hoje é diretora científica do Blind Veterans UK, instituto, que, como o nome indica, trabalha com militares britânicos (e também norte-americanos) que perderam a visão em combate, ou por doença, e dela dependem hierarquicamente mais de 50 pessoas. No entanto, perante as raridades guardadas no Museu da Farmácia, em Lisboa, mantém o olhar fascinado da infância.

"Está a ver aquele casaco na vitrine? Era de Odette Ferreira (investigadora portuguesa que se distinguiu no combate à sida), ela guardava nos bolsos tubos com vírus para os manter à temperatura do corpo. Eu própria cheguei a fazer isso com outros materiais orgânicos", comenta entusiasmada, enquanto caminhamos pelos corredores do museu. Ou então pára à frente de uma velha balança para bebés e diz: "Os veteranos de guerra no Iraque contam que muitos hospitais ainda usavam estas já no século XXI e, se tinham uma, davam-se por muito felizes." Ciente da importância pedagógica deste espaço museológico de Lisboa, Renata veio ela própria fazer a sua doação: "São várias peças, umas profissionais, outras familiares. Entre as primeiras estão os primeiros lotes de vacinas da AstraZeneca mas também alguns protótipos relacionados com a medicina regenerativa, em que tenho vindo a trabalhar nos últimos anos." Mas trouxe também peças bem mais antigas: "Os familiares do meu marido, que são britânicos, participaram na I e II Guerra Mundial. Trouxe dois kits farmacêuticos de combate, usados nesses conflitos. O museu também tinha alguns, mas de épocas mais recentes."

Renata tem um riso fácil e sobretudo a preocupação de traduzir para linguagem corrente a complexidade do trabalho que desenvolve. Para ela, como para as duas irmãs mais velhas (as primeiras da sua família a frequentar a universidade), a escola e a Educação são bens de valor incalculável: "Tive muita sorte por receber sempre o estímulo da família", diz. E recorda a primeira infância ainda no Minho, em meio rural, quando levava para casa pássaros que encontrara mortos e tratava de os dissecar, sem que pais e avós dissessem que isso não se faz. Ou o dia em que pediu ao avô uma "lupa mágica" para ver o que ele tinha dentro da barriga ou por que doíam as costas à avó. "Fui uma criança muito curiosa, que se sentiu feliz quando chegou à escola e viu respondidas algumas dessas perguntas", lembra.

Com a família, aprendeu também o sentido da auto-disciplina e da exigência. À mãe, diz, deve tanto "ter ido às aulas de Português ao sábado, para não perder a língua materna, como ter aprendido a arrumar uma casa como só uma dona-de-casa portuguesa sabe fazer". A comparação entre tipos tão distintos de lições parecerá talvez estranha na boca de uma cientista de topo, mas Renata desconstrói essa visão de certo modo elitista do seu trabalho. "O valor do cumprimento de regras, da autodisciplina e do desenvolvimento de métodos é uma lição que fica para a vida, independentemente da área em que trabalhamos." Este rigor não dispensa, todavia, a criatividade, o que, diz, aproxima a Ciência do trabalho de um cientista ou até de um chef de cozinha. "É o que nos permite ir mais além, sair da caixa e avançar. Não se pense que é possível trabalhar na regeneração de tecidos humanos sem criatividade."

À frente do Blind Veterans UK, sediado em Londres, mas com pólos em Birmingham, Oxford, Washington e Texas, Renata foi distinguida em 2020 com o título de Freeman da Cidade de Londres, um título honorífico que remonta à Idade Média mas que só em 1996 passou a ser atribuído também a pessoas nascidas fora de um Estado da Commonwealth. Já este ano viu o seu trabalho ser citado, como exemplo de excelência, no livro de Chris Lewis e Penny Mordaunt, Greater Britain after the storm, com prefácio de Bill Gates. Relevante? Sem dúvida. Mas Renata não nos "deixa" acabar assim. "Tenho dois títulos mais importantes do que estes." Ah sim, quais? "O de tia mais fixe das minhas sobrinhas e o de irmã mais fixe, atribuído pela mais nova, que tem 13 anos. Acredite que nada consegue bater tais distinções."

dnot@dn.pt

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