Referendo sobre previdência "é o momento para a advocacia tomar a palavra"

Lara Roque Figueiredo, Fernanda de Almeida Pinheiro e José Pedro Moreira, os três advogados que promovem o referendo de dia 30, explicam porque tomaram esta iniciativa. E prometem "abrir a porta do diálogo com o legislador e com o poder político" se a maioria votar pela integração no regime geral da Segurança Social, pondo fim à Caixa de Previdência dos Advogados, Solicitadores e Agentes de Execução.
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Advogados em prática individual, os três elementos que impulsionaram a realização da assembleia geral da Ordem dos Advogados e o referendo em que quarta-feira os advogados serão auscultados sobre a sua vontade de manter o sistema de previdência na Caixa dos Advogados ou passar a integrar o regime geral da Segurança Social (SS) explicam as suas motivações para promover este escrutínio.

Porque decidiram promover este referendo? Há uma base de apoio considerável à mudança do regime de previdência dos advogados?
O referendo é resultado de um processo de vários anos. A advocacia, desde 2015, tem vindo a contestar a falta de apoio dado pela CPAS. Em 2018 realizou-se a maior manifestação de sempre da classe com mais de 3 mil pessoas, em 2020 ocorreu a primeira AG da Ordem dos Advogados convocada pela própria classe (com a entrega de mais de 3500 assinaturas), tendo sido também a mais participada da história da instituição e que deliberou por maioria de mais de 70% convocar o referendo que se irá realizar no dia 30 de junho, com vista a alteração da redação do artigo 4º do Estatuto da Ordem dos Advogados prevendo a possibilidade de a classe escolher, como regime obrigatório de previdência, a CPAS ou a SS.

Já não faz sentido de todo manter uma caixa dos advogados ou esta devia funcionar em complementaridade com o regime geral de segurança social, à semelhança do que tem sido prática na maioria dos países?
Na maioria dos países europeus (73%) a advocacia não tem caixas autónomas, mas sim um regime público de previdência. Apenas uma minoria de países tem regimes complementares ao regime público ou privados e nenhum tem um sistema similar ao da CPAS onde se presumem rendimentos e onde, a partir de um certo patamar de rendimentos (mais elevado), é possível escolher quanto se desconta. Em Portugal a CPAS é a única caixa que mantém uma gestão privada, embora seja uma instituição pública e supervisionada pelos ministérios da Justiça e do Trabalho e SS. Sendo uma exceção à regra geral, parece-nos que no mínimo teria de garantir os mesmos direitos que os restantes cidadãos portugueses têm, mas a verdade é que isso não acontece. A advocacia/solicitadoria e agentes de execução são os únicos trabalhadores portugueses que não pagam a sua caixa de acordo com os rendimentos que verdadeiramente auferem e que não têm quaisquer direitos sociais (apoio na doença, na parentalidade ou na quebra de rendimentos).

As tabelas que introduziram novos escalões na caixa não são suficientes? Deveriam ter valores mais baixos ou até isenção para quem está, por exemplo, em início de profissão? Ou para quem não está num grande escritório?
A introdução de novos escalões apenas continua a privilegiar os únicos que beneficiam com a existência da CPAS: aqueles que têm rendimentos mais elevados e podem continuam a descontar como se estivessem no 5° escalão (o mínimo obrigatório). A CPAS criou um sistema que exige mais a quem pode menos e menos a quem pode mais. Na advocacia quem ganhe 800€/mês é obrigado a pagar o escalão mínimo obrigatório - 251,38€/mês e quem ganhe 8 mil€/mês pode descontar o mesmo, num desrespeito total pela capacidade contributiva individual de cada um. Na verdade, este sistema beneficia quem menos precisa de previdência, deixando totalmente desprotegido quem dela carece. Neste momento mais de 60% da advocacia encontra-se a descontar pelo escalão mínimo obrigatório.

A caixa tem sido determinante em apoios aos advogados - quer na reforma, quer na proteção da maternidade/paternidade, quer na disponibilização de apoio médico em caso de doença... além das pensões. Como é que se assegurava esses serviços com a passagem ao regime geral de previdência?
Nenhum dos beneficiários da CPAS tem direito quer a subsídio de parentalidade, quer a subsídio de doença, ou mesmo apoio na quebra de rendimentos, ao contrário do que acontece no regime dos trabalhadores independentes da Segurança Social. A CPAS foi criada há 70 anos numa realidade profissional e económica que não tem qualquer paralelo com o que vivemos atualmente e não se atualizou. Todos os apoios que a CPAS dá pressupõem a continuidade do pagamento das contribuições (basicamente falamos de um "toma lá dá cá") e o seguro de baixa médica criado em 2021 tem tantas exclusões que se torna quase impraticável recorrer ao mesmo, além de que, tem um período de carência de 11 dias que não foi excecionado (como sucedeu com o RGSS durante a pandemia) e deixou de fora praticamente todas as situações de infeção da covid-19, o seguro tem uma duração máxima de 180 dias, enquanto na SS essa garantia é de 365, mantendo, na CPAS, sempre a obrigação de pagamento de contribuições.
Já a SS aos trabalhadores independentes assegura todas estas questões, quer o subsídio por doença (e todo o tempo que se está de baixa não se paga contribuições, contando esse tempo para a reforma), na parentalidade (apoio parental, parental alargado, apoio a filho doente ou com doença crónica, apoio a neto, interrupção da gravidez, etc) e protege os "falsos recibos verdes" que na advocacia são aos milhares, a trabalhar em sociedades de advogados ou em grandes escritórios, que usufruem do trabalho desses colegas e não descontam, por eles, nem para a CPAS nem para a SS e que têm a liberdade de os dispensar, de um dia para o outro, sem lhes garantir qualquer direito a subsídio de desemprego ou indemnização. Prerrogativa que mais nenhuma entidade empregadora tem em Portugal (e na Europa). Por isso, em termos sociais, a advocacia estaria mais protegida no regime público, do que sucede atualmente na CPAS.

O sistema de descontos deve privilegiar quem mais contribui ou os valores descontados devem antes servir para ajudar quem menos pode na classe?
Uma previdência digna desse nome tem que ser capaz de atribuir aos seus beneficiários os direitos previstos na Constituição da República Portuguesa. Os descontos para a CPAS devem respeitar a capacidade contributiva de cada um e não criar presunções de rendimentos que ninguém consegue ilidir. Apenas a advocacia continua presa a este modelo que obriga a quem ganha pouco contribuir muito e quem ganha muito a contribuir o que quer, porque tal só interessa a quem não quer pagar mais. Um sistema de previdência deve privilegiar os seus beneficiários num todo e não ajudar apenas alguns e, muito menos, como é o caso da CPAS, ajudar quem menos precisa, numa total inversão de valores do estado social, que é absolutamente intolerável num estado de direito democrático, em pleno século XXI, no seio de uma profissão que tem por desígnio maior defender os direitos, liberdades e garantias de todos os cidadãos.

O regime de segurança social também não está exatamente saudável. Não há um risco de os advogados que passem para o regime geral ficarem sem reforma?
A SS é um regime público que conta com mais de 4 milhões de beneficiários e tem um orçamento de vários mil milhões de euros. A CPAS é um regime de 50 mil pessoas, que gere fundos de 500 milhões. Só pela magnitude se entende perfeitamente o perigo de falência de um e de outro regime. Além do que a SS tem sempre o respaldo do orçamento de Estado (que todos os anos aloca verbas para a SS), coisa que a CPAS não tem. Aliás, basta verificar a diferença no apoio que foi garantido aos trabalhadores independentes da SS e o que foi facultado pela CPAS aos seus beneficiários durante a pandemia, para perceber isso mesmo. Na SS tiveram apoios desde quase a primeira hora, na CPAS primeiro foram recusados (segundo a direção continuávamos a trabalhar), depois com a suspensão de prazos lá se legislou (com a intervenção do parlamento) no sentido da CPAS prestar algum apoio, mas até isso foi inicialmente recusado, exigindo a CPAS aos beneficiários, para conceder as moratórias nos meses de abril, maio e junho, ações judiciais de alimentos (com sentença transitada em julgado com prazos suspensos!), para fazer prova de que nenhum dos seus familiares o podia apoiar, chegando-se ao cúmulo de recusar os demais benefícios aos contribuintes a quem foram deferidas as moratórias, por considerar que estes têm contribuições em atraso.

O que acontecerá a seguir ao referendo se o "não" ganhar? Entenderão a votação como a vontade dos advogados de permanecer neste regime?
Entendemos que este é o momento para a advocacia tomar a palavra, coisa que nunca antes aconteceu. Qualquer que seja o resultado deste referendo ele será histórico e dia 30 será o dia em que, pela primeira vez, a voz que se ouvirá é a voz da maioria e o que daí resultar não será uma solução arranjada numa qualquer sala da OA ou da CPAS, onde meia dúzia de advogados decidem o futuro de uma classe inteira, de acordo com os seus interesses, sem nunca ouvirem os seus pares sobre este tema, tal e qual como sucedeu em 2015, quando alteraram profundamente o regulamento da CPAS, impondo pesados cortes nas pensões de reformas na ordem dos 40%, subiram a idade de reforma em 5 anos e ainda aumentaram a taxa de pagamento de contribuições em cerca de 10%.

E se o "sim" vencer, que consequências são esperadas? Quais serão os passos seguintes e o que significarão para quem até agora descontou para a caixa de advogados?
Se vencer o sim abrimos a porta do diálogo com o legislador e com o poder político. Já se encontram na Assembleia da República três propostas de lei (uma que prevê a opção entre os regimes, uma que prevê a integração total da CPAS e outra que prevê a criação de um grupo de trabalho para legislar sobre a alteração de paradigma da CPAS). Ou seja, o que podemos ter a certeza é que se ganhar o sim a previdência da advocacia vai mudar e mudando será, naturalmente, para melhor porque pior parece impossível. Saberemos também que o nosso futuro será pensado, negociado e decidido tendo por base aquela que é a verdadeira vontade e a voz da advocacia.

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