O caso do médico dermatologista do Hospital Santa Maria, que terá ganhado 51 mil euros num só dia, e cerca de 700 mil em vários sábados com produção cirúrgica adicional, no âmbito do programa SIGIC (Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia), levou a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) a instaurar uma auditoria a toda a atividade neste regime no Serviço Nacional da Saúde (SNS). O caso colocou em cima da mesa a possibilidade de o sistema ter sido contornado pelo próprio médico para faturar mais. E as questões óbvias foram surgindo: haverá outros a fazer o mesmo? As regras do SIGIC não estão a ser cumpridas? Que controlo fazem os próprios serviços e unidades hospitalares que usam este regime, criado com o objetivo de 'limpar' as listas de espera e de melhorar o acesso aos cuidados? Neste momento, não se sabe, mas dentro da própria IGAS há quem diga que se poderia saber e que até se poderia ter prevenido tais situações, se se tivesse mantido as equipas que trabalhavam especificamente na prevenção e fiscalização destas matérias. Se tal não acontece, é porque em 2020, com a entrada do atual inspetor-geral, António Carapeto, foi aprovada uma reorganização da ação inspetiva que alterou “aquela que era a função da IGAS”, dizem ao DN. “As equipas que trabalhavam diretamente com estas áreas foram extintas, ficando com o trabalho a meio. Houve relatórios que não foram sequer terminados. Foi como se todo o trabalho que tinha sido iniciado tivesse ido para o lixo”, argumentam.Por isto, as mesmas fontes, que pediram o anonimato, dizem ter sentido “alguma indignação” quando viram, numa só semana, a IGAS avançar com duas auditorias no âmbito da produção adicional, conflito de interesses e fraude, explicando o porquê: “Não porque estas não tivessem de ser feitas ou porque não se justificassem, mas porque este tipo de auditoria é hoje quase inexistente na instituição, nomeadamente desde 2020, quando o atual inspetor-geral extinguiu as Equipas Multidisciplinares I e II, que tinham competências específicas para fiscalizar a área da contratualização e da produção adicional e o combate à fraude.” Ou seja, foi uma “área de intervenção que, na prática, desapareceu — basta ver os planos de atividade anuais -, e que poderia ter prevenido muitas das situações que podem existir no SNS.”A IGAS instaurou uma auditoria ao Serviço de Dermatologia de Santa Maria a 26 de maio, e depois de o presidente do Conselho de Administração desta Unidade Local de Saúde (ULS) a ter informado de uma “ocorrência relacionada com uma eventual ação irregular”, no “âmbito do sistema da atividade cirúrgica realizada em produção adicional” e depois de o próprio caso ter sido divulgado pela TVI, após uma investigação sua ao médico em causa. Dois dias depois, a 28 de maio, volta a instaurar nova auditoria, por suspeita de conflito de interesses e duplicação de funções, ao anterior presidente do Conselho de Administração da ULS Gaia/Espinho, que também terá ganhado 52 mil euros em três anos com cirurgias adicionais, a notícia foi avançada pelo jornal Observador, e o próprio já veio dizer que tudo o que ganhou foi de forma “legal”.Confrontado pelo DN com estas questões, o inspetor-geral da Saúde, António Carapeto, confirma a extinção das equipas e justifica a reorganização da atividade da IGAS com a “estratégia” definida por si e pela sua equipa e aprovada pela então ministra da Saúde, Marta Temido, para responder “à evolução das políticas de saúde”.“Entrei na IGAS a 1 de setembro de 2020. Falei com as pessoas e definimos uma estratégia para a instituição, que foi aprovada pela ministra da Saúde na altura, depois passámos ao plano de atividades para 2020 a 2022, e depois tivemos de reestruturar a própria estrutura para que esta acompanhasse a estratégia”, mas foi uma mudança que serviu para “alargar o âmbito da ação. Mudou-se os nomes, mas houve uma continuidade na linha de intervenção”.. Para as fontes da instituição, a extinção da Equipa Multidisciplinar I e Equipa Multidisciplinar II, criadas em 2019 pela anterior inspetora-geral, e que se designavam, respetivamente, por Equipa de Avaliação do Desempenho das Unidades Hospitalares na Contratualização e Realização da Produção Adicional e Unidade de Prevenção e Combate à Fraude, através do Despacho n. º 11621/2020, mudaram “aquela que é a função e que deveria ser o seu foco principal: fiscalizar.”A partir daqui, “os temas das auditorias passaram a ser inócuos, como ações inspetivas à digitalização das unidades de saúde, à desburocratização e até à inovação”, argumentam, sublinhando que “os próprios resultados, embora estes não sejam muitas vezes divulgados, também são inócuos. Mais parece que se instauram processos por instaurar.”“Não tornámos a IGAS inócua”O inspetor-geral responde a estas críticas com um argumento que diz ser “muito importante”: “Independentemente das equipas que existam, nenhum inspetor-geral pode alterar as atribuições da IGAS e estas têm-se mantido”. António Carapeto afirma ao DN que “é sempre possível criticar” e que “as críticas até nos fazem bem. Obrigam-nos, mais que não seja, a reforçar os nossos argumentos, mas na IGAS não abandonámos nada. Não tornámos a IGAS inócua.”O dirigente da Administração Pública, inspetor de carreira, conta que entrou naquela casa em 1996, depois andou por outros organismos, mas voltou em 2020 com “uma estratégia”: “O julgamento que fiz e faria agora, outra vez, em função da estratégia traçada, foi que precisávamos de uma equipa ou de uma linha de intervenção para a avaliação do desempenho, mas que não a podíamos restringir só a uma área, como a produção adicional, teria também de avaliar, por exemplo, as horas extraordinárias ou até a compra de medicamentos ou a sua prescrição. Portanto, o que fizemos foi alargar o âmbito desta equipa para que pudéssemos intervir com maior amplitude.” Embora, se calhar, se tenha “perdido a oportunidade de se detetar alguns casos graves”, assume.Mas mesmo que “fossemos 300 inspetores não conseguiríamos estar a toda hora em todos os hospitais a olhar para todas as áreas operacionais para detetar atempadamente a fraude. Isto é impossível”. Até porque, de acordo com a sua visão, tais situações ocorrem em unidades de saúde, “estamos a falar de hospitais, empresas públicas, que, por acaso, têm de ter serviços de auditoria interna com a missão de fazer prevenção e avaliação”.E foi esta visão que também levou à mudança da ação da IGAS com a sua chegada. A estratégia definida implicou começar a “olhar para todo o sistema, começando por auditar os auditores e controlar os controladores. Ou seja, auditar o controlo interno das instituições para que as próprias empresas reforçassem a sua função de auditoria interna e profissionalizassem esta função”, reforçando: “Mesmo que queiramos assumir essa vertente de polícia quase presencial não conseguiríamos, nem faria sentido nos dias de hoje.”. António Carapeto admite que estes temas, “sem dúvida, que não têm tanto a ver com os temas ou tipo de problemas imediatos como os que agora estão em causa, mas têm a ver com aquilo que são as políticas de saúde e com o que é a evolução do sistema de saúde”.Na sua opinião, a estratégia definida teve a ver “com temas que são absolutamente necessários avaliar, até para que os gestores das unidades percebam que têm de ser tratados com investimento e profissionalismo, até para se aumentar a capacidade de utilização das tecnologias, que se reflete depois na qualidade dos cuidados aos utentes. Por um lado, quisemos atacar problemas muito concretos e clássicos das inspeções. Por outro, quisemos abrir linhas de avaliação em temas inovadores, como transformação digital, desburocratização e simplificação administrativa. Esta foi a minha opção, e não estou nada arrependido”.Questionado sobre se esta estratégia tem estado a dar resultados ou se, como dizem fontes internas, esqueceu precisamente a fiscalização em matérias que são sensíveis no funcionamento do SNS, António Carapeto justifica: “Não inventei nada, o que fiz é o que se faz no mundo inteiro nesta área”, exemplificando resultados com números: “Em 2020, tinham aberto cinco processos na de inspeção, perfeitamente justificáveis por causa da pandemia. Em 2021, abri 25, em 2022 passaram a 96, mas, em 2023, baixámos para 73 e, em 2024, aumentámos a inspeção com 178 processos.” Na área das auditorias, houve menos processos, em 2020, foram instaurados 37 processos e, em 2021, 51. Em 2022 e 2023, 58 e, em 2024, 82."Da desmotivação à falta de recursosApesar das justificações, as fontes da casa queixam-se ainda que desde a pandemia e com a entrada do novo inspetor-geral a forma de trabalhar também mudou. “A pandemia da covid-19 retirou as equipas do terreno. As ações passaram a ser virtuais. A IGAS pedia o material às unidades ou fazia entrevistas via Zoom, a questão é que a pandemia passou e continua a fazer-se o mesmo. Portanto, é também uma mudança na própria forma de se trabalhar”, criticam. E o que acontece? “A IGAS pede os documentos às entidades em causa que, muitas vezes, não enviam tudo. Quando a ação de um organismos como a IGAS é fundamentalmente que vá ao terreno.” E quem fala ao DN, descreve “um ambiente de desmotivação na instituição” com “profissionais a saírem cada vez mais”. “Se há uns anos havia cerca de 60 profissionais nesta área, hoje não são mais de 30.”Por mais explicações que sejam dadas sobre a aprovação da nova reorganização inspetiva, quer fosse para esta ser adaptada à lei orgânica ou às políticas de saúde, as mesmas fontes acreditam que tudo tem a ver com “o diminuir a ação da IGAS”. “Esta nova forma de trabalhar e as áreas escolhidas para a fiscalização têm a ver com conceitos e orientações que, certamente, vieram de cima naquela altura.”Sobre estas críticas, o inspetor-geral volta a dizer ao DN: “Não desviei a IGAS para uma organização inócua, o que eu dei foi uma visão diferente à IGAS, para que tenha verdadeiramente impacto na gestão do sistema de saúde, para que o próprio sistema de saúde melhore, e não só o SNS.”António Carapeto começa por explicar que “a decisão se é preciso ir ao terreno ou não cabe sempre ao inspetor, a quem dirige a ação”. No entanto, assume, “se hoje as novas tecnologias nos permitem fazer o trabalho de outra forma temos de ponderar se vale a pena ir ao terreno ou não. Já tivemos vários casos, como o das gémeas de Santa Maria, em que tivemos de ouvir a mãe das crianças numa entrevista por Zoom, mas essa decisão final é sempre de quem conduz a inspeção”. . Recorde-se que no caso das gémeas, segundo as mesmas fontes, tal justificava-se, estava no Brasil e, na altura, nada fazia prever que aceitasse vir a Portugal para prestar declarações numa Comissão de Inquérito, na Assembleia da República. A questão, destacam, “são as inspeções que em Portugal deveriam ser feitas no terreno para não se obterem resultados inócuos”.Aliás, dizem-nos, esta forma de trabalhar tem sido um dos motivos que tem levado muitos profissionais da IGAS a quererem sair do organismo e a pedirem transferência para outros organismos da Administração Pública.O inspetor-geral também admite: “Não posso dizer que não existe desmotivação, mas numa organização pública não se conseguem controlar alguns dos fatores de desmotivação, nem de motivação, e que são muito importantes, como os salários. Tenho pessoas que são muito boas e que estão na base da carreira a ganhar muitíssimo menos do que aqueles que já têm muitos anos de carreira. Pois é. Não se controla também o facto de o sistema de avaliação de desempenho estar fixado com quotas e os profissionais não poderem subir na carreira.”Sobre a saída de recursos humanos, António Carapeto, explica, em informação enviada ao nosso jornal, que para 2025, "o mapa de Pessoal da IGAS prevê 71 postos de trabalho para a carreira especial de inspeção", mas que "nos últimos cinco anos e meio o número de pessoas da carreira especial de inspeção (inspetores e inspetoras) afetos à atividade operacional oscilou entre 43 (em 2020) e 33 (em 2023)." E que, atualmente, "esse número é de 41 pessoas.Importa ainda referir que as duas pessoas que ocupam os dois cargos de direção superior na IGAS também integram a carreira especial de inspeção. Assim sendo, existem 43 inspetores e inspetoras, atualmente, a trabalhar na IGAS."Tal como tinha explicado ao DN, "uma coisa é o que está no mapa de pessoal, outra são os recursos que temos na realidade. E a verdade é que só metade dos recursos do mapa de pessoal se encontram, de facto, a funcionar na IGAS. "Os restantes encontram-se a trabalhar fora da IGAS, em gabinetes de ministros ou em comissão de serviço noutros organismos da Administração Pública". O inspetor-geral concorda que todos os postos de trabalho constantes no mapa de pessoal são necessários para um trabalho até mais célere, mas “não se pode cortar a vontade de alguns dos técnicos que querem ter experiências noutras áreas”, sustenta. Para as fontes do DN, o importante era que quem de direito “refletisse sobre a função da IGAS” e que a “recentrasse no seu papel,”, sobretudo depois do caso do Hospital Santa Maria e de outros que já estão a ser investigados. Para o inspetor-geral, voltaria a fazer tudo igual e o que conta são os resultados.O que mudou na IGASO Despacho n.º 11621/2020 reconhece “a necessidade de proceder a alterações organizacionais na área operativa da IGAS para que esta fique alinhada com os objetivos do Plano Estratégico para o período 2020-2022”. Sendo assim, foi reorganizada a área operativa da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde, nos termos que seguem: “1 - A extinção das seguintes unidades matriciais, constituídas pelo Despacho n.º 8008/2015, de 30 de junho, da então Inspetora-Geral (publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 140, de 21 de julho de 2015): a) Equipa Multidisciplinar 1; b) Equipa Multidisciplinar 2.”Ou seja, “a extinção da estrutura matricial, com a designação de Equipa Multidisciplinar de Avaliação do Desempenho das Unidades Hospitalares na Contratualização e Realização da Produção Adicional (EMPA), constituída pelo Despacho n.º 2972/2020, de 19 de dezembro de 2019, da então Inspetora-Geral (publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 46, de 5 de março de 2020).” E “a extinção da estrutura matricial, com a designação de Unidade de Prevenção e Combate à Fraude (UPCF), constituída pelo Despacho n.º 2975/2020, de 19 de dezembro de 2019, da então Inspetora-Geral (publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 46, de 5 de março de 2020).”O despacho cria então “quatro equipas multidisciplinares”: “a) Equipa Multidisciplinar para a Gestão e Desempenho (EMGD); b) Equipa Multidisciplinar para a Qualidade e Direitos dos Cidadãos (EMQD); c) Equipa Multidisciplinar para a Prevenção da Fraude (EMPF); d) Equipa Multidisciplinar para a Transformação Digital e Cibersegurança (EMTD).”