Quinta da Chocapalha. Uma linhagem dedicada à vinha

Entre Lisboa e a serra de Montejunto, na Quinta da Chocapalha, no concelho de Alenquer, a família Tavares da Silva dá continuidade ao trabalho iniciado por um militar escocês que combateu os exércitos de Napoleão.
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Estamos a meia hora de Lisboa e, no entanto, tudo na paisagem nos remete para uma tranquilidade rural. Na Aldeia Galega da Merceana, concelho de Alenquer, o pelourinho, as casas alpendradas e os passos em azulejo da procissão do Espírito Santo evocam uma importância ancestral, testemunhada pelo foral concedido pelo Rei de Portugal no remoto ano de 1305. Mesmo que as rotas do turismo de massas não passem por aqui (e ainda bem), o património e a História estão um pouco por todo o lado, o que em boa parte justifica que a família Tavares da Silva tenha dado ao seu vinho mais exclusivo o nome de Guarita, já que, como nos dirá Sandra, enóloga e filha dos fundadores, as linhas de Torres, que na primeira década do século XIX resguardaram Lisboa da terceira invasão francesa, não estavam longe.

Tudo se passa na quinta de Chocapalha, a dois passos de guaritas e dessas casas de certo aparato onde, diz-se, pernoitava Dona Leonor, mulher de Dom João II e irmã de Dom Manuel I, quando se dirigia às suas Caldas, já então ditas da Rainha. Com 70 hectares, a quinta foi comprada em 1987 por Paulo e Alice Tavares da Silva, que a reestruturaram e deram continuidade às tradições desta terra vinhateira.

"Foi um processo lento, até porque a quinta estava muito degradada e tivemos não só de replantar a vinha como de recuperar as casas e a adega", conta-nos Paulo Tavares da Silva, oficial da Marinha aposentado, a quem as memórias de uma infância e juventude passadas na antiga quinta da família em Alcochete, alimentavam o gosto pela terra e pela vida de agricultor. A partir de 2000, com a filha mais nova do casal já dedicada de alma e coração à Enologia, começou então a produção de vinho para consumo externo. Hoje, saem daqui para o mundo vinhos com as castas brancas arinto, viosinho, gouveio, chardonnay e sauvignon blanc, tintos touriga nacional, tinta roriz, castelão, syrah, touriga franca, alicante bouschet, cabernet sauvignon e petit verdot. A gama varia entre vinhos de mesa correntes, como os que levam o nome da Quinta (branco, tinto e rosé), e outros mais exclusivos, como o Guarita (que podem atingir preços como 50 ou 60 euros por garrafa), com muita procura em mercados como os Estados Unidos, a maior parte dos países europeus, Brasil e alguns países asiáticos. "Foi a exportação que nos permitiu continuar a trabalhar durante o confinamento ditado pela COVID 19. Tudo estava fechado: restaurantes, hotéis, garrafeiras. Foi um período de grande incerteza e alguma angústia", lembra Alice Tavares da Silva, a suíça que, ainda em plena ditadura, decidiu ficar em Portugal por amor a um jovem oficial, mesmo que isso a tenha sujeitado a um apertado inquérito da polícia política.

Miguel Cavaco, um dos enólogos a trabalhar na Chocapalha, afirma que cerca de 70% da produção se destina hoje ao mercado internacional: "Temos 19 referências diferentes e tudo provém de uvas nossas, com uma média de 24 meses de estágio em barricas, quase todas de carvalho francês." Com uma equipa de 11 trabalhadores fixos, por aqui passam também estagiários oriundos de universidades estrangeiros, de países tão distantes como os Estados Unidos, China ou África do Sul. "Julgo que apreciam o facto de poderem aprender numa casa histórica, que trabalha com os processos tradicionais", admite o enólogo que vai dizendo também que "tradição não significa que não apostemos em investigação e inovação."

Com as vindimas a começar mais cedo (este ano foi a 18 de Agosto, com as uvas brancas já vindimadas na primeira semana de setembro) por causa da evidência das alterações climáticas, a atenção redobra. Aqui, a apanha obedece a critérios específicos, estabelecidos para que se obtenham os melhores resultados, de acordo com o estado de maturação da fruta. A vindima realiza-se separadamente, casta a casta, parcela a parcela.
Apesar das adversidades ambientais (aqui, como no resto do país, a falta de água é notória), Sandra, a enóloga da família, fala com entusiasmo da "identidade muito própria dos vinhos Chocapalha, que. de um modo geral, são muito clássicos, frescos e de grande longevidade, o que também é uma vantagem." Para além de ter revalorizado a casta arinto, tão tradicional em Bucelas, uma das regiões vitícolas mais antigas do país (já era daqui para a Ribeira das Naus, em Lisboa, que seguia o vinho para as armadas dos Descobrimentos), a família Tavares da Silva foi também uma das primeiras casas da região a "apostar no Touriga Nacional, que se adapta bem a este solo". Mais desafiante, admite Sandra, é o "alicante Bouschet, que produzimos em grande parte devido à teimosia e perseverança do meu pai." Tais traços de carácter do patriarca, revela-nos a filha, estão parcialmente na origem do nome Guarita, que designa a "jóia da Coroa" dos vinhos Chocapalha. "É também uma homenagem a este homem que nunca baixou os braços e a cuja persistência se deve tudo o que aqui está". O outro homenageado com este nome é o fundador, o escocês Diogo Duff, que aqui chegou integrado nas tropas do Duque de Wellington que repeliram os franceses comandados por Massena e por cá ficou, envolvendo a propriedade numa fortificação de tipo militar. Muito estimado por Dom João VI, que o condecorou por feitos excepcionais, deixou linhagem que foi proprietária da quinta até à década de 1980.

Sempre a inovar, a família Tavares da Silva rendeu-se já à tendência do enoturismo e, segundo Alice, que cuida deste "pelouro" tudo tem corrido da melhor forma: "Recebemos grupos de pequena ou média dimensão, que fazem visitas guiadas, observam todo o processo, fazem provas de vinhos ou mesmo uma refeição. Não temos as desvantagens do turismo de massas e recebemos pessoas que geralmente têm um interesse particular pelo tema." Tal como acontece com os consumidores dos vinhos da casa, a maior parte dos visitantes são estrangeiros. Com outras duas quintas da região (a Quinta de Sant"Ana e Quinta do Monte d"Oiro) integram o projeto de enoturismo designado por Lisbon Family Vineyards.

No princípio, vimos, foi o amor à terra da família Duff que explorou as potencialidades desta região. Mas quando aqui chegou, com a mulher e as três filhas pequenas (duas delas, Sandra e Andrea a trabalhar consigo), Paulo Tavares da Silva trazia consigo as lições e as boas memórias da Quinta da Coutadinha, uma propriedade de 200 hectares que foi de seu avô, e onde se cultivava vinha, azeite ("havia mesmo um lagar", recorda), cereais e havia gado. Ali passou boa parte da sua infância, aliás como as filhas (Sandra recorda que foi ali que nasceu o seu amor pelas coisas da Agricultura) e um pós 25 de Abril, que descreve como "rocambolesco".

Casado com uma jovem suiça, rumou a Angola onde fez as suas comissões na Guerra Colonial como fuzileiro naval: "Foi uma experiência de que gostei muito até porque, naquele setor em que estava, podíamos fazer alguma coisa pelas populações". Em Angola, nasceria, aliás, a sua filha mais velha -- as outras duas (ainda devido às condicionantes da sua vida militar) nasceriam em Lisboa e nos Açores. Reformado da Marinha, voltou à terra e recomeçou na quinta que agarrara a Portugal o escocês às ordens de Wellington: "Quando aqui cheguei fiquei deliciado. O que me fascinou era ser uma quinta e não um pedaço de terra. Aqui cheirava-se a tradição e isso vê-se pelas árvores. Aqui viveu alguém que também tinha uma paixão pela terra". Mas o encantamento não diminuiu as dificuldades e a necessidade de recomeçar do zero: "Tivemos que fazer tudo do princípio. Em primeiro lugar tivemos que reconstruir as casas porque, no final dos anos 80, quando aqui chegamos, ainda era lento e cansativo vir de Oeiras, onde morávamos, até Alenquer. Depois, foi a própria vinha que teve de ser replantada e as várias infra-estruturas muito melhoradas. Ainda pisei muitas uvas, até cheguei a pisá-las a dormir", brinca Paulo. Aos poucos, foram surgindo o novo lagar, a nova adega (só em 2013, depois de muita insistência junto do antigo executivo camarário) e até uma barragem. Tudo, frisam, dentro do "maior respeito pela natureza e de acordo com as boas práticas da agricultura sustentável, zelando pela saúde e longevidade das vinhas. O cuidado ambiental aplica-se também à estação de tratamento de águas residuais: os efluentes da adega são tratados antes de serem libertados na Natureza.

A Chocapalha é também terra de Pêra Rocha, que aqui também se cultiva numa área de quase 5 hectares, estando o espaço restante ocupado por matas variadas, algumas muito antigas (diz-se que a mais velha data do século XIV), e por oliveiras, que fazem uma bordadura nos limites da propriedade. Entre Lisboa e a serra de Montejunto, faz-se, assim, jus a uma tradição iniciada pelos romanos e que, segundo os historiadores, não esmoreceu sequer durante a ocupação do território pelos muçulmanos.

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