“Ninguém está à espera do que vai encontrar”, garante Nuno Alves, há 25 anos na profissão
“Ninguém está à espera do que vai encontrar”, garante Nuno Alves, há 25 anos na profissãoNuno Brites / Global Imagens

Quem quer ser guarda prisional?

São pouco mais de 3.800 os guardas prisionais em Portugal. Menos de 20% são mulheres. Queixam-se da remuneração, da falta de progressão na carreira, e sobretudo do estigma social a que dizem estar ainda sujeitos.
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Qualquer dia ninguém quer concorrer à Guarda Prisional”. A frase de desalento de Hermínio Barradas, proferida na pausa da hora de almoço, a partir do Estabelecimento Prisional de Elvas, diz bem do sentimento comum à maioria dos guardas prisionais em Portugal. No último concurso, em 2021, ainda apareceram 497 candidatos, mesmo sabendo que havia apenas 150 vagas. Depois das provas feitas, 111 ingressaram no curso. Mas apenas 103  chegaram ao fim. 

Hermínio é presidente da Associação Sindical das Chefias do Corpo da Guarda Prisional, um dos intervenientes nas negociações com a tutela e com o Governo na busca por melhores condições remuneratórias. Leva muitos anos de experiência dentro do sistema prisional e não tem dúvidas de que todas as mudanças que observa são para pior. “Estamos a lidar com reclusos cada vez mais jovens e mais violentos. Por outro lado, há outro indicador: a capacidade de organização de reclusos estrangeiros, pertencentes a organizações com outro tipo de recursos e competências”. Mas se os tempos mudaram, as cadeias nem por isso. “Ainda há pouco tempo houve uma reunião de chefes de cadeias e a frase que mais nos surpreendeu foi ‘esperamos mais dificuldades, mais desafios, e não há solução’. É isto”. 

No programa do Governo está explícita a valorização das forças de segurança pelo valor remuneratório, e especificamente a valorização da carreira de guarda prisional. Mas os guardas nem por isso estão muito otimistas. “As propostas que tem havido por força do eventual suplemento não contribuem de qualquer forma para a atratividade da carreira. E o que nós temos identificado é que ninguém quer concorrer a guarda prisional”, admite Hermínio Barradas. “Há um estigma social e para além disso junta-se a baixa remuneração, o contexto em que se trabalha, com condições horríveis, e a inexistência de progressão na carreira”. 

O retrato traçado pelas chefias bate certo com aquele que o DN encontrou na conversa com vários guardas prisionais, cuja média de idades roda os 45/50 anos. Há países onde a reforma destes profissionais acontece aos 55, mas não é o caso de Portugal. Há cerca de um ano, Hermínio participou numa reunião na Bélgica, a propósito da apresentação de um relatório pedido pela Comissão Europeia, e percebeu que afinal “é uma problemática transversal aos outros países da Europa, esta das dificuldades no sistema prisional”. 

“Mas, por exemplo, a  Roménia identificou o problema e atuou: valorizou os salários de entrada, num país cujo nível de vida está abaixo do nosso. E ficaram com 1200 euros líquidos, limpos, sem contabilizar os suplementos. Além disso, conseguiram a reforma imediata aos 55 anos, 45 dias de férias e casas do Estado (não é casas em bairros sociais) para quem se tiver que deslocar da sua área de residência”, ilustra. E este exemplo deixa-lhe perceber que também em Portugal seria possível. “Mas é preciso haver vontade política e administrativa. Ninguém espera que se resolva o problema na totalidade, mas podia atenuar-se”, sublinha. “E nós andamos aqui entretidos com 70 euros, que no caso das chefias dilui-se tudo em impostos e descontos”, conclui. 

O presidente da associação sindical frisa ainda que o Ministério “tem um relatório rigoroso do estado da arte do sistema prisional”, um conhecimento total de tudo o que se passa. Então porque não atua? “Talvez seja um custo suportável politicamente, até que aconteça alguma coisa, do género do que aconteceu no antigo SEF, no aeroporto. Se calhar depois resolvem isto tudo. Dá ideia de que estão à espera que aconteça alguma coisa”. 

O que se sabe para lá das grades é que estão a acontecer muitas tentativas de fuga, e mesmo fugas, que “está a subir o número de agressões a guardas”.  “Já fizemos uma declaração de escusa de responsabilidade em junho do ano passado. Note-se que  foram apreendidas cinco vezes mais armas brancas do que há três anos. O que isto quer dizer é que nós já não conseguimos garantir segurança dentro dos espaços. Os reclusos andam à vontade nos pátios”, como se o interior das cadeias estivesse “em auto-gestão”, adianta Hermínio Barradas. 

A verdade é que a atratividade da profissão não convence os mais novos. Um guarda prisional entra a ganhar 961 euros de salário base, e juntando todos os suplementos, pode chegar aos 1400. Feitos os descontos, consegue levar para casa 1.100 euros. Na última reunião com o Governo, foi-lhes pedida uma contraproposta ao suplemento de missão. O Sindicato Nacional da Guarda Prisional está irredutível: quer igualdade, o mesmo que foi atribuído à PJ. “Nós no ano passado tivemos 105 guardas agredidos. Na PJ nem conhecemos dados desses”, afirma ao DN Frederico Morais, tesoureiro do sindicato, que encabeça uma das três listas candidatas às eleições que acontecem hoje (ver caixa). 

“Somos invisíveis para a sociedade”

Cláudia Gomes, guarda prisional
Pedro Correia/Global Imagens

Quase metade da vida de Cláudia Gomes foi passada dentro da farda da Guarda Prisional. Tem agora 49 anos e já soma 21 naquela força de segurança, dentro das cadeias. É uma entre as cerca de 600 mulheres que integram os 3.885 guardas contabilizados nas últimas estatísticas, em 2022, o correspondente a menos de 20% do efetivo. Desde miúda que acalentava o sonho de entrar para a Polícia e tentou a sua sorte. Não correu bem. Até que um colega da PSP lhe sugeriu a Guarda Prisional. Lembra-se bem do que lhe disse, à época: “É melhor para ti, nem tens que fazer rondas, de andar ao calor e à chuva”. Afinal, “era uma ideia errada”, afirma Cláudia ao DN, ao cabo de duas décadas como guarda prisional. “Temos que fazer a periférica, para começar, e depois ninguém conhece a realidade para lá dos muros”, sustenta. 

Natural da Figueira da Foz, está há vários anos no Estabelecimento Prisional de Coimbra. Gosta do que faz, mas lamenta a falta de reconhecimento. “Somos invisíveis  para a sociedade. Só vamos à rua quando há diligências no tribunal e no hospital, talvez seja por isso”. E mesmo que o mundo pule e avance, “os guardas prisionais continuam a ser vistos como os maus da fita, por mais que muito façamos para mudar essa visão”. É o que tenta fazer todos os dias, agora como  responsável de um setor oficinal “onde temos 80 a 140 reclusos a trabalhar, uns a ter formação, outros na carpintaria, na encadernação, em várias áreas”. Deixou-lhe saudades a cadeia de Castelo Branco, onde só trabalhava com mulheres. “Foram quatro anos de que gostei muito. Tinha entre 100  a 130 mulheres. Depois fui colocada em Sintra, um estabelecimento com 800 homens. Nada a ver”. 

À distância do tempo, Cláudia Gomes conclui que, dentro das cadeias, “há de tudo, como no cemitério ou no hospital. Gente boa e gente má”. Não é lidar com os reclusos que a incomoda, mas sim constatar que “não houve evolução”. “ Eu deveria ser guarda principal de 2ºescalão, e sou de 3º. É um desalento”. 

Profissão degradada

O guarda Nuno Alves partilha da mesma deceção. Concorreu à Guarda Prisional  no ano de 2000, convicto de que “era mesmo aquilo que queria, ao contrário de outros colegas que concorreram para outras forças de segurança, mas como não entraram, acabaram aqui”. “Sempre tive o gosto de lidar com pessoas e fazê-lo dentro de muros era um desafio”, afirma. Afinal, só tinha entrado numa cadeia uma vez na vida, então para participar de um jogo de futebol com os reclusos, em Coimbra. Nada que se comparasse à realidade que encontrou profissionalmente, por exemplo, no EP Lisboa.

“Ninguém está à espera do que vai encontrar”, sublinha.  Daí mudou-se para Vale de Judeus. E nos últimos anos faz serviço no EP Leiria, depois de uma experiência na antiga Prisão-Escola, agora EP Leiria-Jovens. “As surpresas que tenha encontrado na profissão não são positivas. Acho mesmo que é uma profissão bastante degradada, sem progressão na carreira. No meu caso, em tantos anos (quase 25) só tive oportunidade de concorrer a chefe em 2023”, refere. Além disso, nota muitas diferenças nos reclusos. “Julgo que é a falência do que é a nossa sociedade, no enquadramento dos valores e respeito pelo próximo”. Se fosse hoje, “não voltaria a concorrer” à Guarda Prisional. 

Até ao final do ano estão previstas 125 saídas do universo dos 3.800 guardas. Além disso, cerca de 500 a 600 estão de baixa. “Não quer dizer que não haja quem se aproveite da situação, mas a verdade é que a pressão do serviço é tal, que muitos não aguentam”, aponta Hermínio Barradas.  Dos 20 comissários existentes, nenhum tem menos de 60 anos.

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