"Queixo-me do IRS. Pagamos salários justos e as pessoas recebem salários injustos"

A Bluepharma, farmacêutica 100% portuguesa, acaba de inaugurar uma nova fábrica. Exporta a quase totalidade da produção, mas é cá que emprega mais de 750 pessoas. Paulo Barradas Rebelo, presidente, afirma que é fundamental uma revisão dos preços dos genéricos.

No dia 1 de março, em que celebrou o 22.º aniversário, a Bluepharma inaugurou uma nova fábrica em Portugal e uma das maiores da Europa. Ali são feitos medicamentos genéricos oncológicos de alta potência. Em duas décadas, transformou uma unidade industrial que empregava 58 pessoas e que operava para o mercado nacional num grupo farmacêutico de 20 empresas e que emprega, atualmente, mais de 750 colaboradores. Tem delegações em Angola, Moçambique e Estados Unidos e, em 2022 , exportou cerca de 88% da sua produção para mais de 40 países.

O que leva a empresa a fazer este novo investimento de 30 milhões de euros?
A Bluepharma é um projeto que está numa área muito competitiva, que são os medicamentos genéricos. Portanto, desde o início, achou que era uma oportunidade pela responsabilidade social que envolve. Trazer medicamentos de qualidade a custos acessíveis para a população é algo que tem a ver connosco. E com a partilha com o erário público das poupanças que têm vindo através dos medicamentos genéricos [estimada pela empresa em 200 milhões de euros]. Depois, sendo feitos em Portugal, vão criar postos de trabalho e por cada caixinha que exportamos é um posto de trabalho que estamos a criar.

Para que servem os medicamentos Bluepharma?
São medicamentos de ambulatório. Cobrem hoje quase 75% das patologias que nós temos no dia-a-dia e que são dispensados nas farmácias, maioritariamente. Este projeto, com esta necessidade de diferenciarmos e de irmos ao difícil, deu-nos competências. Somos vistos no espaço europeu mais como uma empresa de desenvolvimento de medicamentos do que uma empresa industrial, porque a nossa fábrica é pequena à escala internacional, mas somos muito bons a desenvolver. Temos equipas magníficas, temos um sócio que é professor universitário, portanto, temos acesso à universidade desde o primeiro dia. Ao fim de sete meses já estávamos a rubricar um protocolo com a Universidade de Coimbra. Para entrarmos no mercado com o medicamento tem de haver um desenvolvimento prévio. Leva-se um ano ou dois a compilar um dossier. Quando temos o dossier pronto, temos propriedade industrial sobre esse dossier, e essa propriedade industrial é licenciável a outras empresas. Como somos uma empresa muito aberta ao mundo, licenciamos para praticamente todos os países do mundo. Desde os Estados Unidos, ao Vietname, à Austrália, temos medicamentos produzidos em Portugal para estes territórios mais exóticos, se assim se pode dizer. E para os Estados Unidos, que tem a FDA, que é a autoridade mais rigorosa e mais exigente do mundo. É um país muito importante, está lá o maior mercado de medicamentos do mundo. Nos Estados Unidos e Canadá está 52% do mercado mundial de medicamentos. Começámos com medicamentos convencionais, genéricos, mas começámos a sentir a necessidade de fazer medicamentos mais difíceis, onde houvesse um mercado menos competitivo, onde tivéssemos aqui algumas janelas de oportunidade.

"Começámos com convencionais, genéricos, mas começámos a sentir a necessidade de fazer medicamentos mais difíceis, num mercado menos competitivo, são os oncológicos de alta potência."

Optam então pela oncologia?
O mercado está cada vez mais na oncologia, é uma preocupação hoje das sociedades modernas o cancro. São medicamentos que são fundamentais, essenciais, críticos mesmo, mas que destroem os orçamentos da saúde, porque são muito caros.

E são de alta potência?
São os oncológicos de alta potência. Estão a passar a medicamentos genéricos neste momento. E, portanto, começámos há mais de 10 anos a desenvolver estes medicamentos, isto é um percurso de longo termo. Consolidámos muitas tecnologias que desenvolvemos e a rede de parceiros internacionais que criámos, o portfólio que temos. A lógica de termos um braço comercial com uma marca nas farmácias portuguesas em Espanha, em Angola e em Moçambique, agora já no Vietname e na Albânia, vamos tendo alguns países com a nossa marca, mas o nosso foco é de facto o desenvolvimento, a investigação e desenvolvimento. Temos 130 cientistas a trabalhar connosco e temos uma capacidade para desenvolver novos produtos muito grande.

A fábrica antiga é pequena , mas a nova já não e representa um investimento de 30 milhões de euros. Como se diferencia?
Sim, eu disse que é uma fábrica pequena, mas referia-me à nossa fábrica antiga. Antiga e atual porque foi muito remodelada e fizemos grandes obras. Mas a fábrica nova já não é uma fábrica pequena. Há milhares de cancros diferentes. E, portanto, o portfólio começa a diferenciar-se e o medicamento é cada vez mais personalizado e diria até que é estratificado. E hoje a genómica está a entrar na área da saúde e na medicina.

Numa altura em que tantos empresários se queixam da falta de mão de obra, onde conseguiu recrutar estes 100 qualificados?
Nós temos a vantagem - e vendemos isto como vantagem - de estar em Portugal e em Coimbra. Temos acesso à universidade e temos mão de obra altissimamente qualificada. Já trabalham connosco um número elevado de doutorados, muitos licenciados, temos 500 licenciados numa equipa de quase 800 pessoas, 70% são licenciados. Portanto, isto são sinais dos tempos. No fundo, a indústria há 20 anos atrás não tinha licenciados, hoje já é quase banal ter gente mais qualificada. E de facto, isto veio trazer uma modernidade e uma mudança à indústria, de um modo geral, impressionante. Porque são pessoas que pensam e o pensar é mais valorizado hoje do que o fazer. É mais importante inovarmos e criarmos, há aquela máxima da Fundação Francisco Manuel dos Santos, do "made in" ao "created in". Durante muitos anos aprendemos com as multinacionais a fazer e fazíamos bem, e, portanto, aprendemos a fazer, mas agora mais importante que fazer é criar, porque criar podemos mandar fazer fora e viver dessa inovação, dessa criação. E de maneira que temos gente muito criativa na nossa unidade, gente muito bem preparada, deste movimento, destes licenciados que hoje estão na indústria e que permitem também fazer uma conexão, que se fala há muitos anos, com as universidades.

A ligação principal é com Coimbra?
É com Coimbra, temos com outras universidades, mas a maioria, 95%, é com Coimbra.

Que percentagem é de estrangeiros?
Ainda não temos muitos estrangeiros.

O talento português consegue suprir as necessidades?
O talento português satisfaz bem, mas começamos a ter muitas ameaças, porque dissemos sempre aos nossos que era uma empresa escola, que queríamos fazer bem. Temos esta obsessão pela qualidade. Muitas vezes os outros vêm buscar pessoas e perdemos muita gente. Durante anos tivemos uma estabilidade enorme na nossa estrutura, mas desde a pandemia tem sido difícil reter talentos porque em Coimbra trabalham todas as multinacionais do mundo, sejam farmacêuticas, sejam tecnológicas, seja o que for e vêm-nos buscar muita gente para trabalhar a partir de casa para Nova Iorque, para Paris, para Frankfurt, para Barcelona, para todo lado. Temos uma competição hoje pelas pessoas, pelo talento, muito grande.

Qual é o fator principal de retenção na Bluepharma?
A Bluepharma tem seduzido muito pelos desafios, é um projeto muito desafiador às pessoas que vêm, desafiam, aprendem, temos formação para oferecer, temos uma série de programas de soft skills, mas temos de pagar mais. E, portanto, este é o desafio, é permitirem-nos ganhar dinheiro. E hoje as empresas, quando olhamos para o ranking das mil maiores portuguesas, das 1500 maiores, e ficamos quase escandalizados com os resultados das empresas. Hoje o empresário é muito castigado, os impostos são altíssimos, a conjuntura é muito difícil, cai tudo em cima de nós e de maneira que não é fácil ser empresário, ter uma empresa, ganhar dinheiro e remunerar bem. Ainda há dias ouvia na rádio o ex-ministro da Economia a dizer isto mesmo. Em vez de estarmos a tentar baixar o preço dos alimentos e o Estado a intervir na economia, devia estar a intervir nas empresas, porque se as empresas ganharem dinheiro, vão remunerar melhor as pessoas.

"Hoje o empresário é muito castigado, os impostos são altíssimos, a conjuntura é muito difícil, cai tudo em cima de nós. Não é fácil ser empresário, ganhar dinheiro e remunerar bem."

E como é que seria essa intervenção nas empresas?
Para já, deixem-nos trabalhar, a regulamentação é absolutamente gigantesca. Nós temos pessoas a verificar todos os dias as leis que saem, se têm impacto ou não, já chegámos a este ponto. Pagamos salários a pessoas que só estão a olhar para a lei e a ver que impacto é que isto tem ou não tem na nossa estrutura. A regulamentação é impressionante, sempre a sair e sempre no sentido de a empresa fazer mais um bocadinho, fazer mais isto. Tem sempre mais responsabilidade, tem sempre mais isto para fazer. E isto tudo somado é muito dinheiro no fim do ano. Até lhe dou dois ou três exemplos. Aqui há uns anos, em 2019, entendeu-se que havia medicamentos falsificados no mercado. Com a experiência que tenho de 30 anos, nunca vi medicamentos falsificados no mercado porque é um sistema tão fino e tão regulado que eu nunca vi. Mas de facto, na internet, surgem alguns medicamentos, e surgiram alguns para a disfunção erétil, que as pessoas não gostam de adquirir na farmácia e isto gerou falsificações. Nos medicamentos genéricos, uma vantagem que dou também, é que não há falsificações porque são tão baratos, ninguém falsifica coisas tão baratas como os medicamentos genéricos. Mas fomos obrigados, tal como toda a indústria multinacional a serializar. O que é isto de serializar? É por um código, um número de BI em cada caixinha que sai. E nas farmácias dão baixa desse código e sabem se o medicamento é do circuito ou se é falsificado, faz o rastreio. Isso custou-nos 2 milhões de euros, isto para uma empresa multinacional não é dinheiro, mas para uma empresa na área dos medicamentos genéricos, portuguesa e com 20 anos de idade, é um custo elevadíssimo. Depois hoje temos outras coisas muito interessantes que são as nitrosaminas e as azidas. As nitrosaminas e as azidas são compostos que existem na natureza, mas que são cancerígenos. Nós escrutinamos os medicamentos como nenhum outro produto que está no mercado é escrutinado. Portanto, os HPLCs, que são umas máquinas muito bonitas que temos nos nossos laboratórios de controlo de qualidade, nestes últimos 20 anos evoluíram imenso, toda a tecnologia evoluiu e estas máquinas evoluíram também muito. E ao fazer as análises, detetam o que não detetavam há 20 anos atrás e se detetam essas substâncias, as nitrosaminas e as azidas, por exemplo, temos de retirar imediatamente o medicamento do mercado. Porque podem ser cancerígenas com uma utilização permanente, mas se escrutinássemos o ar que respiramos na rua, como escrutinamos os medicamentos, amanhã proibíamos de sair à rua e de respirar. Está a ver como é que as coisas estão? Os cafés que tomamos de manhã, o ar que respiramos, portanto, tudo isto, se tivesse o escrutínio que têm os medicamentos, não vivíamos.

É um escrutínio exagerado e com encargos para as empresas?
É, com uns encargos muito grandes para as empresas.

Mas é só em Portugal ou é uma situação europeia?
É o mundo, acho que o mundo está cada vez mais regulado, mais vigilante e mais difícil.

Houve uma mudança na forma como produzem medicamentos por causa das regras do ESG?
Não, porque ainda é uma área extremamente regulamentada, por exemplo, na higiene e segurança, nessas normas que também implementámos logo quando adquirimos a fábrica à Bayer, certificámos pelas OCHAS de higiene e segurança. E, portanto, temos tido a preocupação de fazer o desenvolvimento farmacêutico e de usar cada vez mais solventes aquosos, pondo de lado os solventes orgânicos. Os solventes orgânicos são álcoois. Os álcoois são mais tóxicos que os aquosos, que são de água, para o meio ambiente e para os funcionários que todos os dias os manipulam. Portanto, aí está uma preocupação que tivemos de há 20 anos atrás começar a pôr de lado esses solventes orgânicos e tentar desenvolver os nossos medicamentos. É por isso que muitas vezes digo que os medicamentos genéricos são melhores que os originais. Em termos terapêuticos, eles só têm de fazer o mesmo que os medicamentos originais, têm de ser iguais, mas as tecnologias com que se desenvolveu o medicamento original há 20 anos atrás e um medicamento genérico hoje, como digo, os HPLCs e estas máquinas e toda a arte, toda a ciência farmacêutica evoluiu em 20 anos. Portanto, hoje temos medicamentos mais amigos do ambiente neste aspeto, não têm solvente orgânico.

Mas se é assim, por que razão alguns médicos ainda recomendam a marca original quando é o antibiótico?
Não, já não há muito isso. Acho que hoje é muito consensual e é tão consensual que hoje metade dos medicamentos consumidos nas farmácias portuguesas são medicamentos genéricos. E há muitos anos atrás, os medicamentos consumidos nos hospitais, 80% eram medicamentos genéricos, mesmo estando os doentes mais complicados nos hospitais. É uma falsa questão que aconteceu em todo o mundo, houve sempre resistências à entrada porque era uma novidade, uma coisa nova, empresas novas, e, portanto, havia esse sentir. Isso está completamente ultrapassado, que os medicamentos genéricos se afirmaram e que não há dúvidas relativamente à qualidade, eficácia e segurança.

Tem havido preocupação com o uso excessivo de antibióticos. A situação em Portugal é diferente do resto da Europa?
Há pouco tempo se dizia que Portugal consumia mais antibiótico que outros países. Reconheço também que houve um cuidado por parte da classe médica de receitar menos, os meus filhos já tomaram muito menos antibióticos do que eu tomei. E hoje a prescrição, nomeadamente nas crianças, já é muito mais cuidadosa do que era há uns anos atrás.

No investimento que fez contou com fundos comunitários?
Teve apoio de fundos comunitários. Nós rubricámos um acordo em 2020, em janeiro, nas vésperas da pandemia, de 48 milhões de euros, que dividimos em duas unidades industriais. Cerca de metade do valor foi para a unidade atual que temos, que é uma unidade construída por uma multinacional como a Bayer, que nos vendeu a fábrica impecável, nova, estava praticamente nova, com uma equipa pequenina e que temos vindo a somar, decaplicámos essa equipa. E nesta fábrica nova, 30 milhões foram para esta unidade nova e foi apoiado pelo PT2020. Temos um incentivo de 11 milhões, cerca de 20% que converte metade em fundo perdido se atingirmos os objetivos a que nos propusemos. Está aqui um trade-off interessante, porque só é a fundo perdido se conseguirmos atingir rácios de números de postos de trabalho, de produtividade, de exportações. Portanto, há um conjunto de indicadores que temos de cumprir para depois converter esse empréstimo em metade a fundo perdido.

Em termos de exportação, qual é o grande objetivo?
Neste momento, direcionámos a nossa empresa muito para os mercados internacionais e em boa hora o fizemos, porque mitigamos o risco. E o exportar dá-nos outra visão, outra orientação e, portanto, o produto da nossa inovação - e consideramos que a inovação é a pedra de toque de qualquer negócio -, inovar é tão simples quanto surpreender o cliente a cada momento. Porque se nós não tivermos a capacidade de surpreender o nosso parceiro, o nosso cliente, permanentemente, ele vai deixar-se seduzir pelo outro competidor, pela concorrência que é agressiva.

Exportar foi uma aposta desde o primeiro ano?
Foi o foco desde o início, exportamos 90%. As contas que fazemos, temos uma unidade grande nesta área e isto comparada com outras unidades europeias. Temos a única unidade em Portugal preparada para fabricar medicamentos oncológicos, que são todos eles medicamentos de alta potência, são medicamentos potentes, e estes medicamentos potentes é um movimento que não tem muitos anos, tem 20 anos. E, portanto, não há muitas unidades no mundo e com a capacidade que a nossa tem, na Europa está na média alta europeia, é uma das maiores. E aí temos capacidade para 300 milhões de unidades. Em Portugal, para lhe dar uma métrica, consomem-se nos hospitais portugueses cerca de 40 milhões de unidades, mas estamos preparados para produzir 300 milhões.

Por ano?
Por ano, sim. Portanto, se conseguirmos conquistar em Portugal uma quota de 10%, conquistaremos 4 milhões, mas temos 300 milhões em capacidade. Depois temos também dois parceiros muito importantes. Fazer uma fábrica faz sentido, mas para se fazer uma fábrica e para ter a coragem de fazer um investimento destes, tem de haver portfólio. Cruzámos um dos outros valores que temos e fizemos parcerias com muitas entidades do mundo e com duas empresas alemãs. Empresas essas que nos ajudaram a ir para o mundo, porque já tinham as suas equipas comerciais, tinham as suas equipas científicas também. Começámos a fazer codesenvolvimentos, porque desenvolver um medicamento, mesmo genérico, custa uma fortuna, além de que pode levar um ano ou dois a desenvolver.

Os empresários desta área queixam-se da dificuldade em fazer ensaios clínicos em Portugal. O que é preciso fazer?
É simplificar processos, criar ferramentas informáticas que possam ter acesso às autoridades, às empresas, de maior relação. Acho que temos aqui um exemplo que é paradigmático neste momento, que são as vacinas. Quando nós precisámos de ter vacinas, num ano tínhamos uma vacina cá fora e não o fizemos ignorando o cumprimento das regras de segurança, qualidade e eficácia. As vacinas são seguras, têm qualidade e são eficazes e num ano, aconteceu.

Mas isso quer dizer o quê? Demasiada burocracia?
Tem de haver mais cumplicidade entre a administração pública e as empresas, porque os problemas são os mesmos. Todos nós temos de estar juntos para os problemas que temos pela frente, para os enfrentar. Os problemas são tantos que se não estivermos juntos não conseguimos.

E se houvesse essa união de que fala, quanto tempo se poderia poupar num ensaio clínico?
Muitos anos. Um novo medicamento hoje pode custar 2 mil milhões de dólares, pode levar 20 anos e em 5 mil moléculas há uma que vinga. Isto vai permitir não desperdiçar tantas substâncias ativas.

Como é importante a presença nos países lusófonos, Angola e Moçambique?
É um bocadinho sentimental, quase, Angola e Moçambique, porque dizemos muitas vezes que o projeto nasceu em Moçambique e depois em Angola. Quando visitei a primeira vez aquele mercado, tinha farmácia e vejo uma cidade como Maputo, onde viviam mais de um milhão de pessoas e as farmácias estavam despidas de medicamentos. Não tinham medicamentos, prateleiras vazias. Tinha um funcionário que recolhia as receitas, ia de comboio à África do Sul, regressava ao fim da tarde com o saco cheio de medicamentos e dispensava às pessoas. Eu trabalhava nessa altura em farmácia de oficina e sentia as dificuldades dos portugueses para adquirir o medicamento, um bem de consumo tão importante quanto o medicamento. Os portugueses eram o povo, na altura, que mais horas trabalhava para ter acesso a uma caixinha de medicamentos, para comprar a casa, para comprar o carro, para educar os seus filhos, era difícil, mais difícil ainda do que hoje.

Quanto representa a Europa?
Nós começámos pela Europa, foi o nosso primeiro mercado e é ainda hoje o mercado principal, é para onde exportamos. África representa muito pouco, a Europa representa, se calhar, 70% das nossas exportações. Estados Unidos andará nos 20%. É simpático porque foi com esta atitude, como farmacêuticos de oficina, de farmácia de balcão, que fomos lá e pensávamos "os genéricos aqui faziam tanta falta" isto deve estar mesmo para arrancar. Claro que não arrancou, não é? Isto foi tudo muito lento.

Referiu que acabou de chegar de Angola. Como analisa o estado daquela economia?
Somos o número dois de medicamentos genéricos em Angola e Moçambique. Colocamos em Angola já quase um milhão de caixinhas de medicamentos, já tratamos algumas famílias, alguns doentes. Notei que há um mercado difícil, continua com muitas dificuldades, mas com alguns indicadores macroeconómicos simpáticos. Quem está no dia-a-dia queixa-se muito porque não tem a capacidade de ver de fora. Quem vai assim uma vez por ano, como é o caso, sente que há mais confiança no mercado, a inflação está mais controlada, as taxas de juros estão mais baixas, o dinheiro está mais controlado. Há uma série de indicadores que nos dizem que há mais confiança e nós sentimos isso. Temos comprado mais, o ano passado crescemos a um ritmo bom, tivemos anos muito difíceis com a pandemia.

"Somos número dois de medicamentos genéricos em Angola e Moçambique. Colocamos em Angola já quase um milhão de caixinhas. É um mercado com muitas dificuldades, mas com indicadores a melhorar."

Os produtores de medicamentos, queixam-se dos preços a que o Estado paga os genéricos. Peter Villax, presidente da Associação Health Cluster Portugal, diz mesmo que os genéricos deviam subir 8% a 9%. Concorda?
Os genéricos são os principais responsáveis pelas enormes poupanças que se fizeram desde a troika para cá. Há um contador muito interessante na internet, no site da Apogene, que é uma parceria com a Associação Nacional das Farmácias, que dá, ao segundo, a poupança que estamos a ter. No ano passado poupámos 500 milhões, isto é muito dinheiro, isto dava para fazer alguns hospitais. Portanto, a poupança dos genéricos é muito grande, são os maiores aliados do Estado. Todos os políticos deste país deviam apadrinhar os medicamentos genéricos.

Não o fazem?
Muitas vezes não. Não só na lógica da poupança para o Estado, mas na lógica do investimento. E acho que é aí que se tem de pôr o foco, é no investimento que estas empresas geram nos países onde estão. Nós, por cada posto de trabalho, criamos três postos indiretos. Somos empresas altamente exportadoras, somos empresas que fazemos parcerias com os universitários permanente, temos dos maiores consumidores de investigação e desenvolvimento do país, há um potencial científico nacional. Há um inquérito que se faz todos os anos na ciência e tecnologia e esse inquérito posiciona a Bluepharma, uma empresa com 22 anos, entre as três que mais investimento fazem na área da saúde, em investigação e desenvolvimento. Isto é desenvolvimento para o país, isto é financiamento das universidades, isto é conseguir ter produtos inovadores que possam ser vendidos lá fora com valor e é aumentar o PIB. E aumento do PIB é o que nós precisamos porque é mais riqueza para os nossos e isso é distribuível.

Há um certo estrangular de preços da parte do Estado?
Há. Estamos estrangulados e digo ao senhor primeiro-ministro que não entendo como é que tudo sobe, as taxas de juros, os combustíveis subiram, etc, em energia na Bluepharma, até junho pagávamos uma média de 20 mil euros por mês em regime fixo. Agora não há regime fixo, é variável. Pagámos em julho cinco vezes mais e em agosto seis vezes mais. Nós sabemos como é que as coisas estão, está tudo a subir, mas nos medicamentos há 20 anos que os preços não sobem. E os medicamentos genéricos têm um mecanismo de entrada no mercado e de regular todos os anos que baixam o preço todos os anos. Portanto, isto neste momento começa a ser insustentável, nós temos matérias-primas a crescer entre 100 e 150%, isto quer dizer que duplicaram o preço.

"Estamos estrangulados no preço. Digo ao senhor primeiro-ministro que não entendo como é que tudo sobe, mas nos medicamentos há 20 anos que os preços não sobem."

Começa a ser insustentável produzir medicamentos genéricos em Portugal, com este preço?
Não é só em Portugal, porque nos outros países acontece exatamente a mesma coisa.

Tem esperança de que haja uma revisão deste preço dos medicamentos genéricos pelo Estado?
Já houve agora uma pequena revisão no dia 1 de março, no dia em que abriu a fábrica nova, mas a legislação é tão intrincada que não se pode mexer só numa variável, porque os medicamentos genéricos já estão autorizados a ter um preço maior, só que as empresas não utilizam esse preço maior porque saem de um cesto dos mais baratos. Os cinco mais baratos são os que o Estado comparticipa, se nós aumentamos o preço, saímos desses cinco mais baratos e deixamos de ser comparticipados. Não podemos fazer essa maldade aos nossos doentes que estão habituados a tomar os nossos medicamentos e que pagavam 30% ou pagavam 15%, e passam a pagar 100%.

Então, qual é a solução?
Devia haver uma discriminação positiva para os medicamentos genéricos. E depois há outros mecanismos. Nós pagamos taxas que não faz sentido, temos uma taxa especial, extraordinária, que vem da troika, mas é extraordinária, mas existe há oito anos. Portanto, começou a ser, começou a dar, e é uma taxa de 2,5% sobre a faturação. Isto, se pensarmos que os lucros neste momento estão quase zerados, 2,5% sobre a faturação é muito dinheiro, e nos hospitais é 14%.

Nesta conjuntura, seria importante suspender medidas da troika que foram ficando?
Acho que é o mínimo, não é? E depois, porque é que os medicamentos só agora, a 1 de março, depois de termos uma guerra, uma pandemia durante dois anos ou três, uma guerra, com esta inflação toda, demoraram este tempo a fazer este acerto? E é um acerto que não vai ter efeito.

A solução não acomoda esse custo. E que aumento é que foi definido? Em que percentagem?
5% para os medicamentos até 10€ e 2,5% até 15.

O presidente do Health Cluster falava em 8% a 9% de aumento generalizado. Seria essa a medida justa?
Sim, era uma ajuda, acho que sim.

Até ao final da legislatura, que expectativa tem do ponto de vista da política de saúde?
Ouvi há dias o ministro da Saúde e ele é um homem que parece um reformador, que tem muita vontade de mexer e de fazer. Estamos na expectativa de ver o que acontecerá, já aconteceram algumas coisas da parte dele, mas ainda é muito cedo.

Outro tema que tem marcado a atualidade é a escassez de medicamentos. Como é que se dá a volta à situação?
Uma das razões da escassez são os preços muito baixos e nos medicamentos abaixo de 10 euros, já tem um preço quase industrial, portanto a margem de lucro que se extrai é residual, zero ou negativo até. E, portanto, nestes produtos, quanto mais vender, mais se perde. É natural que a empresa não tenha vontade de os ter no mercado, este é um aspeto. O outro é a escassez de matérias-primas porque, de facto, parece que o mundo acordou e nós temos muita dificuldade com as matérias-primas. Na nossa área dos medicamentos genéricos, o planeamento é fundamental. Uma fábrica que planeie bem consegue gerir a sua conta, mas uma fábrica que planeie mal é um desastre. Durante 20 anos habituámos os nossos clientes, fomos sempre muito consequentes e isso dá-nos notoriedade e visibilidade. Alguma estabilidade na gestão também. Somos gente cumpridora, comprometemo-nos em fazer isto e fazemos isto naquele tempo certo. De há um ano para cá que é impossível cumprir, temos N encomendas em atraso. Também a outra indústria que nos fornece a nós tem N encomendas em atraso, portanto, o mercado está todo atrasado.

Desafios para 2023?
Os desafios para 2023 é pôr a fábrica nova a trabalhar. É uma indústria altamente regulamentada, como acabei de dizer, em que as validações dos processos, as transferências de fabrico, para além de custarem dinheiro, custam tempo, muito tempo. E, portanto, temos de passar o produto, ir fazendo, ir vendo, ir medindo, ir apontando os registos. Eu dizia muitas vezes, quando mostrava a fábrica, que nós fazemos papel e às vezes medicamentos, tal é o volume de papel, tal é a burocracia. O maior é esse, é pôr a fábrica a funcionar.

Na Europa, após a pandemia, criaram-se expectativas de reindustrialização. O que estará a falhar?
Estas coisas demoram muito tempo. Temos sempre muita ansiedade que políticos têm de fazer, mas acho que um dos problemas da sociedade é termos políticas a quatro anos. Mas este movimento da reindustrialização da Europa é muito importante e, portanto, temos esperança que venha essa reindustrialização. Temos esperança também que a área farmacêutica esteja no fundo do foco de tudo isto com a pandemia. Com a pandemia pusemos a ciência no centro e a ciência farmacêutica. Portanto, a coisa mais importante para a nossa vida era termos uma vacina, agora já a temos, nem pensamos nisso, é secundário.

Ainda vale a pena investir em Portugal?
Acho que vale. É o país que nós conhecemos e escolhemos.

Já teve tentações de deslocalizar a fábrica?
De vez em quando temos, mas é uma miragem. Até porque ouvia um CEO de uma empresa estrangeira que dizia que a melhor forma de reter as empresas é com a investigação e desenvolvimento. Mas deslocalizar um centro de investigação e desenvolvimento que tem conexões com as universidades, que tem uma série de aderências ao país, é quase impossível.

O ministro da Economia, há pouco tempo, defendeu uma baixa do IRC, que deu muita polémica dentro do Governo. Seria importante haver aqui um sinal para as empresas do ponto de vista fiscal?
Sobre o IRC, nunca me queixei, porque nunca pagámos muito IRC, porque há um conjunto de medidas que têm a ver com os desígnios do país e que têm sido até transversais aos vários governos que têm passado, que é a aposta na inovação. Empresas que apostem na inovação deduzem nos impostos esses montantes, empresas que façam investimento têm outro mecanismo de deduzir esse investimento nos impostos, empresas que empreguem gente têm também. Por aí, acho que as coisas estão relativamente bem feitas. Queixo-me muito é do IRS, porque sinto que somos um país que já paga salários justos e as pessoas recebem todas salários injustos, porque a carga fiscal é dramática. Muitas vezes não há incentivo a aumentar, mas já me aconteceu aumentar salários e dizerem-me "não vale a pena, porque vou subir de escalão e vou pagar mais". Não há qualquer incentivo a pagar mais às pessoas e acho que isso é tratar mal os nossos.

Expectativas quando ao PRR?
O nosso PRR começou há 22 anos, porque há 22 anos que nos entendemos com centros universitários e vários parceiros. Portanto, a confiança não se faz de repente, nem por decreto.

Participa nalguma das agendas mobilizadoras do PRR?
Temos uma agenda mobilizadora para Coimbra e é financiada.

Em quanto?
Foram 30 milhões.

Já está em execução?
Já está, já estamos a receber dinheiro e já está em execução.

rosalia.amorim@dn.pt

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