Foi na madrugada do dia 13 de dezembro de 2023 que, de repente, Andrea Pereira, 38 anos, cabeleireira, ouviu um estrondo. “Rebentaram a porta, partiram a porta da cozinha, a do meu quarto, entraram no quarto das minhas filhas, apontaram as armas às minhas filhas, e a mais nova, que tinha seis anos, fez xixi pelas pernas abaixo”, conta a mulher, uma das moradoras do bairro do Casal da Mira, no concelho da Amadora..A busca terá acontecido devido ao furto de um telemóvel. “O meu filho estava dentro do autocarro onde roubaram um telemóvel. Eles tinham um mandado e mostraram-me uma foto e eu comecei a rir-me na cara deles, porque não era o meu filho”, afiança Andrea Pereira. “O meu filho chegou e ficaram todos a olhar para ele porque realmente não correspondia nada à foto. O meu filho é alto; a pessoa em questão era baixinha, preta - mas isso somos todos pretos - mas bem mais escuro e magrinho que o meu filho”..Ainda assim, a moradora relata um alegado cenário de caos durante a busca policial. “Algemaram o meu companheiro todo nu - porque ele ainda estava na cama - e entraram aos berros a dizer para nós irmos para o chão. Questionei porque é que eles estavam a fazer aquilo, gritei, porque realmente achei aquilo um descalabro total. Apontarem armas a crianças indefesas?”. .Andrea Pereira insurge-se contra o que, de acordo com o seu relato, lhe aconteceu. “Eles invadiram, literalmente, a minha casa. E ainda disseram que bateram à porta. Mas eles não bateram à porta. Na casa das pessoas normais bate-se à porta”. A família acabou, segundo a moradora, por ir para a esquadra. “Na esquadra ainda fomos sujeitos a algumas humilhações”, descreve..Perante a situação, Andrea Pereira resolveu contratar uma advogada e apresentar uma queixa-crime, no Ministério Público (MP). Catarina Morais, a advogada, afirma: “A questão aqui é a proporcionalidade da força. Ora, num crime de furto de um telemóvel como é que se chega ao ponto de arrombar e partir uma porta? Às vezes isso pode acontecer mas com suspeitas de crimes violentos e graves”..Catarina Morais acrescenta: “A filha mais nova da Andrea tinha seis anos. Mandar uma criança de seis anos deitar-se no chão é completamente desproporcional. Mais tarde, ficou demonstrado que o filho da Andrea, que também era um menor de 17 anos, nem sequer tinha nada a ver com o tal furto. Mas mesmo que tivesse, mesmo que ele tivesse praticado um crime dessa natureza, nada justificava este tipo de atuação policial”..A advogada resume, ainda: “Foi apresentada queixa no MP por se entender que foram violados, pelos agentes da PSP, os deveres inerentes às suas funções, desde uso excessivo da força, armas de fogo, e desrespeito pela dignidade humana. Isto de forma muito resumida porque a queixa é longa e invoca várias disposições legais”..Andrea Pereira mostra-se inconformada. “Infelizmente, nós vivemos num bairro social onde, de vez em quando, eles precisam de pessoas que correspondam ao estereótipo para fechar algum processo”..Ao DN, a PSP responde que “não desenvolve quaisquer abordagens policiais diferenciadas em razão de locais específicos, situações socioeconómicas ou outras”..Em relação aos factos descritos por Andrea Pereira e a respetiva queixa-crime que apresentou junto do MP, a polícia afirma: “Por um lado não deve, nem pode a PSP pronunciar-se relativamente a casos em investigação sob pena de eventual violação do segredo de justiça ou de prejuízo para eventuais investigações em curso”..Andrea é só uma das moradoras do Casal da Mira a queixar-se da alegada violência policial. Aliás, um grupo de moradores, com o apoio do movimento cívico Vida Justa, enviou uma carta ao ministério da Administração Interna (MAI). Denunciam as supostas situações de abuso e agressividade bem como ações musculadas da PSP no bairro e querem ser ouvidos. .Ao DN, o MAI confirma que recebeu a carta e já pediu explicações à polícia. “Foi recebida a comunicação em que não são identificadas, em concreto, as referidas ‘ações musculadas’. Assim, foi pedida informação à PSP sobre o assunto”, responde o gabinete da ministra Margarida Blasco. .PSP lidera queixas na IGAI.Certo é que todos os anos entram centenas de queixas na Inspeção Geral da Administração Interna (IGAI) contra forças de segurança. E a PSP surge no topo das reclamações. Isso mesmo pode ser confirmado no Relatório de Atividades da IGAI 2023, o último disponível..Em 2023 foram apresentadas 424 queixas, só por via online na página da IGAI, relativas às forças de segurança e outros serviços do MAI . Destas, 251 incidiram sobre a PSP. No mesmo relatório pode ler-se: “No conjunto das queixas/participações apresentadas dados evidenciam um número muito significativo de situações relativas a factualidades classificadas como ‘violação de deveres de conduta’ (608) e ‘ofensas à integridade física’ (349), correspondendo, respetivamente, a 42,34% e 24,3% do total registado”..De novo, a PSP lidera com 128 denúncias de ofensas à integridade física e 242 de violação de deveres de conduta. Existiram, ainda, 56 queixas por abuso de autoridade. A principal fonte emissora de denúncias é o cidadão seguido das entidades judiciárias através da emissão de certidões. “No que diz respeito às entidades visadas com as denúncias e certidões destaca-se em primeiro lugar a PSP, seguida da GNR”, lê-se. Um gráfico mostra que houve, ao todo, 616 denúncias e certidões visando a Polícia de Segurança Pública. .“Eles entram encapuzados e de armas em punho”.Entretanto, no Casal da Mira, as queixas repetem-se. Num dos cafés do bairro, a proprietária, Cátia Moutinho, 41 anos, relata: “O meu estabelecimento leva constantemente com a polícia. Eles chegam aqui, com clientes no café, até mesmo pessoas de idade, metem as pessoas na rua, com as mãos encostadas à parede, e assim chegam a ficar mais de uma hora”. A empresária recorda uma ocasião que terá sido particularmente complicada. “Estava uma noite gelada e uma das senhoras, uma idosa, chegou a fazer xixi pelas pernas abaixo, porque não a deixaram ir à casa de banho. Isto passa-se com pessoas que não têm problemas nenhuns com a justiça”, reforça. “Eles entram aqui encapuzados e de armas em punho”. .Ao DN, a polícia defende-se: “A PSP desloca-se várias vezes por dia ao bairro Casal da Mira, como a qualquer outra zona do concelho da Amadora ou do país, no estrito e escrupuloso cumprimento da Lei, não verificando, até ao momento, nem lhe tendo sido comunicada, a violação de qualquer dever funcional ou incumprimento de qualquer conduta profissional por parte de policias da PSP".