O sistema de saúde é o sistema social mais complexo que existe num país. Não pode ser governado ‘dossier a dossier’. Requer uma abordagem sistémica.” A frase está inscrita no relatório da Fundação para a Saúde - que hoje é lançado publicamente e que servirá de tema para vários debates em todo o país, durante meses - e é uma das que melhor exemplifica, por um lado, a complexidade que é gerir um sistema de saúde universal, como o português, e, por outro, o caminho que deve ser seguido para o melhorar..Ao mesmo tempo, é uma frase que deixa críticas às governações que têm optado por gerir a Saúde dossier a dossier, como, por exemplo, programas para “Urgências”, “cirurgias”, “acesso”, abdicando de uma “uma abordagem sistémica”, como deveria ser, e envolvendo todos os agentes do sistema..O documento SNS em Foco 2024, que tem na sua construção especialistas do setor da Saúde, alguns ex-dirigentes de organismos da Saúde, ex-bastonários do setor, e fundadores do Observatório Português dos Sistemas de Saúde, teve como foco uma análise ao serviço público e ao sistema de saúde em Portugal, desde a sua génese até aos últimos oito anos e sete meses. Há elogios, sobretudo pelos “impulsos transformadores”, iniciativas para a mudança, que foram sendo lançados ao longo dos 45 anos do SNS , mas também críticas aos ciclos políticos anteriores marcados por modelos de governação ultrapassados, que deixaram para trás “iniciativas reformistas”, por falta de capacidade na sua concretização, mas também já a este ciclo político, sobretudo pelo que pode significar a passagem repentina de “um Plano de Emergência do SNS (conforme está no Programa do Governo), para um Plano de Emergência e Transformação da Saúde (PETS) - que não dá relevo à principal necessidade do SNS (atrair e reter profissionais de saúde)”..Segundo os especialistas, esta mudança “mais parece significar, não uma transformação do SNS, mas do sistema de saúde (com a promoção de um setor privado, sustentado pelo próprio Estado, e concorrente do SNS, para recursos humanos escassos)”..Mas também são feitos alertas para o futuro, sobretudo em relação ao rumo que pode tomar o SNS ou o sistema de saúde. “Contemplam-se dois cenários alternativos para o desenvolvimento do sistema de saúde: (1) soberanista, centrado num SNS de qualidade; (2) transnacional, caracterizado pela industrialização da prestação de cuidados de saúde, com centros de decisão algures no espaço transnacional”..E a partir daqui, a leitura é simples: ou se aposta, efetivamente, num SNS com qualidade, voltando-se à génese, ao foco em que no centro da saúde estão as pessoas, tanto utentes como profissionais. Ou, então, e sob o argumento de que “as unidades do SNS deixaram de ser atrativas para os profissionais e há que promover soluções privadas”, corre-se o risco de a Saúde, em Portugal, passar mesmo à fase “industrialização”, que mais não é do que entregar o centro das decisões “a redes transnacionais” de prestação de cuidados, que, por norma, assentam em fundos financeiros, dos quais não se conhecem os decisores..Na opinião dos relatores do documento, “a existência de um SNS capaz é o principal obstáculo à industrialização da prestação de cuidados de saúde no sistema português”, mas para que tal aconteça são precisas mudanças. Mas, alertam, “as transformações necessárias no SNS só são possíveis com um Estado empreendedor, criativo e inteligente, com uma ‘abordagem de missão’, transversal aos diferentes setores do Estado”..Por isso, reforçam, o caminho recomendado é o que coloca “o cidadão no centro do sistema” e que apela à sua participação na mudança, porque “só assim se conseguirá “a mobilização das pessoas para se interessarem pelo sistema de saúde de que precisam e pelo seu SNS”. É preciso levar a população “a promover, apoiar e a participar numa governação da Saúde”, de forma a estar presente “a cultura, a imaginação e a vontade necessárias para canalizar para soluções de interesse comum, o enorme potencial de inteligência, conhecimento e inovação disponíveis na sociedade atual”..O relatório reforça mesmo que, qualquer reforma na Saúde, para tentar resolver aquele que é hoje o seu principal problema - o acesso aos cuidados, devido à falta de recursos humanos -, precisa da colaboração de todos, sublinhando: “Para ‘chegar a tempo ao futuro’ é indispensável desenvolver no sistema de saúde e no SNS um dispositivo de análise, planeamento e direção estratégica”..O que ficou para trás.Este documento, que é assumido como uma missão da Fundação para a Saúde e do seu Observatório, precisamente como forma de combater “as imperfeições da democracia”, começa por fazer a caracterização do sistema de saúde português, explicitando os compromissos que assumiu, as expectativas que gerou em relação ao desenvolvimento do SNS e onde chegou. E diz mesmo que “os portugueses têm razões para se sentirem desencantados com o serviço público e com a sua governação, explicando..“O SNS goza de autonomia administrativa e financeira e estrutura-se numa organização descentralizada e desconcentrada, compreendendo órgãos centrais, regionais e locais, e dispondo de serviços prestadores de cuidados primários e serviços prestadores de cuidados diferenciados”, mas esta disposição, “fundamental para o desenvolvimento do SNS, suscita, no entanto, na cultura política portuguesa, muitas incomodidades. Os responsáveis políticos da saúde sentem, frequentemente, que o seu poder no exercício do cargo está diretamente dependente da sua intervenção direta na gestão do SNS, quando lhes parecer conveniente”. De seguida faz referência, por exemplo, “às nomeações de alta responsabilidade no SNS de candidatos sem as condições curriculares mínimas para o desempenho dos respetivos cargos que têm resultado em múltiplos embaraços, e que constituem uma séria desconsideração para quem trabalha no SNS e para quem recorre aos seus cuidados”..Este tipo de gestão ou de governação levou a que muitas iniciativas fracassassem, porque perderam força ao longo tempo, referindo-se, por exemplo, à reforma dos cuidados primários encetada na década de 1990, pensada e aprovada por um ministro do Governo PS, e depois travada por outro ministro de outro Governo PS..A falta de sustentabilidade desta reforma fez com que o conceito de cuidados de saúde, via Unidades de Saúde Familiar - que teve, no início, uma adesão positiva dos profissionais -, levasse mais de duas décadas a ser aplicado e estendido a todo o país..Mas são dados outros exemplos como o Regime Eletrónico do Utente, uma medida pensada para melhor articular os cuidados ao utente, nunca perdendo o percurso que a doença o obrigava fazer no SNS. A medida continua a integrar alguns programas eleitorais, mas da forma como foi definida até já está desatualizada..Em relação aos ciclos políticos mais recentes, o relatório diz que a governação deixou para trás uma avaliação independente da gestão da pandemia da covid-19, o que já foi feito por outros sistemas e países, para daqui retirarem “os ensinamentos necessários da experiência marcante para o futuro”..A situação leva os especialistas a lembrarem que “não existe um mecanismo que faça a ‘inscrição do conhecimento’ na governação da Saúde”, o que é fundamental para se melhorar o sistema. E isto só acontecerá se “o sistema político conseguir superar a incapacidade que tem tido para sustentar os impulsos transformadores”, mas só acontecerá também se o sistema político “adotar novos princípios, processos e instrumentos de governação e governança na Saúde”..Na opinião dos especialistas, um dos desafios atuais é a necessidade de se definir “uma estratégia plurianual, explícita e transparente, de cooperação entre os setores público, social e privado, perfeitamente enquadrada num plano, também plurianual, de investimento e desenvolvimento do SNS”..Os desafios atuais e o futuro.Neste capítulo, o relatório dirige-se ao ciclo político atual e chama a atenção para três aspetos que considera “particularmente significativos”, como “a importância de resolver o acesso efetivo aos cuidados no SNS”; a necessidade de se estabelecer, urgentemente, uma política para as profissões de saúde - principal responsável da atual crise no acesso ao SNS -, entre outros aspetos; e esclarecer se o “Plano de Emergência e Transformação na Saúde” se destina, de facto, a promover a necessária transformação do SNS ou se, pelo contrário, está desenhado para transformar a natureza do sistema de saúde português”..Em relação ao futuro, reforça a mensagem de que o sistema de saúde português foi pensado para prestar “cuidados de saúde integrais, para todos, por todos”, e que este princípio “é uma necessidade, não só para a saúde, mas também para o futuro dos países que aspiram a manter-se soberanos, num mundo cada vez mais injusto”..Portanto, ou se mantém “a soberania do SNS” ou se mantém “a regressão progressiva do SNS e a sua substituição por um setor privado de prestação de cuidados”. Sendo certo, explicam, que “a contínua degradação do SNS levará, a seu tempo, no domínio da prestação dos cuidados de saúde - de forma similar ao que já ocorre em relação a outras situações, como o tratamento da insuficiência renal crónica -, à expansão de cadeias transnacionais ‘industrializadas’ na prestação de cuidados de saúde”..O relatório SNS em Foco 2024, que tem na sua assinatura nomes como Pedro Maciel Barbosa, presidente do Observatório, Patrícia Barbosa, Constantino Sakellarides, Ana Escoval, Aranda da Silva, Maria Augusta Sousa, Pedro Ferreira e Manuel Lopes, entre muitos outros, além de ser um “convite ao debate na sociedade civil”, que os seus autores consideram inexistente, assume um compromisso, o de continuar a combater as imperfeições em democracia, já que: “As imperfeições da democracia combatem-se com mais democracia, não com menos.”.anamafaldainacio@dn.pt