Quando metade da população é doente estará na hora de mudar?
Os médicos que praticam a medicina integrativa desafiam a mudar a alimentação e o estilo de vida para reverter doenças crónicas. Usam a modulação hormonal, ainda um tabu, e criticam um sistema em que metade dos portugueses têm duas ou mais doenças crónicas.
E se uma mudança na alimentação e no estilo de vida forem capazes de inverter doenças como diabetes, hipotiroidismo, asma, doenças autoimunes e outras sem diagnóstico claro? Parece demasiado bom para ser verdade, e até polémico, mas é o que propõem os médicos que praticam a medicina integrativa. E que não convivem bem com o facto de metade dos portugueses sofrerem de duas ou mais doenças crónicas, uma multimorbilidade considerada "excessiva".
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Esta abordagem médica assenta num reset alimentar e de hábitos, porque afirma que somos o que comemos (e não comemos), o que nos movemos (ou não movemos) e também o que pensamos e sentimos. E, já agora, como dormimos e nos conectamos com os outros também é relevante.
Segundo a definição da Sociedade Portuguesa de Medicina Integrativa (SPMI), esta mais não é do que "a evolução do pensamento médico e um reflexo da expansão da consciência na área da saúde, conjugando a medicina convencional com a medicina complementar, baseada em evidência científica". É quase uma filosofia de vida, como assume a presidente da SPMI, a médica Ana Moreira, para quem "esta é a medicina do futuro e deveria já ser a do presente" no âmbito do Sistema Nacional de Saúde.
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A mestre em medicina biológica e anti-envelhecimento, que trabalha na área da oncologia integrativa, acredita que "esta medicina vai tornar-se a norma, até porque serão os próprios pacientes a pedir que assim seja". Isto porque, "a esmagadora maioria dos pacientes experimenta melhorias sensíveis e, muitas das vezes, sem necessidade de medicação".
Ana Moreira distingue as doenças agudas das crónicas, que "é onde a medicina integrativa obtém os melhores resultados". Estamos a falar, por exemplo, de diabetes, cancro, asma, doença de Chron e outras doenças auto-imunes, explica. " O que se pretende é estimular as forças curativas do organismo para que tudo volte a funcionar de forma adequada. É necessário reeducar os hábitos e eliminar tudo aquilo que possa alterar o equilíbrio interno, como, por exemplo, alimentos e substâncias alérgicas, metais pesados, fontes de desequilíbrio eletromagnético ou problemas odontológicos. Em resumo, trata-se de tentar manter em perfeito estado as funções vitais do indivíduo através de técnicas de prevenção e/ou à deteção de doenças incipientes" -- este é o conceito resumido no site do Centro de Medicina Integrativa Dra Ana Moreira, no Porto.

Ana Moreira preside à Sociedade Portuguesa de Medicina Integrativa e organizou congresso europeu no Porto.
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Mas afinal o que distingue uma consulta de medicina integrativa de outra qualquer? Antes de mais, "procura ver o paciente como um todo, para além do que as análises laboratoriais indicam", sendo que estas análises são, elas próprias, mais detalhadas para medir indicadores que não constam dos típicos exames de rotina. Paralelamente, os pacientes são questionados sobre o histórico de doenças, os seus hábitos e horários alimentares, de consumo de álcool, tabaco e medicamentos, de exercício, de sono, de exposição ao stress, a agentes tóxicos e ainda sobre o estado da sua saúde mental, bem como do seu contexto familiar e social. Afinal, é sabido que alguns sintomas físicos podem ter causas psicológicas.
"Não estar doente não é o mesmo que ter saúde"
Essa é também a linha seguida por Sinthia Puttini que trocou a cirurgia estética pelos estudos sobre obesidade e evoluiu para a medicina integrativa e anti-envelhecimento. "No fundo, está tudo ligado: a obesidade é sinal de que algo não está bem no organismo e fazer medicina preventiva também é fazer medicina anti-envelhecimento. Envelhecemos à mesma, mas melhor", diz a médica que trocou o Brasil por Portugal há mais de uma década e dá consultas entre Lisboa e Cascais.
A clínica chama a atenção para o facto muitas vezes esquecido de que "não estar doente não é necessariamente o mesmo que ter saúde". Por isso, quando um paciente apresenta queixas físicas, Sinthia não se contenta com os valores bioquímicos dentro dos intervalos de referência nos relatórios de análises clínicas, e que podem levar outros colegas a dizer que está tudo bem. "O problema é quando o paciente continua a sentir-se mal, o que já revela que esses valores ditos normais não são, por si só, indicadores de saúde", diz Sinthia Puttini.
E essa é uma das razões pelas quais cada vez mais pessoas procuram a medicina integrativa, apesar do preço mais elevado -- uma consulta oscila entre os 100 e 150 euros, podendo chegar aos 200 euros. "Porque depois de irem a um, dois, três especialistas que dizem não encontrar nada, elas continuam a sentir-se mal", acrescenta.

Sinthia Puttini, brasileira, trocou a cirurgia pelos estudos sobre obesidade e medicina anti-envelhecimento.
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"Se uma paciente tem os seus níveis de ferro, de vitamina D, B, magnésio, hormonas, etc no limite mínimo e tem queixas e sinais clínicos não vamos esperar que baixe para abaixo do limite de referência e fique doente para intervir. Vamos fazer mais exames, mudar a alimentação, o estilo de vida e vamos suplementar", exclama, surpreendida pela razão que leva o sistema médico vigente a adotar uma postura apenas reativa e essencialmente farmacológica, em vez de proativa e preventiva. E, nunca é demais lembrar, "o erro médico associado a diagnóstico, tratamento e fármacos é a terceira causa de morte nos Estados Unidos - e crê-se que nos países ocidentais - a seguir às doenças cardiovasculares e ao cancro", segundo um estudo de 2016.
A alimentação e a suplementação são, de resto, dois eixos centrais da medicina integrativa, a par do exercício físico e da modulação hormonal, que ainda não é totalmente consensual dentro da comunidade médica. Porque é assumido que, a partir de uma certa idade, e com o estilo de vida atual nem sempre conseguimos ingerir pela comida a dose adequada de vitaminas e minerais ou já não conseguimos produzir o nível de hormonas que precisamos para nos sentirmos bem.
A principal receita desta abordagem médica é eliminar ou reduzir substancialmente os alimentos e bebidas com potencial inflamatório, porque, muitas vezes, "a doença tem início num processo inflamatório". Assim, os pacientes, em particular os que apresentem queixas do foro alérgico, gástrico e intestinal - mas não só - são desafiados a eliminar o glúten, tudo o que leve farinha de trigo, os lacticínios, as gorduras trans, os açúcares refinados, e a reduzir o consumo de álcool e café. A proposta é tentar o mais possível comer apenas "comida de verdade", que não passe pelo processamento industrial, e que se resume a ovos, frutas, grãos, bagas, frutos secos, legumes, arroz, batatas, leguminosas, carne e peixe.
Um dos efeitos quase imediatos desta reeducação alimentar é, para muitos, a perda de peso e a redução da gordura abdominal. É, pois, natural que a satisfação dos pacientes também aumente por isso. "Em muitos casos os sintomas melhoram significativamente e é possível reverter diabetes tipo II, síndrome do intestino irritável, asma, doenças de pele e outras autoimunes," diz Sinthia Puttini, no que é acompanhada por outros especialistas nacionais e internacionais e que chegam a milhões de seguidores nas redes sociais. Mas o segredo está na redução da inflamação, muito em especial, do intestino - o chamado segundo cérebro -, que quando está desregulado pode gerar obesidade, doenças autoimunes e até depressão, concordam as médicas Ana Moreira e Sinthia Puttini. O objetivo é combater ou evitar a chamada "inflamação crónica silenciosa", que se crê ser a origem de uma grande parte das doenças graves.
Modulação hormonal versus antidepressivos?
Igualmente fundamental para o equilíbrio do organismo são as hormonas e o funcionamento da tiróide, áreas nas quais "são poucos os médicos que têm realmente um conhecimento profundo", observa a patologista clínica Ivone Mirpuri, uma das primeiras médicas portuguesas a desenvolver estudos no âmbito da modulação hormonal. Sobre este tema, a especialista - que já deu formação neste campo a mais de 200 colegas - lembra, por exemplo, que "quem não tiver uma boa função tiroidea vai ter problemas digestivos e o mais provável é acabar por ser encaminhado para um gastroenterologista, e a tomar fármacos, quando a causa primeira é a tiróide". Por outro lado, explica, "a disfunção tiróidea também pode estar na base de um colesterol aumentado". E, salienta, "até a baixa das hormonas sexuais (estradiol e testosterona) pode ser responsável por colesterol elevado". Mas "se a raiz dos problemas não for detetada, o que vai acontecer? Os médicos vão receitar estatinas para baixar o colesterol, com os seus efeitos secundários", lamenta a médica, que é membro da International Hormon Society, da World Society of Anti-Aging Medicine e fundadora do Grupo de Estudos de Medicina Anti-envelhecimento.
"É claro que tudo isto leva tempo e não pode ser feito em consultas de 10 minutos, em que os médicos não têm tempo para ler o paciente no físico e psicológico", diz Ivone Mirpuri. "É necessário repensar o sistema e dar condições aos profissionais para serem agentes de saúde e não meros gestores de doença". Até porque "apostar na prevenção é ganhar saúde amanhã".

Ivone Mirpuri, patologista clínica, é uma autoridade em modulaçao hormonal e medicina anti-envelhecimento.
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Outra situação muito típica é a frequente "prescrição de ansiolíticos e antidepressivos a pacientes na fase do climatério e da menopausa, quando, muitas vezes, o mais adequado é atuar na inflamação e na modulação hormonal bioidêntica para repor qualidade de vida na mulher". Mas "este é, infelizmente, um tema tabu em Portugal", lamenta a especialista. Aponta-se o risco aumentado de cancro, "o que não está comprovado com as hormonas bio-idênticas (estrogénio e estradiol), e subestimam-se os riscos cancerígenos de alguns antidepressivos, bem como outros efeitos adversos", argumenta Ivone Mirpuri. Isto quando o estradiol ajuda a prevenir doenças cardiovasculares e osteoporose e a progesterona melhora o sono e combate a ansiedade.
Médicos pedem mais nutrição mas Ordem não se pronuncia
Apesar de todos os avanços na medicina, na indústria e nas tecnologias de diagnóstico, a verdade é que as doenças crónicas continuam a aumentar. "Isso deve fazer-nos pensar que é preciso mudar a abordagem", considera a patologista clínica Ivone Mirpuri. Já em 2015 um estudo do INSA (Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge) referia que quase 60% da população entre os 25 e os 74 anos sofria de pelo menos uma doença crónica. Em janeiro deste ano, uma investigação da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, publicado na revista científica BMC Public Health, revelou que cerca de metade da população portuguesa tem dois ou mais problemas de saúde, sendo que o risco de multimorbilidade numa pessoa aumenta 4% por ano. Os autores do estudo consideram mesmo "excessiva" esta multimorbilidade portuguesa e apontaram a necessidade de otimizar a prevenção.
Um "excesso" a pesar cada vez mais na despesa pública em saúde, que passou de cerca de 12 mil milhões de euros em 2000 para 15,1 mil milhões de euros em 2021, representando 14,7% do PIB, segundo dados do INE. O custo per capita para o Estado subiu de 1206 euros em 2019 para 1471 euros em 2021.
Os profissionais que se dedicam à medicina integrativa apelam a uma mudança do sistema mais orientado para a promoção da saúde e criticam o facto do programa curricular da licenciatura de medicina dedicar "muito pouco tempo à ligação entre alimentação e saúde/doença" e hormonas.
Enquanto Ivone Mirpuri lamenta que a Ordem dos Médicos tenha tomado uma posição desfavorável à modulação hormonal para a gestão do envelhecimento, Ana Moreira queixa-se de em Portugal a Medicina Integrativa não ser reconhecida como especialidade, ao contrário do que sucede em países como os Estados Unidos e Reino Unido. Já existe ensino pós-graduado nesta área em países como a Itália, Suíça, Alemanha, Brasil ou Colômbia. O DN questionou a Ordem dos Médicos sobre a possibilidade de esta abordagem ser reconhecida como especialidade, bem como se é favorável a uma atualização com reforço da componente "alimentação e nutrição" no programa curricular da licenciatura, mas não obteve resposta ao fim de 15 dias.
Ivone Mirpuri entende que "é urgente mudar a formação médica porque o espírito da medicina integrativa tem de estar em todas as especialidades e não numa só". Seja como for, esta corrente médica está em crescimento em todo o mundo e também em Portugal, onde estão inscritos cerca de 200 profissionais na SPMI, embora nem todos sejam clínicos. Mas, como reconhece a presidente da SPMI, é preciso definir melhor o conceito de medicina integrativa e que às vezes está na origem de um preconceito: "Só defendemos o que tem evidência científica." Mas, a seu favor, "esta área tem mais de mil artigos publicados indexados a nível internacional", diz Ana Moreira.
E, mesmo que pareça algo polémico ou exótico, "a verdade é que, nos seus primórdios, a medicina começou por ser integrada". Foi com a especialização e depois com a hiperespecialização que a medicina se fechou em órgãos e, às vezes, se esquece que todos são intrinsecamente interdependentes, ou não fosse o corpo humano o sistema mais harmoniosamente complexo à face da Terra.
carlag@globalmediagroup.pt
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